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quarta-feira, maio 30, 2012

Clareza

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, como por aqui já referi algumas vezes, a principal relação escrita entre Lisboa e os postos no exterior faz-se através dos chamados "telegramas", qualificação que ainda vem do tempo em que eram enviados, de facto, telegramas através dos correios, com os textos submetidos a uma "cifragem" prévia, a que correspondia mais tarde uma "decifragem" no destino. Hoje, esses procedimentos são feitos por meios mais sofisticados - eu diria mesmo, tão sofisticados e dependentes de tais tecnologias que algumas interrogações se colocam quanto à sua real fiabilidade. Mas devo ser eu que sou um desconfiado...

Esta introdução é apenas para enquadrar uma historieta, que tem algumas décadas e que, ao que me contaram, foi então muito falada. Tratou-se de um telegrama enviado pela nossa missão na ONU, em Nova Iorque, de resposta a um outro, chegado de Lisboa. Ao que parece, o embaixador teria ficado abespinhado com uma insistência da "Secretaria de Estado" (nome pelo qual os postos no exterior tratam o MNE em Lisboa) sobre um assunto que ele achava já ter esclarecido devidamente. Vai daí, decidiu-se remeter um telegrama com um texto que poderia ser o que se segue:

Com referência ao telegrama dessa Secretaria de Estado nº 457, não posso senão reiterar tudo quanto já adiantei no meu 654, o qual, aliás, refletia a perspetiva que avançara no meu 398. Porém, em face da insistência agora feita, pergunto-me se essa mesma perspetiva, que tinha nomeadamente em conta as instruções que aqui recebi dessa SE pelo 347, do ano transato, é, em si mesma, compaginável, por exemplo, com as anteriores instruções constantes da circular 34, no seu ponto 12, desse mesmo ano. VExa compreenderá que, havendo dúvidas, será legítimo cruzar tal doutrina com aquilo a que meu colega em Roma judiciosamente aludia, há semanas, no seu 197, aditando, aliás ao seu anterior 65, texto que ganharia em ser revisitado. É que, a assim não ser, só posso concluir que ainda se manterá válida, devendo ser seguida, a linha que a nossa embaixada em Londres expressava no seu 178. É no cruzamento dessa perspetiva de abordagem, que não deixa de ter em conta tudo quanto antecede, que se situa posição desta Missão. Salvo melhor opinião, julgo ter sido cristalinamente claro.

E o embaixador assinou por baixo. Em Lisboa, ao que consta, o telegrama provocou um sururu nos serviços, obrigando os desgraçados dos arquivistas a coletarem todas as comunicações cuja numeração fora citada, sem que, por um momento, houvesse a mais pequena ideia daquilo a que o embaixador se estava concretamente a referir. Não queria ele outra coisa, diga-se!

(Nota: o exemplo da imagem é um telegrama, aliás histórico, que já foi "desclassificado". Essa é a razão pela qual o publico. Para um diplomata, um telegrama é um instrumento de comunicação "sagrado", que a deontologia profissional  impede de divulgar)

sábado, fevereiro 18, 2012

Síria e Kosovo

Na sexta-feira, estive presente na cerimónia que, em Paris, assinalou o 4º aniversário da independência do Kosovo, uma realidade política até hoje reconhecida por 88 países, entre os quais 22 da União Europeia, incluindo Portugal.

Não pude deixar de recordar-me, na ocasião, que o Kosovo talvez hoje deva a sua existência à intervenção militar promovida pela NATO, em 1999, feita à revelia de qualquer legitimação do Conselho de Segurança da ONU, então bloqueado pela obstinação russa e chinesa. Uma ação discutível mas que, para largos setores da comunidade internacional, se justificou por ser talvez a única forma de suster a repressão sangrenta das forças sérvias sobre a população kosovar. 

A atual crise síria evoca, naturalmente, o caso do Kosovo. Também agora largos setores da opinião pública internacional sentem que se está perante um verdadeiro escândalo: a completa impunidade de uma ação impiedosa de um regime sobre a sua própria população. E, uma vez mais, a oposição russa e chinesa no Conselho de Segurança está presente. Só que, nesta conjuntura, o quadro geopolítico não aponta no sentido de alguns países poderem ser tentados a agir militarmente, mesmo sem o conforto da legitimidade multilateral.

Alguns tentam "perceber" as razões formais da Rússia e da China, ao não darem luz verde para uma pressão constrangente sobre Damasco: os ocidentais mostraram, na Líbia, que a resolução 1973 foi "abusada" e que, da imposição de uma "no fly zone", se passou rapidamente para um processo de "regime change", que não estava previsto no mandato onusino. E ambos os países também temem que, por esta via, comece a consagrar-se um "direito de ingerência", princípio que sempre recusaram, pela utilização alargada e sem controlo que dele pode fazer-se. Razões discutíveis mas arguíveis, no plano dos princípios.

O que a Rússia e a China parece não perceberem é que, ao não partilharem, em situações graves como estas, as preocupações de grande parte do mundo, além de ficarem ligados, inapelavelmente, aos fautores das barbáries, contribuem para condenar a ONU a uma irrelevância que degrada a sua imagem e legitimidade. De bloqueio em bloqueio, vão dando razões a quantos acham, às vezes por motivos que não são os melhores, que, em situações limite, é preciso "ir a jogo", ultrapassando os impasses onusinos. E que assim se cria, na opinião pública internacional, um ambiente de crescente condescendência face a possíveis ações unilaterais, sem limites nem mandatos, que possam pôr cobro a situações de flagrante escândalo humanitário. 

sexta-feira, fevereiro 03, 2012

ONU

Pela voz do chefe da sua diplomacia, Portugal expressou no Conselho de Segurança o conjunto de razões pelas quais considera que a credibilidade daquele órgão da ONU ficará em causa se, através dele, não for possível dar expressão à indignação que atravessa os meios mais responsáveis da comunidade internacional, face à repressão sangrenta a que as autoridades sírias condenam grande parte da sua população.

A presença portuguesa no órgão mais relevante da ONU, lado a lado com outros países ocidentais, mas igualmente com parceiros do mundo árabe, defendendo os valores da paz, da tolerância e da democracia, é algo que dignifica o nosso país, que dá visibilidade a uma ação externa que é pautada pelo diálogo e pela busca de compromissos mas, igualmente, pela firmeza na defesa de princípios que entendemos essenciais para a construção uma sociedade internacional mais justa e mais estável.

Aqueles que, no passado, colocavam em dúvida o interesse e a racionalidade da opção por uma candidatura portuguesa ao Conselho de Segurança, interrogando-se sobre a utilidade desse esforço, podem ter agora a resposta através desta visibilidade de que Portugal usufrui. É que - como por aqui tenho dito várias vezes - existe por aí um país antigo, que o mundo vê hoje como um parceiro político sólido e confiável, que está muito para além das dificuldades na esfera económica que conjunturalmente atravessa. Esse é o país que a diplomacia portuguesa, como garante da continuidade da imagem externa de Portugal, procura representar e afirmar.

sábado, janeiro 21, 2012

Protocolo

Há dias, fui jantar a uma determinada embaixada, aqui em Paris. Deveríamos ser oito pessoas à mesa; só estivemos seis. Um casal faltou, sem dar qualquer explicação, fruto de uma eventual confusão com a data ou outra razão de última hora. Depois de mais algum tempo de espera do que habitual, a mesa "rearranjou-se" a tudo correu a preceito. Imagino que, no dia seguinte, os donos da casa tenham esclarecido com os faltosos o acontecido. 

Este é um cenário que pode ocorrer a qualquer um: já me aconteceu, algumas vezes como anfitrião, uma vez como faltoso, frequentemente como testemunha. Mas, por vezes, em jantares oficiais, um incidente deste género pode tornar-se bastante desagradável. Já assisti a várias confusões similares, algumas delas mesmo com impactos políticos, por vezes não deliberados. 

A cena mais bizarra em que estive envolvido passou-se em Genebra, em 2001. Eu era vice-presidente do Comité Económico e Social (ECOSOC) da ONU e, com o respetivo presidente, tinha-me deslocado de Nova Iorque para com ele dirigir as reuniões de trabalho do chamado "segmento de alto nível", que aí tem lugar durante o mês de julho de cada ano. São duas semanas de longas reuniões plenárias, encontros sectoriais e diversos outros eventos formais, com alguma negociação pelo meio.

Logo no início das sessões, recebi um convite para estar presente num jantar que um grupo de países do G77 (o grupo dos "países em desenvolvimento", que hoje agrupa, não os originais 77 Estados, mas 130 países) iria organizar, de homenagem ao presidente do ECOSOC, um diplomata africano, representante do seu país na ONU. 

Aceitei, como é óbvio, e, num determinado dia, lá fui para o jantar, que tinha lugar na residência de um embaixador asiático. O evento envolvia algumas largas dezenas de pessoas, desde diplomatas a funcionários superiores da ONU. Havia uma mesa principal, retangular, num modelo a que eu chamo "última ceia", e várias mesas redondas. O lugar do presidente do ECOSOC era à direita do dono da casa, à esquerda de quem eu me sentava.

Ao final de mais de uma hora de espera, constatou-se que o convidado de honra não aparecia. Ter-se-ia perdido no caminho? Teria feito confusão com a hora ou a data? Ainda tentei o seu telemóvel, mas estava desligado. Nas conversas, prolongavam-se as dúvidas. A certo passo, com muitos convidados a olhar já para os relógios, o anfitrião não teve outra solução senão decidir passar à mesa, mesmo sem o homenageado. 

Porém, o dono da casa, em lugar de procurar "aligeirar" a ocasião, informalizando-a, teimou, de forma um tanto estranha, em manter a prevista homenagem, não obstante a ausência do homenageado! E, com o lugar vago à sua direita, leu um discurso escrito, com elogios rasgados ao ausente. No final, para imenso espanto de todos e insuperável embaraço meu, passou-me a palavra, na minha qualidade de vice-presidente.

Aquela era uma das ocasiões em que um bom orador, com ironia e sentido de oportunidade, teria podido fazer uma intervenção de antologia. Eu não estive à altura do momento de humor que se me proporcionava. Disse umas palavras de circunstância e de agradecimento em nome do meu colega, sem ousar um registo divertido que o momento proporcionava, talvez para evitar ofender o anfitrião e alguns dos presentes.

Na manhã do dia seguinte, no palácio das Nações, procurei afanosamente o presidente do ECOSOC: "Então ontem faltaste ao jantar em tua homenagem?!" O homem olhou para mim, impávido, com um ligeiro sorriso, comentando: "É verdade! Não me sentia muito bem para ir ao jantar. Fui ao cinema..."

O protocolo, tal como os costumes, pode ser muito diferente, de país para país.   

sexta-feira, dezembro 30, 2011

Prendas

Na vida internacional, recebem-se frequentemente algumas prendas que consideramos bizarras. As mais das vezes, isso deve-se ao facto dos critérios estéticos de certas culturas serem muito diferentes dos nossos. Por isso, ficamos frequentemente "sem graça" ao ser confrontados com ofertas que, de imediato, concluímos que não irão nunca ter um lugar nas nossas casas. Se as oferecemos a terceiros, para além disso poder representar uma ofensa a quem no-las deu se se acabar por se saber desse desvio, também ficamos com a obrigação de explicar o que estamos a dar e a razão por que isso acontece. É sempre um problema, até porque, não raramente, se trata de peças caras, não tendo nós o direito de não reconhecer a gentileza do gesto.

Recordo-me que, há uns anos, a minutos de sair de um hotel de um riquíssimo país do Golfo, para o qual tinha apenas levado uma mala de mão e uma pequena pasta, cheiíssimas já com roupa e papelada, fui surpreendido pela oferta de uma imensa - mas horrorosa! - e muito pesada peça de cristal. Nem eu tinha como a transportar, numa viagem que iria ter duas escalas, nem aquilo poderia alguma vez ser exposto em sítio algum. Optei, em desespero de causa, por oferecê-la ao motorista que tinha andado comigo nos dias anteriores, não sem antes passar uma declaração escrita, garantindo que se tratava de uma oferta da minha parte... Espero que o homem não tenha tido problemas e, em especial, que não tenha contado nada às suas autoridades!

Há dias, pelo Natal, recebi, de um colega de um país onde os critérios estéticos divergem muito dos nossos, uma dessas peças "impossíveis". Comentando o assunto com um amigo, ele notou que também as instituições internacionais são, às vezes, alvo de ofertas que, não podendo ser recusadas, criam problemas para a sua exibição. É que, na decorrência de publicitadas e públicas ofertas, as instituições ficam naturalmente obrigadas a expô-las, sob pena de criarem incidentes diplomáticos.

Isso fez-me recordar uma questão que era objeto de muitas piadas, ao tempo em que estive em Nova Iorque. Tratava-se da famosa estátua de um elefante em metal, oferecida à ONU pelo Nepal, Namíbia e Quénia, uma obra de um artista búlgaro.

O secretário-geral da ONU decidiu colocar a estátua no jardim da organização, entre a 1ª avenida e a rua 48ª. Só que logo surgiu um problema: a expressão hiper-avantajada de um certo órgão do animal suscitou, quase de imediato, um escândalo na cidade, com uma romaria de visitantes a apreciar aquilo que ficou conhecido como a "endowed elephant statue" (estátua do elefante bem dotado). 

Para grandes males, grandes remédios. Com a ajuda de jardineiros hábeis, as Nações Unidas lá conseguiram fazer crescer uma sebe junto ao animal, que lhe tapa as "partes" exageradas e torna mais aceitável a exposição da obra de arte. Consta, além disso, que aquela área do jardim da ONU já não admite visitas, apenas sendo possível ver a estátua de longe. A eficácia deste "cover-up" é tal que na net não se consegue encontrar nenhuma foto do elefante sem a sebe.

A diplomacia foi sempre a arte de resolver grandes problemas. Ou problemas grandes...

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...