Na diplomacia, no estrangeiro, herdamos relações sociais. À volta das embaixadas, de todas as embaixadas, em todos e de todos os países, pululam figuras que, por uma qualquer razão do passado, fazem parte da chamada “lista social” da casa.
Quando chega um novo embaixador, essas personalidades locais, que tanto podem ser diplomatas reformados como “socialites” da mais variada natureza (há uma quota abundante de “singles”, que dão imenso jeito para compor mesas, em falhas de última hora), quase sempre gente educada, fazem um subtil esforço para renovar os laços com o novo chefe da missão, o que lhes permite garantir convites para os dias nacionais ou a inclusão em jantares e outros eventos da embaixada. São, em geral, pessoas muito agradáveis, mas quase sempre inúteis sob o ponto de vista de préstimos para os interesses práticos da embaixada. Contudo, é indelicado “deixar cair” essas pessoas.
Os embaixadores recém-chegados, nos seus primeiros meses em posto, são, como regra geral, convidados por elas, incluídos em ocasiões sociais em suas casas, muitas vezes organizadas em honra do próprio diplomata. E aí irão conhecer outras pessoas, algumas interessantes, outras menos, o que lhes permite ir alargando um círculo de conhecimentos locais em que também vai assentar a convivência no seu tempo em posto. Quando partem, o sucessor herda essa teia de contactos.
Muitos dos jantares para que os embaixadores são convidados acabam por tornar-se numa inenarrável seca. Outros são-no menos, havendo técnicas de conversa que, em ocasiões-limite, podem ser utilizadas para “sobreviver”. Eu, como todos os meus colegas, fui criando algumas…
Em Paris, numa dessas ocasiões, num jantar em casa de gente muito rica, fiquei em frente a um cavalheiro que, desde o primeiro momento, percebi ter uma conversa um tanto incontrolável. Era um empresário já reformado, que conhecia Portugal, e que começou por me felicitar pela “sorte” de eu ter sido compatriota de Salazar, a quem fez imensos elogios. Em especial, a política africana do ditador merecia-lhe todos os louvores - “Et je connais très bien l’Afrique, monsieur l’ambassadeur!”. Fui tentando desviar a conversa, mas o homem teimava.
A dona da casa, uma senhora simpatiquérrima, também com fortes vínculos conservadores em Portugal, percebeu que as coisas não estavam a ir no caminho certo, e procurava introduzir outros temas. Mas sem sucesso. Estava-lhe a ser impossível isolar da conversa um dos quatro temas tabu clássicos, para ambientes de gente bem educada que não se conhece bem entre si: política, religião, dinheiro e “falatório” sobre pessoas ausentes.
A certo passo, o nosso homem, quiçá animado pelo excelente vinho francês que esta a ser servido, que complementava um extraordinário champanhe que tinha sido provado à entrada, começou a falar das colónias africanas e do papel histórico aí representado pelos países europeus. E saiu-se com esta, a propósito dos africanos: “São uns selvagens! Eu, confesso, sou racista”.
Na mesa, fez-se um súbito silêncio. Os franceses têm uma expressão para caraterizar estes momentos de coletiva paralisia: “un ange passe!”. A dona da casa voltou a tentar uma manobra de diversão, carreando para a conversa outro tema. Mas, qual quê!, o palavroso amigo não desarmava. E eu voltei à ribalta: “Et vous, monsieur l’ambassadeur? Comme tout le monde, vous êtes aussi un peu raciste, non?”.
A mesa olhou para mim. Eu, sem “espaço”, tive uma súbita tentação de arrogante chauvinismo lusitano (embora a expressão seja adequadamente francesa) e, muito sério, respondi: “Moi? Non, monsieur, je suis pas raciste. Je suis portugais”. E olhei-o fixamente, com a cara fechada.
Imagino que ninguém por ali acreditasse, por um instante, que os portugueses não fossem (também) racistas. Nem eu próprio acreditava. O racismo não tem fronteiras e é óbvio que há imenso racismo para cá do Caia. A colonização portuguesa, salvo para alguns líricos ou hipócritas, está imbuída dele até às entranhas do império, com discriminações e todos os vícios de qualquer processo de colonização. (Ah! E desde já aviso que não entro na velha e relha avaliação quantitativa de que os portugueses são menos racistas do que outros povos ou que, no plano qualitativo, de que a nossa colonização foi ”melhor” do que as outras.)
Aquela minha cartada verbal defensiva foi entendida por todos, com naturalidade, como uma benévola manobra para procurar calar o meu impertinente interlocutor. Porém, ao dizer o que disse, naquele ambiente franco-francês bem conservador, eu deixava implicitamente uma nota de que ser francês talvez fosse, em matéria de racismo e (vá lá, de xenofobia) uma coisa bem diferente do que era ser português. Os portugueses que viviam em França sabiam isso bem! Só o excesso do palavroso convidado me tinha dado um alibi para dizer ali uma frase que, não obstante ser curta, era diplomaticamente bem pesada.
A conversa mudou. O homem, tanto quanto me lembro, calou-se e manteve-se, a partir daí, silencioso, pelo menos até à chegada do Armagnac, que terá vindo com o café, que foi servido depois das “profiteroles”.
Por que é que me lembrei disto? Porque me chegou ontem, pela Amazon, o último livro de Éric Zemmour, o surpreendente “cometa” que, nos últimos meses, emergiu na cena política francesa, que as sondagens, de há horas, colocam já à frente de Marine Le Pen e logo abaixo de Emmanuel Macron, para as presidenciais francesas do próximo ano. E Zemmour, esse sim, é claramente racista e xenófobo.
(Já estou a imaginar alguns amigos a perguntar: “Então mandaste vir um livro de uma figura de extrema-direita?”. Comigo a responder: “Eu quase só leio coisas com que não concordo!”)