O meu pai detestava ver fotografias antigas. Assumia que elas lhe traziam recordações tristes de tempos felizes, de gente que tinha perdido pelos anos.
Tenho uma atitude em absoluto inversa. Acho imensa graça recordar pessoas que já se foram, imaginá-las nesses momentos, olhá-las na idade que então tinham. Faz-me bem, não sinto a menor nostalgia. Dilui-me mesmo a saudade que, pontualmente, possa ter de algumas delas. Como é o caso do meu tio Filipe.
Nas fotografias de família que, há pouco, encontrei numa caixa, onde tenho tudo convenientemente desordenado, descobri uma meia dúzia onde surge o tio Filipe.
Quem era o tio Filipe? Era um dos muitos irmãos do meu avô materno. Um homem alto, magro, pálido, com ar de ter maleitas debilitantes. Teve uma vida algo atribulada. Recebeu, por herança da minha bisavó, uma bela quinta, à volta da qual se tinha formado a aldeia de Bornes de Aguiar. Rezam as crónicas familiares, e sabe-se serem esses os factos, que perdeu a quinta ao jogo, no casino das Pedras Salgadas, uma história à época famosa, que já vi retratada num artigo de imprensa. Ficou em situação económica muito difícil, mas nem isso terá impedido que levasse uma vida de estroina, com muitos casos românticos pelo meio.
Há uns anos, um mestre-de-obras que andava a trabalhar na minha casa, em Lisboa, ao saber-me ligado familiarmente a Bornes de Aguiar, revelou-me que o seu sogro era filho ilegítimo de "um tal Filipinho Seixas, que tinha perdido a fortuna no jogo". Nem por esse vago parentesco o senhor Bonifácio me embarateceu a obra!
O tio Filipe nunca casou. Passou, a certa altura, a viver, creio que com alguma modéstia material, com uma senhora que havia estado empregada em casa dos meus avós, de seu nome Aurora. Tiveram várias filhas e creio que um filho, cuja morte trágica, esmagado entre dois vagões de um comboio, tenho bem presente.
As imagens que guardo do tio Filipe são de Bornes, da casa do meu avô, ou das Pedras, do terraço da casa das irmãs da minha avó. A uma delas, a mais doce, a tia Tininha, de seu nome Albertina, o tio Filipe terá andado a arrastar a asa. Outra versão é que a própria tia Tininha teria tido um derriço pelo irmão do cunhado. Constatando ser eu quase o mais velho membro da família, já não tenho a quem perguntar sobre estas coisas, pelo que elas ficam assim imprecisas.
Na minha memória de infância, vejo o tio Filipe a ir à caça, com um chapéu largo, espingarda dobrada no braço, cinturão de cartuchos à banda, a embarcar com outros caçadores, numa camioneta de caixa aberta. Fixo-o também recostado num cadeirão de espaldar alto, na bela varanda em redor do pátio da casa dos meus avós. E também, bem enfarpelado, no casamento da única irmã da minha mãe, em que eu ajudei uma prima a levar as alianças aos noivos.
Recordo o tio Filipe com o seu sorriso triste, um curto bigode, sempre algo isolado. É aliás esse isolamento que ressalta de fotografias de picnics mais antigos, com toda a família sentada no chão, com ele invariavelmente nos extremos.
É estranho. Numa família tão alegre como a minha sempre foi, pelo bom ambiente criado à volta dos meus avós, a figura do tio Filipe projetava uma postura melancólica, um ar de alguma gravidade, como se se obrigasse a sentir-se à margem desse mundo feliz que o seu irmão e meu avô convocava para os seus.
Nos dias de hoje, ainda sinto alguma pena pelo destino meu tio Filipe. E, quando deparo com uma sua imagem, associo-a logo à simpatia que a sua postura isolada me suscitava, pelo facto de a ver sempre um pouco alheia ao ambiente familiar em que era chamado a integrar-se.
Estava eu, no final da noite de ontem, a pensar em tudo isto, no vasculhar das fotografias, quando me deu para ir a um registo genealógico que alguém fez, há uns anos, sobre a nossa família. E fui procurar nele as datas relevantes de vida do tio Filipe. E sabem o que descobri? Que o tio Filipe, o tal que me convoca saudades ligadas à minha infância, em Bornes de Aguiar e nas Pedras Salgadas, afinal já teria morrido antes de eu ter nascido...
(Deixo esta memória bizarra, neste sábado de Aleluia, aos meus sete primos direitos, todos mais novos, que conheceram o nosso tio-avô Filipe ainda menos do que eu...)