Em Angola, morreu Lúcio Lara, de que aqui deixo uma fotografia do tempo da guerrilha. Era, a grande distância de todos os outros, a mais histórica de todas as figuras ainda vivas do MPLA. Sem uma ambição que o catapultasse para a ribalta governativa, Lúcio Lara esteve sempre na sombra de Agostinho Neto e, ao que se sabe, quis apenas desempenhar funções no âmbito partidário. Tido como pessoa de extrema austeridade, nunca o seu nome foi associado a qualquer interesse de natureza económica.
Quando, entre 1982 e 1986, vivi em Luanda, trabalhando na nossa embaixada, recordo-me que o nome de Lúcio Lara era tido, com razão ou sem ela, como um pilar da ortodoxia política e do alinhamento pleno com a então União Soviética. Nesses quase quatro anos, apenas por uma vez me cruzei pessoalmente com Lara, numa cerimónia pública, dele obtendo apenas um silêncio levemente sorridente perante a menção que fiz da minha qualidade de diplomata português. Por essa altura, não obstante os esforços do nosso embaixador, António Pinto da França, as relações entre os governos de Luanda e Lisboa mantinham-se muito tensas e o "Jornal de Angola" trazia, com uma frequência quase diária, ataques a Portugal. Todas as tentativas do embaixador de se aproximar de Lúcio Lara, quanto mais não fosse para um gesto de cortesia, não tiveram o menor sucesso.
Lúcio Lara, que nasceu no Huambo e era filho de pai português e mãe angolana, veio viver e estudar em Portugal, até abandonar o país para ingressar na luta armada, criando com Agostinho Neto o MAC (Movimento Anti-Colonial), que daria posteriormente origem ao MPLA. Foi em Lisboa que conheceu e, em 1955, casou com aquela que iria ser a sua mulher, Ruth. Ruth Lara era portuguesa, aqui nascera em 1936, filha de alemães fugidos ao início do nazismo. Quando Lúcio Lara decidiu abandonar o país, para lutar pela independência da terra onde nascera, Ruth acompanhou o marido. Viveu então nas várias paradas por onde a luta anticolonial levou Lúcio Lara (Conakry, Leopoldeville (hoje Kinshasa) e Brazaville). Depois da independência, e quando passou a viver em Angola, contrastando com o empenhamento militante de Lúcio Lara, a sua mulher teve sempre funções de escasso destaque, embora ligada ao MPLA na área educativa.
No ambiente politicamente muito fechado que era o de Luanda do tempo em que por lá vivi, surgiu, a certa altura, aquilo que, à boca pequena, foi considerado um "escândalo" político, cujos contornos demorou algum tempo a determinar. Um intelectual conhecido, Costa Andrade (conhecido como "Ndunduma"), antigo guerrilheiro e biógrafo de Agostinho Neto, havia escrito e encenado uma peça teatral que, supostamente, ironizava com a vida familiar do presidente Eduardo dos Santos. O autor foi detido, o ministro da Educação foi demitido e a mulher de Lúcio Lara, por alguma razão ligada à conceção do espetáculo, foi afastada das funções que ocupava. Lembro-me bem que, à época, todos especulávamos sobre se, desse incidente, decorreriam consequências para o estatuto político de Lúcio Lara. Nada aconteceu e, aparentemente, o episódio nunca afetou a extrema lealdade que Lara manteve para com José Eduardo dos Santos. Ruth Lara viria a morrer em 2000.
Como referi, Lúcio Lara viveu em Portugal. Por cá esteve ligado ao MUD Juvenil e, ao que tudo o indica, ao PCP, tal como Agostinho Neto. Por essa época, terá escrito poesia no jornal coimbrão "Via Latina". Um dos seus pares nessa aventura literária foi o meu colega Luís Gaspar da Silva, embaixador e antigo secretário de Estado, já falecido.
Conta-se um episódio entre os dois, no dia do funeral de Agostinho Neto, em 1979, em Luanda. Gaspar acompanhava Ramalho Eanes. Esperava-os Lúcio Lara, o nº 2 formal do regime. Forte da sua velha relação, Gaspar abriu os amplos braços para dar um abraço "dos seus" ao antigo amigo (eram famosos, pela seu poder "abrangente", os abraços de Gaspar da Silva). Porém, por esses dias, as relações luso-angolanas não estavam (uma vez mais...) no melhor momento. Aceitar o gesto de Gaspar seria, para Lara, ser visto numa coreografia afetiva que poderia dar lugar a especulações. Disse-me quem viu que a cena foi de antologia. O nosso diplomata, com a sua imensa corpulência, tentou forçar o amplexo. O franzino Lara resistiu quanto pôde, mantendo o seu antigo colega da "Via Latina", a revista onde ambos haviam rimado líricas, à conveniente distância, não apenas física mas também política.
Uma última nota me ocorre neste singelo obituário. Que pensaria Lúcio Lara da Angola de hoje?