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quinta-feira, agosto 23, 2012

Goa

Goa foi um tema que sempre me fascinou, menos pela inegável importância histórica da nossa presença na costa indiana e muito mais pela natureza, que sempre vi como muito ambígua, da relação de Portugal com aquela terra e aquela gente. Há uns anos, essa curiosidade levou-me mesmo a passar por lá uns dias. E, devo dizer com franqueza, saí mais confundido do que estava quando lá cheguei.

No final de 2011, passou exatamente meio século desde que a União Indiana invadiu as últimas possessões que Portugal mantinha na costa do Malabar: Goa, Damão e Diu. Dois enclaves, Dradrá e Nagar Haveli, já haviam sido absorvidos pelo governo de Nova Delhi, em 1954. Uma curta batalha militar veio encerrar uma mais longa batalha jurídico-diplomática, com que o governo ditatorial português pretendia contrariar o processo descolonizador. A perda do Estado da Índia representou um trauma muito importante num país que, nesse ano, já havia assistido às trágicas consequências da sublevação em Angola. O colonialismo português entrava no seu declínio e, com ele, o próprio regime.

Mas, à época, diga-se em abono da verdade, nem só os dirigentes do Estado Novo se recusavam a aceitar o fim do império: grande parte da opinião pública portuguesa, mesmo dentre quantos se opunham a Salazar, mantinha uma atitude favorável (ou, pelo menos, não desfavorável) à manutenção dessa parcela do "ultramar português". Mesmo no seio das forças organizadas da Oposição, essa atitude dominava, convém dizê-lo. Recordo-me bem da emoção provocada em Vila Real, em fins de 1961, aquando da "queda" do Estado da Índia, pela invasão das tropas do "Pandita Nehru".

(Nunca me saiu da cabeça a ideia que criei de que a reiterada utilização adjetivada que a propaganda do regime fazia da palavra "Pandita" - designação elogiosa indiana que era atribuída a Nehru e que, em rigor, significa homem sábio e educado - tinha a ver com a sua similitude sonora com "bandido", tal como, anos mais tarde, aconteceu na América com as expressões "Saddam" e "Satan". Os cartazes com palavras de ordem que diziam "Abaixo o Pandita" e coisas similares assim parece provarem).

Tenho na memória a visão do meu professor de História, dr. Carlos Sanches, não sei bem em que qualidade, a discursar na varanda do Governo Civil de Vila Real, para umas centenas de pessoas que, com patrióticos cartazes, manifestavam o seu pesar pelos acontecimentos. Eu estava ali com o meu pai, um eterno anti-salazarista, mas que estava solidário com a defesa do Estado da Índia.

Na altura, a censura aos media não deixou revelar as dissenções havidas entre o governador-geral Vassalo e Silva e o executivo de Lisboa, com a "heroicidade" de Salazar a mandar, da comodidade de S. Bento, o célebre e gongórico telegrama, redigido para a História e para o "livro branco": "Não haverá nem vencedores nem vencidos, só heróis e mártires". Lembro-me da emoção com que então se ouvia falar do afundamento do aviso Afonso de Albuquerque, bem como da "defesa heróica" levada a cabo pelas forças militares portuguesas em Goa. Só muito mais tarde vieram a conhecer-se as condições miseráveis em que estavam as nossas tropas no terreno e no total irrealismo que representaria uma luta até ao último homem. A vilificação de Vassalo e Silva (a ironia estadonovista nas conversas sugeria a sua "cobardia", ao tratá-lo como "bacilo salvo") foi a escapatória fácil encontrada pela ditadura para justificar a derrota militar, a qual, como disse, era uma outra face da inevitável derrota política da teimosia na manutenção do sonho imperial, de que Índia "portuguesa" era a primeira peça do dominó a cair.

Como atrás disse, há uns anos, passei uns dias em Goa. A Índia era a zona da fixação colonial portuguesa que me criava (e ainda cria) maiores interrogações. Sabia do modo ofendido como os habitantes de Goa, Damão e Diu tinham entendido a aplicação ao território do Ato Colonial, logo no início do Estado Novo. Li, mais tarde, textos escritos por goeses divididos entre a fidelidade a um Portugal que os tratara menos bem e a atração por uma União Indiana que lhes abria caminho a uma ligação a um grande Estado descolonizado, então "farol" para muitos povos. E percebera, também, a desilusão que muitos goeses haviam acabado por sentir, ao verem a sua identidade violentada por uma integração algo traumática, desrespeitadora da sua sensibilidade cultural e até religiosa. Não sei o suficiente sobre o assunto para poder ter uma opinião segura, mas recomendo muito que, quem possa, vá a Goa e por lá tente entender aquela gente que ficou "a meio da ponte"...

Nessa viagem, entre outras surpresas, tive uma experiência curiosa. Como acontece com muitos turistas portugueses, procurei visitar algumas das antigas casas senhoriais do tempo da Índia "portuguesa", hoje maioritariamente transformadas numa espécie de museus, as mais das vezes tristes, que espelham uma decadência serena e digna. E onde, em geral, se fala de Portugal sem acrimónia, mas também sem especial nostalgia, como falamos de longínquos membros desaparecidos da família, com defeitos e virtudes. Mais do que de Portugal, do que alguns goeses parece terem saudades é da sociedade goesa do passado, o que são coisas muito diferentes.

A certo ponto da minha estada, ao aproximarmo-nos de uma dessas casas, fui informado pelo motorista que ela não era visitável, salvo com diligências que eu não tinha tempo de empreender. O mesmo motorista chamou-me, entranto, a atenção para uma senhora que estava a sair da casa, dizendo saber que era ela a proprietária. Pedi para parar o carro e dirigi-me à senhora, que deveria mais de 80 anos. Fi-lo em inglês. A senhora olhou para mim e, num português impecável, respondeu-me: "Mas por que é que está a falar-me em inglês? Eu falo português. Eu fui deputada à Assembleia Nacional!". Chamava-se Lurdes Figueiredo e, logo recordei, fizera parte de um grupo de deputados, de um género a que os brasileiros chamam "biónicos", que haviam sido designados pelo Estado Novo para representar o Estado da Índia, no areópago de S. Bento, ao tempo em que o general França Borges era uma espécie de governador-geral no exílio... em Lisboa. Creio que duraram até ao 25 de abril, se não me engano.

Fiquei sempre com muita pena de não ter tido a oportunidade de falar longamente com aquela senhora, para tentar perceber um pouco mais desse tempo estranho, de um Portugal em transição, em trágico final de império. 

Tão estranho que o motorista que me transportava, um hindu que não falava uma palavra de português e que havia nascido já bem depois do fim da Índia dita portuguesa, me pediu para lhe mandar, de Lisboa, autocolantes com o nosso escudo ou a nossa bandeira, para si e para oferecer aos amigos, que achavam muita graça usar nos automóveis. As bizarras malhas que o império tece...  

quinta-feira, julho 26, 2012

Bletchley Park

Eu nunca aprendo. Nestes tempos de férias, dá-me sempre para ler coisas que só me fazem perder horas, com escasso prazer literário, apenas levado pela curiosidade. Às vezes, são obras de figuras menores da literatura portuguesa, passada ou presente, que visito para tentar perceber por que razão foram ou são sucessos. Outras vezes, são romances estrangeiros, policiais ou de espionagem, naquele tipo de edições que se podem molhar, sem pena, à beira da piscina. Já devia ter aprendido, mas não: enfio sempre estes barretes sazonais.

Ontem, depois de dia e meio de leitura (quando me aproximo de metade do livro, quase sempre dou uma "oportunidade" ao resto), terminei um livro de um tal Daniel Silva, de que me diziam maravilhas e que não passa de um sofrível "genérico" de Le Carré. A receita de construção da obra é vetusta, feita de pequenos capítulos de "suspense" acumulado, com uma tipificação dos "bons" e dos "maus" do costume, uma pitada ligeira de sexo para os públicos da "Caras" e coisas correlativas, incluindo sempre a figura de um "inteligente", que faz inferências implausíveis, com ar de anti-herói - fórmula bebida em Chandler e outros génios.

O romance passa-se, em grande parte, em Londres e, curiosamente, nas zonas muito próximas da nossa embaixada, o que não deixa de ter a sua graça a quem andou por lá. Mas a obra, em geral, é bastante mauzota. Porque um mal nunca vem só, surge no texto um diplomata português a colaborar com os nazis. Se o tal Daniel Silva é, como ouvi dizer, de ascendência portuguesa, bem podia ter evitado contribuir para mais uma degradação subliminar da imagem da pátria dos seus ascendentes.

Mas a razão por que trago o assunto aqui prende-se com a frequente aparição, no livro, de menções a Bletchley Park, o mítico local onde, durante a 2ª guerra mundial, funcionou uma celebrada estrutura de descriptagem das mensagens alemãs, que terá dado um importante contributo para a vitória aliada.

O local, dependente do famoso MI5 (serviço de contraespionagem), manteve-se fechado durante décadas. Um dia de 1994, li anunciado, numa obscura notícia num jornal, que, a partir desse fim de semana, Bletchley Park passava a ser visitável. Lá fui eu, de imediato, na data indicada, cheio de curiosidade.

À entrada, que surpreendentemente era gratuita, pediram-nos identificação. Disseram-nos então que, infelizmente, Bletchley Park ainda não era visitável pelo "público em geral". Quando fiz notar que estavam várias pessoas a aceder ao parque e às diversas instalações nele existentes, que fora anunciado na imprensa que haveria visitas públicas e que viéramos de Londres expressamente por essa razão, dei conta de algum embaraço nos nossos interlocutores. Depois de um bom quarto de hora de parlamentação e contactos telefónicos, lá fomos autorizados a entrar, num registo que me pareceu ser de alguma exceção. Fomos integrados num grupo de uma dezena de pessoas e, partir daí, fizémos uma interessantíssima visita guiada, durante quase duas horas, sob a orientação de uma senhora que não escondia que era membro do MI5. Ao longo desse tempo, dei comigo a relembrar o que tinha lido do local e dos seus momentos áureos.

No final daquela que fora a primeira visita organizada, desde sempre, a Bletchley Park, devo confessar que estava bastante contente por ter tido a experiência. A caminho da saída, numa troca de palavras com um outro visitante, e ao dar-se este conta de que éramos portugueses e, aliás, os únicos estrangeiros no grupo, interrogou, curioso: "What's your link with the British intelligence community?". Expliquei que não tínhamos a mais leve relação com os serviços de informações britânicos, que eu era apenas um diplomata português colocado no Reino Unido, neste caso movido por curiosidade histórica. O meu interlocutor abriu a boca, de espanto, porque, tanto quanto sabia, no primeiro mês, o acesso a Bletchley Park estava exclusivamente reservado a membros dos "British special services", e respetivas famílias, como era o seu caso. Estavam assim explicadas as dificuldades encontradas à entrada. E, claro, devemos ter ficado nos registos.

sexta-feira, julho 20, 2012

José Hermano Saraiva

José Hermano Saraiva, que acaba de desaparecer, foi um improvável ministro da Educação do último governo de Oliveira Salazar. Simples professor liceal, terá sido a sua fidelidade ao Estado Novo, aliada a uma inteligência viva e uma inegável capacidade de ação, que lhe assegurou a ascenção política. Ainda estou a ver a fotografia da tomada de posse, em Belém, ao lado de Américo Tomás, de fraque e calças de fantasia, em Agosto de 1968, na qual, recordo, surge também uma outra personalidade que há dias faleceu, embora num relativo silêncio mediático, Justino Mendes de Almeida.

Dias depois, Salazar cairia da cadeira de lona e, semanas mais tarde, os equilíbrios do regime fizeram com que Marcello Caetano confirmasse José Hermano Saraiva no cargo.

Não foi nada fácil a tarefa do ministro. Como ponto "alto" das questões que teve de gerir, recorde-se a "crise de Coimbra", em 1969. Quem viveu esse período lembra-se bem dele, ao lado do presidente Tomás, na inauguração do edifício das Matemáticas, em Coimbra, nesse tenso e verdadeiramente único momento em que Alberto Martins teve a coragem de pedir a palavra, em nome da academia, naquele que viria a ser o início de um dos maiores protestos de contestação universitária vividos em Portugal.

A agitação universitária propagou-se a Lisboa. No ISCSPU, José Hermano Saraiva decidiu não "homologar" a lista eleita da Associação académica, de cuja direção eu fazia parte (ver aqui um relato do nosso encontro com o ministro). Ficou claro que Marcello utilizou então Hermano Saraiva para afastar, do ISCSPU, o seu rival político Adriano Moreira, personalidade com a qual, à época, as lideranças académicas decidiram, taticamente, solidarizar-se. Isso veio a redundar numa invasão do Instituto pela "polícia de choque", chefiada pelo capitão Maltez, e pela dissolução dos órgãos legítimos da Associação, que passou a ser dirigida por uma complacente "comissão administrativa".

Com o tempo, Marcello Caetano substituiu Saraiva por Veiga Simão. No que me toca, devo dizer que a mudança não ajudou muito, porque não tive o ensejo de apreciar, em excesso, as credenciais, ditas liberais, do novo ministro: em 1972, como presidente eleito da Assembleia geral dos estudantes do ISCSPU, voltei a ver a minha escolha não "homologada" pelo novo ministro. Mas isso deve ser sina pessoal...

Usufruindo da oportunidade dada pela Democracia, José Hermano Saraiva viria a fazer escola como divulgador televisivo, e não só, da História pátria, confirmando a perceção de que a historiografia permanece como um dos poucos domínios culturais onde o pensamento conservador preserva uma certa notoriedade pública. A sua capacidade de "contador de História" era inegável e, embora muitos achem que isso foi muitas vezes feito em detrimento de algum rigor científico, a verdade é que ele terá contribuído para despertar o interesse pela História de Portugal - e esse será um importante serviço que o país, sem a menor dúvida, lhe ficou a dever.

Em tempo - Não notei, como devia ter feito, que José Hermano Saraiva foi embaixador "político" em Brasília, nos tempos que antecederam o 25 de abril.

quinta-feira, julho 12, 2012

Cova da Moura

Há semanas, em Lisboa, no Chiado, em frente à FNAC, entrei num táxi (para responder a um comentador: é verdade que ando muito de táxi, em Portugal) e disse ao motorista: "Leve-me à Cova da Moura, por favor". O homem voltou-se, olhou para mim com um ar de surpresa, e retorquiu: "À Cova da Moura? Desculpe, mas para aí não vou!".

Por um segundo, fiquei suspenso. O equívoco desfez-se quando percebi que o homem tinha entendido que o meu pretendido destino era um subúrbio com o mesmo nome, para lá de Benfica, na periferia de Lisboa, tido como um lugar altamente perigoso. Mas, afinal, eu estava a referir-me ao palácio da Cova da Moura, perto da avenida Infante Santo.

O palácio da Cova da Moura é um belo edifício, prémio Valmor em 1921, construído para moradia, que passou, em data que não posso precisar, a ter serventia pública. Em 1961, era aí que se instalava o Ministério da Defesa Nacional e nele teve então lugar a tentativa de "pronunciamento" titulada pelo general Botelho Moniz, que pretendeu, em abril desse ano, substituir Salazar na chefia do governo. Em 25 de abril de 1974, o espaço acolhia o Secretariado-geral da Defesa Nacional e foi escolhido para sede da Junta de Salvação Nacional. Como militar, nomeado assessor de um dos membros dessa estrutura de liderança formal da Revolução, aí estive por alguns meses, até que a Junta desapareceu, na ressaca do chamado "28 de setembro", nesses tempos "quentes". Mais tarde, julgo que alojou a Direção-geral da Administração Pública, para, nos anos 90, passar a ser a sede da Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus. Aí trabalhei - bem! -  por seis anos e meio e por aí ainda tenho muitos e bons amigos - principalmente amigas, porque há muito mais mulheres que homens a tratar das questões europeias, vá-se lá saber porquê.

segunda-feira, maio 28, 2012

Paris e o 28 de maio

Ainda a tempo de "comemorar" o dia de hoje, aqui deixo a imagem da casa - no nº 192 do boulevard de La Villete, em Paris - onde viveu, entre 1927 e 1932, José Domingues dos Santos (1885-1958), primeiro-ministro da I República. Na prática, esta casa funcionou como sede informal da "Liga de Defesa da República", mais conhecida como "Liga de Paris".

A "Liga" foi uma estrutura oposicionista à ditadura militar implantada em Portugal em 28 de maio de 1926, que congregou personalidades como Afonso Costa, Jaime Cortesão, António Sérgio, Raul Proença, Bernardino Machado, Álvaro de Castro, Jaime de Morais e muitos outros. Sobre a atividade deste grupo de exilados, tomei a iniciativa de organizar na Embaixada, inserido nas comemorações do centenário da República, um colóquio com historiadores portugueses e franceses.

Camões em Paris

Aproxima-se o dia 10 de junho, dia que Portugal escolheu para sua data nacional, uma data que é, simultaneamente, a da morte de Luiz de Camões, em 1580.

Esse foi o ano em que a independência do país se perdeu para a Espanha, por seis décadas. Foi recuperada em 1 de dezembro de 1640, uma data que, oficial ou privadamente, sempre comemorarei.

Acho que diz muito de um povo escolher, como sua data identitária, o dia triste da morte de um poeta. Não sei o que os poetas portugueses pensarão disso. Ficarão orgulhosos? Ou, como Woody Allen, acharão que a melhor maneira de garantirem a imortalidade seria, de facto, não morrerem?

Há dias, Eduardo Lourenço, numa entrevista, revelava que o único livro que sempre o acompanhava nas viagens era uma edição de bolso de "Os Lusíadas". Embora Camões, vale a pena lembrar, seja muito mais do que esse poema épico. Faço parte de uma geração que foi academicamente educada a "não gostar" de Camões, ao forçarem-me a "dividir as orações" em "Os Lusíadas", em lugar de me revelarem aquela obra como um percurso ímpar pela graça da nossa História. Felizmente, consegui ultrapassar o trauma, a tempo.

Aqui por Paris, vamos, este ano, e uma vez mais, celebrar Camões, por volta dessa data. 

Na Embaixada, vamos organizar uma conferência, por uma especialista de Camões, a professora universitária Maria Vitalina Leal de Matos, sobre o tema "Camões: l’homme, l’oeuvre et le mythe”. Será na terça feira, dia 5 de junho, pelas 18,30 horas, no 3 rue de Noisiel, sendo o metro mais próximo o "Porte Dauphine". Por razões de espaço, as entradas não são livres. Quem quiser assistir, deve solicitar um convite pelo telefone 01 53 92 01 00 ou, de preferência, pelo mail: instituto.camoes.paris@wanadoo.fr.

Na imagem deste post, estão as escadas da avenue Camoëns (como os franceses chamam a Camões), junto ao boulevard Delessert, muito próximo do Palais de Chaillot, no lado do Sena oposto à Tour Eiffel. Na sua base está, desde 1987, este monumento ao poeta, de autoria de Clara Meneres. No dia 10 de junho, tal como em todos os anos passados, o pessoal da Embaixada de Portugal irá, pelas 11.00 horas, colocar aí uma coroa de flores. Quem quiser acompanhar-nos será muito bem vindo.

quinta-feira, maio 24, 2012

Samuel Pisar

Há dias em que, por precipitação, falamos demais. Ontem, para mim, foi um deles.

Num jantar, aqui em Paris (alguns comentadores acham que a vida dos diplomatas é feita de jantares: é verdade, temos o hábito, quiçá excessivo, de jantar uma vez por dia), fiquei sentado próximo de um cavalheiro, já de certa idade, que, em determinado momento, e tendo sabido que eu era português, se referiu a uma homenagem que vai ser prestada, na UNESCO, a Aristides de Sousa Mendes. Revelou-me estar envolvido na organização e eu congratulei-me logo com isso, tanto mais que, como o informei, era agora o representante português na UNESCO e também ia colaborar no evento. Porque, à mesa, havia uma senhora de permeio e porque ele falava em voz bastante baixa, não tinha ouvido bem o seu nome. 

A certo passo da conversa, ainda sob o tema Portugal, perguntou-me por Mário Soares e pela sua "simpática esposa", que conhecia bem. Disse-lhe as últimas notícias que sabia de ambos, tendo ele acrescentado: "Um livro meu tem um prefácio de Mário Soares". Com um orgulho algo adolescente (cada vez mais me convenço que nós "adolescemos" com a idade), saiu-me de imediato: "Tem graça! Eu também tenho um livro prefaciado por Mário Soares". Sorrimos e o jantar lá prosseguiu.

Minutos depois, perguntei discretamente à senhora que se interpunha entre mim e o tal cavalheiro, já octogenário: "Tem ideia de como se chama o seu vizinho do lado? Não consegui ouvir o nome dele...". A senhora olhou para o pequeno papel que identificava o conviva e disse, baixo: "Samuel Pisar".

Samuel Pisar? "O" Samuel Pisar, nascido na Polónia, que estivera detido em Auschwitz, que escapou miraculosamente das garras de Mengele e de outros cenários de horror, cujo pai fora morto pela Gestapo? "O" Samuel Pisar que, no fim da guerra, se formara em Oxford e na Sorbonne, e que, naturalizado americano, dera aulas em Harvard e fora assessor económico de John Kennedy? Olhei de viés e, com uma curiosidade acrescida, procurei escutar algo que ele dizia para o outro lado da mesa. Nada de decisivo, apenas elogiava a textura dos espargos que estavam a ser servidos, agora que é a época deles.

No final do jantar, num canto, falámos um pouco da Europa e do lugar de Portugal nela. Samuel Pisar é hoje um senador de uma vida que, como poucos, soube recriar a partir da barbárie e que um dia, ao que agora recordo, escreveu: "hoje, sobrevivente dos sobreviventes, sinto uma obrigação de transmitir algumas verdades que aprendi na minha passagem pelo mais baixo da condição humana e, depois, por alguns dos seus momentos altos".

Nunca me perdoarei de ter, inadvertidamente, "rivalizado" com Samuel Pisar, ao reivindicar ter, como ele, um prefácio de Mário Soares. Ou melhor, e pensando bem, talvez tenha a obrigação de ficar contente por poder ter, com ele, esse honroso ponto em comum. 

sexta-feira, maio 18, 2012

Portugal e a guerra

Meaux é uma pequena cidade na periferia de Paris. Há meses, foi lá inaugurado um museu sobre a primeira Guerra Mundial.

Ontem, aproveitando o feriado, visitei esse museu e recolhi esta imagem num documento comemorativo da nossa participação naquela guerra. Verdade seja que foi a única referência a Portugal que por lá encontrei...

Para além dos estudiosos e de algumas pessoas ligadas à zona onde teve lugar a batalha de La Lys, em 9 de abril de 1918, raro é o francês que não se surpreende quando lhe falo na nossa participação na primeira Guerra Mundial.

Em tempo: para alguns comentadores, críticos do nosso comportamento em La Lys, deixo aqui e aqui o que sobre isso penso.

domingo, abril 15, 2012

La Lys

Fomos algumas dezenas, neste sábado, entre portugueses e franceses, como todos os anos acontece, a saudar a memória de quantos combateram na batalha de La Lys, em abril de 1918. No cemitério militar português, em Richebourg, e no monumento aos soldados portugueses mortos, em La Couture, todos cumprimos um simples dever de gratidão e de respeito.

Faz muito bem, em particular em tempos difíceis, revisitar estes lugares, que nos ajudam a melhor entender o que significa ser português no mundo.


quinta-feira, março 22, 2012

Argélia

É muito interessante acompanhar o modo como a França de hoje, 50 anos depois da independência da Argélia, reflete sobre esse passado relativamente recente, feito de uma guerra sangrenta e de grandes sacrifícios humanos, de parte a parte.

A guerra da Argélia mudou a França e colocou-a, a partir de então, sob uma herança histórica muito particular. Pode dizer-se que, durante muitos anos, houve por aqui como que um esforço, nunca abertamente assumido, de afastar o país desse tempo, talvez numa consciência subliminar de que a sua evocação arriscaria acordar velhos fantasmas. Curiosamente, terá sido o agravamento das tensões político-religiosas dentro da própria Argélia, a partir dos anos 90, que provocou, na França, o início de um surto de reflexão sobre aquela que foi a mais traumática das independências dos territórios sob sua administração. Dezenas de livros e muitos filmes passaram a trazer a um melhor conhecimento pelas novas gerações desse período convulso. Ouvindo testemunhos do período de confrontação, de ambos os lados do Mediterrâneo, fica uma clara sensação de que ainda há feridas bem abertas que, quem sabe?, talvez só possam ter a ganhar com este exorcismo de memória. É que a vida também prova que meter o passado sob o tapete só aumenta o risco de, um dia, nele tropeçarmos.

quarta-feira, março 21, 2012

Crise académica de 1962


Comemoram-se, por estes dias, os 50 anos do movimento de agitação universitária que ficou conhecido, entre nós, pela “crise académica de 1962”. No ano anterior, a ditadura tinha passado pelo seu “annus horribilis”, desde o início da guerra em Angola até à perda da soberania sobre a possessões na costa da Índia, passando por diversos outros episódios que abalaram o regime, como o “golpe de Beja” ou o assalto ao paquete Santa Maria. No meio de tudo isto, Salazar conseguiu sobreviver ao “golpe Botelho Moniz”, uma tentativa de “pronunciamento” palaciano, cujo fracasso pode ter sido responsável pelos 13 anos de guerra colonial que se seguiram - uma triste aventura nacional contra a História.

Em Lisboa, nesse início de 1962, o mundo universitário iniciou um ciclo de inquietação que, com surtos irregulares, nunca mais iria parar, até ao 25 de Abril. Era essa a juventude que o regime ia utilizar como tropa de choque nas guerras coloniais, inicialmente em Angola (1961), depois em Moçambique e na Guiné (1964). Atravessada pelos ventos de liberdade que haviam soprado forte aquando da candidatura de Humberto Delgado (1958), com o “putchismo” militar a espreitar nas Revoltas da Sé (1959) e de Beja (fim de 1961), a “crise" de 1962 demonstrou também que o episódio Botelho Moniz não havia esgotado as tensões dentro do próprio regime: a demissão de Marcelo Caetano, de reitor da universidade de Lisboa, em solidariedade com os estudantes, fazia transparecer algum mal-estar e revelava que alguns preparavam já o pós-salazarismo.

A crise académica de 1962 é já vivida num interessante compósito ideológico que, a partir daí, vai passar a marcar o mundo associativo universitário. Do cultivo dos valores do republicanismo tradicional, que até então estivera sempre no eixo de toda a luta oposicionista, os novos tempos mostravam a prevalência de uma agenda cada vez mais socializante, com uma forte e tendencialmente hegemónica presença do PCP, mesclada com um catolicismo radical emergente e até alguma sedução pelo modelo castrista (bem presente na LUAR). Só a partir de 1962, com a cisão marxista-leninista protagonizada por Francisco Martins Rodrigues, é que os grupos maoístas viriam a imiscuir-se nessa luta.

Basta olhar para as lideranças académicas de 1962 para podermos entender o que aí vinha. Ao lado de Jorge Sampaio, de uma esquerda marxista não-alinhada, apareciam nomes como Vítor Wengorovius, ligado à nova “inquietação” católica (nascida, organizativamente, depois da “carta do Bispo do Porto” e do "documento dos 101”), Eurico Figueiredo, importante quadro do PCP, ou José Medeiros Ferreira, que seria candidato da "oposição democrática" às "eleições" legislativas de 1965, em cujo perfil político se projetava já o socialismo democrático, que haveria de dar origem ao PS, mais de uma década mais tarde. Com exceção dos maoístas, pode dizer-se que na crise de 1962 estão presentes as linhas fundamentais da movimentação política oposicionista dos anos seguintes, que iriam ter expressão organizada (e dividida) nas "eleições" legislativas de 1969 e, de uma forma singularmente bastante unitária, no exercício idêntico em 1973.

A crise académica de 1962 não se ter ficou por Lisboa, alastrando também às comunidades académicas de Coimbra e do Porto, onde, a partir de então, nas associações ou nas "pró-associações", as movimentações políticas entraram num crescendo. Todo o mundo universitário português, a partir desse ano charneira de 1962, se tornou num palco fundamental para a luta política contra o regime.  

sexta-feira, março 02, 2012

Manuel Sá Machado

Na história do Ministério dos Negócios Estrangeiros português há um nome, pouco conhecido pelas atuais geração, a quem a carreira diplomática muito ficou a dever: Manuel Sá Machado. Ontem à noite, uma amiga estrangeira falou-me dele, com grande admiração.

Manuel Sá Machado estava a trabalhar no MNE, na secção do "Pacto do Atlântico", na altura do 25 de abril. Homem de conhecido perfil democrático, tinha travado conhecimento com o oposicionista Victor da Cunha Rego, ao tempo em que servira como diplomata no Brasil. Cunha Rego acabara de ser escolhido por Mário Soares, logo em Maio de 1974, para seu chefe de gabinete nas Necessidades. E, com naturalidade, chamou Sá Machado para trabalhar junto de si.

Como relata o embaixador Calvet de Magalhães no seu trabalho "O 25 de abril e as Necessidades", Manuel Sá Machado era "um funcionário excecional. Além das suas invulgares qualidades era uma pessoa de um enorme bom-senso, trato cordial e raras qualidades de caráter. O Dr. Cunha Rego indicou-o ao Dr. Mário Soares como a pessoa idónea para o informar sobre tudo o que respeitava ao ministério e aos seus funcionários".

Em vários livros e conversas, Mário Soares já revelou que a imagem que, até ao 25 de abril, criara do MNE e, na generalidade, da carreira diplomática portuguesa, não era muito lisonjeira. Porque a diplomacia aparecia ligada à primeira linha da ação internacional de defesa da política colonial do regime e porque também se suspeitava que a polícia política utilizava certas redes diplomáticas e consulares para espiar democratas no exílio, era perfeitamente natural que o MNE surgisse, aos olhos dos opositores do regime, como um núcleo funcional merecedor de muito escassa confiança. Em vários setores políticos do novo poder cedo surgiu a ideia de proceder a uma ampla "vassourada", que afastasse um grande número de diplomatas e, em sua substituição ou para um seu eficaz enquadramento, garantisse o rápido recrutamento de uma nova classe "diplomatas da democracia", oriunda dos meios políticos vitoriosos.

Ora foi precisamente a credibilização da carreira, ou melhor, a certificação do profissionalismo da grande maioria dos diplomatas portugueses, a tarefa de que se encarregou Manuel Sá Machado. Este nosso colega terá conseguido explicar a Mário Soares que, com algumas exceções, tinha ao seu dispor, para conduzir a política externa, um corpo dedicado e qualificado de funcionários de grande lealdade à causa pública, com sólida experiência, perfeitamente preparados para sustentarem o novo tempo internacional que se abria à diplomacia portuguesa. Mário Soares acreditou em Sá Machado e a carreira soube corresponder a essa confiança.

Nunca conheci pessoalmente Manuel Sá Machado, embora talvez o possa ter cruzado nos corredores do MNE, antes da sua prematura morte, creio que em 1977. Mas a conversa que ontem tive lembrou-me o dever de deixar aqui uma nota de admiração e de gratidão pela ação desse colega, que ajudou a que a carreira diplomática portuguesa não tivesse de passar por desnecessários tempos traumáticos. E, mais importante que tudo, que a diplomacia portuguesa pudesse preservar, para além dos ciclos políticos, o seu perfil de serviço público, competente e leal.

sábado, fevereiro 25, 2012

Selassie

O anedotário popular português durante a ditadura era feito de pequenas historietas, que se pretendiam ridicularizadoras do regime e das suas figuras. Vistas à luz do humor de hoje, essas graças aparecem de uma inocuidade quase infantil. Mas, à época, repetidas à boca pequena nos empregos e nos cafés, constituiam-se como um subtil discurso de resistência, denegridor da seriedade formal com que as personagens do poder sempre gostam de se revestir.

Uma dessas historietas dizia respeito à visita a Portugal, em 1959, do imperador da Etiópia, Hailé Selassie. A visita, integrada numa frustrada sedução de líderes "do sul" para amenizar a pressão internacional sobre a política colonial portuguesa, processava-se cerca de um ano depois da grande "chapelada" eleitoral que havia colocado o contra-almirante Américo Tomaz no palácio de Belém. O sufrágio havia sido comprovadamente recheado de fraudes, o que, para muitos, terá inviabilizado a eleição do candidato opositor, o general Humberto Delgado. Por essa razão, a legitimidade política de Tomaz, como presidente, era, à época, ainda muito contestada em largos setores portugueses.

O Negus foi recebido no Cais das Colunas, em Lisboa, em "grande estadão", pelo novo presidente da República (não consegui encontrar uma foto conhecida desse encontro, com Tomaz de imponente bicórnio). E é assim que a pequena "história" regista o que teria sido o primeiro contacto entre os dois:

- Eu sou Américo Tomáz, presidente de Portugal.

- Eu Selassie (leia-se "sei lá se é)...

Ontem, ao verificar que a missão da troika vai passar a ser dirigida pelo etíope Abebe Selassie, não pude deixar de me lembrar da anedota. Com a certeza plena de que a curiosidade fonética do nome do novo "fiscal" não deixará de acordar entre nós, uma vez mais, o inesgotável e corrosivo poder do riso, qualidade essa que nunca ninguém nos conseguirá confiscar, por mais amarelo que ele possa andar, nos dias que correm.

segunda-feira, fevereiro 06, 2012

Isabel II

Um grande amigo, residente no Sri Lanka, mandou-me há pouco algumas belas fotografias da visita que a raínha Isabel II, de Inglaterra, fez a Portugal, em 1957, neste dia em que se celebra o 60º aniversário da sua assunção formal de funções. 

Na imagem que reproduzo, vê-se a soberana britânica com a mulher do nosso presidente da República, Berta Craveiro Lopes. E, também, o ministro dos Negócios Estrangeiros de então, Paulo Cunha, à conversa com o duque de Edimburgo.

A visita de Isabel II a Portugal fez parte de outras operações políticas e protocolares de idêntica natureza, muito ligadas à necessidade de garantir apoios à política colonial portuguesa. Lembro, neste contexto, a visita, em 1959, do imperador da Etiópia, Hailé Selassié (que, tal como a raínha, também fez uma vistosa entrada pelo Cais das Colunas), e dos presidentes da República do Brasil, Café Filho (1955) e Juscelino Kubitschek (1960), bem como do presidente Sukarno, da Indonésia (1960) e do rei da Tailândia (1960).

Em todos os casos, a Baixa lisboeta foi cenário de cortejos muito bem recheados de assistência, de que nos ficaram, para sempre, imensas fotografias a-preto-e-branco em "O Século Ilustrado". Mas pode dizer-se que as visitas de Juscelino Kubitschek e Isabel II foram, sem sombra de dúvida, as que mobilizaram um público mais sinceramente motivado. Isabel II viria a Lisboa mais tarde, em 1985, numa visita já sem o fausto de 1957.

Para se medir melhor a longevidade política da soberana britânica, consulte-se aqui.

terça-feira, outubro 04, 2011

O 5 de Outubro

Em Portugal, no tempo da ditadura, o 5 de Outubro, dia de implantação da nossa República, era uma data regularmente aproveitada pelos oposicionistas para celebrar a memória da democracia.

O curioso é que, ao tempo, alguém dizer-se "republicano", num regime que não tinha coragem de se afastar terminologicamente do conceito, era quase um ato de coragem, porque afirmava uma explícita rejeição do regime instaurado em 28 de maio de 1926. Ou, muito simplesmente, significava uma implícita colocação no campo da "oposição" ao Estado Novo, cujos defensores eram então designados, até pelos próprios, como a gente da "situação".

Nesses tempos, antes da Revolução de abril, recordo-me de ter participado em algumas iniciativas oposicionistas por ocasião do 5 de outubro. Eram, vulgarmente, romagens a cemitérios lisboetas onde estavam sepultadas figuras republicanas. Um dos momentos altos, nessa data, quase sempre alvo da repressão policial, consistia numa (muitas vezes apenas tentativa de) concentração junto ao monumento a António José de Almeida, ao Arco do Cego. Nunca esquecerei a figura magra, alta e esquálida de um homem que sempre aparecia nessas manifestações em Lisboa, com uma grande bandeira portuguesa, que a polícia, mesmo nos momentos de perseguição aos ajuntamentos, se via obrigada a respeitar. Não sei se a esse homem chegou a ser atribuída a Ordem da Liberdade. Bem a mereceria.

No ano de 1969, passei a data de 5 de outubro em Vila Real. Ao tempo, preparávamos no distrito o movimento da Oposição democrática (a Comissão Democrática Eleitoral, CDE) que haveria de defrontar a lista local da União Nacional. Contrariamente às listas CDE que haviam sido criadas em Lisboa, Porto e Braga, numa base um pouco mais radical, as CDE de província eram movimentos unitários onde se encontrava um pouco de tudo - republicanos "reviralhistas", monárquicos em aberta rutura com o regime, católicos em curso de dissidência com a hierarquia, socialistas de vários matizes, os comunistas "oficiais" do PCP e tantos outros, menos ou mais esquerdistas (como era o meu caso), sem filiação mas com uma imensa vontade de ver o Estado Novo pelas costas.

Organizado por um grupo liderado por essa grande figura de democrata que era o médico Otílio de Figueiredo, teve lugar, na noite de 4 de outubro de 1969, no restaurante Espadeiro, um jantar "oposicionista", que comemorava o "5 de outubro". Nele tomavam parte as figuras mais proeminentes da Oposição do distrito, tendo à frente, além do próprio Otílio de Figueiredo, José Alberto Rodrigues, Júlio Montalvão Machado e Camilo de Sousa Botelho. Eu e um grupo de jovens que fazíamos parte das estruturas organizativas da CDE de Vila Real decidimos dissociar-nos desse ato, por termo-lo considerado uma manifestação "burguesa" e saudosista. Só aparecemos para o café... No meu caso, fui mais longe: publiquei, na véspera, um artigo algo provocatório, no jornal local "A Voz de Trás-os-Montes", onde afirmava (e cito de cor) que "a nós não nos interessa nada o 5 de outubro de 1910, mas apenas o 5 de outubro de 1969". Os respeitáveis democratas vilarealenses devem ter olhado com displicente magnanimidade para essa nossa descabida ousadia. Só assim se compreende que tenham continuado a aceitar a nossa colaboração, nessa bela aventura que foi a campanha para as "eleições" para a Assembleia Nacional de que já falei aqui, aqui e aqui

sexta-feira, setembro 23, 2011

Protocolo

Estive ontem numa palestra proferida pelo antigo chefe do governo espanhol, José Maria Aznar. 

O "presidente del Gobierno" foi uma figura marcante da vida política espanhola, titulando oito anos consecutivos de liderança. A Espanha vivia então os tempos de uma economia de sucesso, com uma forte influência na vida europeia. A isso correspondeu um momento de uma nova afirmação internacional de Madrid, com algumas cambiantes no próprio perfil externo do país, de que a mais notória terá sido o forte alinhamento político com os EUA, a anteceder a respetiva intervenção no Iraque, em 2003.

Uma momentânea hesitação ocorrida na definição do lugar de Aznar, na mesa onde ontem se sentavam os participantes no debate, trouxe-me à memória uma imagem que revela bem como o protocolo pode ter uma importância decisiva na vida política.

Se olharem para a fotografia acima, todos identificarão os quatro chefes de governo que, em 17 de março de 2003, estiveram na chamada "cimeira dos Açores". Não obstante serem quatro, fica claro que a centralidade da imagem está focada em George W. Bush, que tem à sua direita Tony Blair e, à esquerda, José Maria Aznar, sobre cujo ombro Bush colocava uma amigável mão. O chefe do executivo português, embora anfitrião da cimeira, surge num extremo, claramente secundarizado na imagem de grupo.

Curiosamente, as coisas não eram assim... segundos antes desta fotografia. No início da cena, Aznar estava colocado à direita de Durão Barroso, o que conferia ao chefe do executivo português um lugar central, e natural, num ato que decorria em solo português. Porém, quem tiver observado o filme da época terá verificado que o chefe do executivo espanhol, com o instinto de quem percebe que as fotos têm uma relevância histórica forte, abandonou a companhia do seu colega português e foi colocar-se ao lado do titular da Casa Branca. E, na sua perspetiva, teve toda a razão para o fazer. A prova é que grande parte das fotografias que surgiram posteriormente na imprensa internacional excluíram o então chefe do executivo português (basta ir ao "Google images" para testar isso).

As coreografias protocolares são, por vezes, da maior importância política.

sábado, julho 09, 2011

Otão de Habsburgo

Só hoje falo do desaparecimento de Otão de Habsburgo, que teve lugar há já uns dias. Mas este atraso não tem a menor importância, porque também ele fez esperar a morte pelos muitos e bons 98 anos.

Sai de cena um descendente de outra Europa, o herdeiro virtual do império austro-húngaro. Acabou por ser protagonista ativo da Europa contemporânea ao manter-se, durante 20 anos, deputado ao Parlamento Europeu e um ardente defensor da unidade europeia. Politicamente cultivava opções ideológicas muito conservadoras.

Otão de Habsburgo viveu uma parte da sua vida em Portugal. Foi um dos beneficiados com os vistos dados por Aristides Sousa Mendes, o que permitiu à sua família atravessar a fronteira franco-espanhola e seguir para o exílio nos Estados Unidos, através de Portugal.

Conta-se que, um dia, ao ouvir dizer que havia um jogo de futebol Áustria-Hungria, terá perguntado: "contra quem?".

domingo, abril 17, 2011

La Lys (2)

Todos os anos, por este período, Portugal homenageia os mortos que deixou por terras da Flandres, na campanha do Corpo Expedicionário Português, em 1918.

É uma cerimónia de grande dignidade, em que as autoridades francesas e portuguesas, civil e militares, prestam tributo ao sacrifício de quantos perderam a vida na batalha de La Lys, muitos dos quais jazem no cemitério militar português de Richebourg.

No passado sábado, lá estive nessa evocação sempre muito tocante, tendo-me cabido, como é hábito, tomar a palavra diante do monumento aos soldados portugueses, no centro da localidade de La Couture.

Deixo registo do que disse na cerimónia (em francês e em tradução portuguesa).

La Lys (1)

É uma senhora baixa, sorridente, agora com 84 anos, que sempre encontro nas cerimónias comemorativas da batalha da La Lys, em terras da Flandres. 

Felícia Assunção é filha do soldado português José Manuel Assunção, que, em 1918, conheceu a francesa Mélanie Beugny, com quem teve 15 filhos.

Felícia é a mais popular porta-bandeira destas comemorações, tendo sido distinguida pela Liga dos Combatentes, durante uma recente deslocação a Lisboa.

domingo, abril 10, 2011

La Lys e a Legião Portuguesa

No próximo fim de semana, vamos de Paris a La Lys, perto de Lille, rememorar, como anualmente fazemos, a batalha trágica em que morreram muitos militares portugueses, no termo da primeira Grande Guerra.

A batalha teve lugar em 9 de abril de 1918. Na minha infância, em Vila Real, a data era comemorada com uma romagem ao monumento a Carvalho Araújo, na avenida com o mesmo nome. Nas comemorações, tinha um papel mobilizador a Legião Portuguesa que, nas vésperas, vendia pela cidade miniaturas de capacetes militares, para pôr ao peito, financiando a Liga dos Antigos Combatentes.

As novas gerações desconhecem essa organização, criada num tempo em que o Estado Novo tinha uma vocação protofascista. A Legião era uma espécie de milícia armada, comandada por figuras políticas do regime ou por militares na reserva, que frequentemente era encarregada de levar a cabo algum "dirty work", muitas vezes em íntima ligação com a polícia política.

Nos anos 50, o regime pressionava fortemente os funcionários públicos a fazerem parte da Legião. Muitos aceitavam, as mais das vezes por temor a represálias do que por uma sincera adesão ideológica, outros recusavam, com dignidade e coragem. Após o desencadear da guerra colonial, a Legião desenvolveu, no seu seio, a Defesa Civil do Território, que tentou, sem grande sucesso, mobilizar esses setores oficiais do país para um cenário improvável de guerra no território europeu.

Com o tempo, com a desaparição do entusiasmo dentro do próprio regime pela "Revolução Nacional", a Legião foi-se "apagando" na província, embora subsistindo com algum vigor em Lisboa. A organização destacou-se em ações provocatórias perante a episódica emergência de movimentações democráticas, nos chamados "períodos eleitorais". Foi também responsável por algumas ações de vandalismo, como o ataque à Sociedade Portuguesa de Escritores (em 1965) ou à Comissão Democrática Eleitoral (CDE) de Lisboa (em 1969). A Legião, em especial através da sua FAC (Força Automóvel de Choque), levou ainda a cabo diversos atos de natureza repressiva e persecutória, alguns já no período do marcelismo.

Nessa fase terminal da "situação" (delicioso nome dado popularmente à ditadura, por contraste com a "oposição"), a Legião já se não sentia muito à vontade, tendo ainda como principais dirigentes figuras ligadas a setores de saudosismo salazarista, que contestavam a "primavera marcelista". Recordo, porém, em 1971, já na chamada "abertura" marcelista, o cerco feito por elementos da FAC a uma reunião do associativismo universitário, no Instituto Superior Técnico, que obrigou os integrantes da mesma a terem de saltar muros e a algumas corridas pela madrugada lisboeta.

Nesses últimos anos do regime, a Legião havia sido reforçada por algum "lumpen", por elementos da antiga OPVDCA (uma organização paramilitar criada em Angola, em 1961) e por militares desmobilizados. Ao que julgo saber, a ação da Legião Portuguesa concentrava-se então em ações de segurança de instalações petrolíferas na zona oriental de Lisboa. No 25 de abril, alguns dos revoltosos temiam, por mero desconhecimento, a força da Legião Portuguesa e a sua capacidade de resistência. Afinal, a organização viria a revelar-se um mero "tigre de papel", para usar uma expressão à época muito em voga.

Vale a pena reconhecer, em abono da verdade, que, ao menos no que respeitava às comemorações da batalha de La Lys, a Legião acabou por desempenhar um papel meritório. Era patrioticamente pedagógico, para as crianças das escolas, ver de perto o valoroso soldado Milhões, bem como os seus colegas veteranos da primeira Grande Guerra, orgulhosos com as suas condecorações ao peito, perfilados em frente ao monumento a Carvalho Araújo, ouvindo hinos e honras militares. 

Hoje, já não há velhos militares vivos dessa guerra e nem sei se alguém honra, em Vila Real, os mortos de La Lys. Aqui em França, e desde há muito, os embaixadores de Portugal e as Forças Armadas portuguesas cumprem, com empenhamento, esse ritual de respeito. No meu caso, regresso, com gosto, ao passado. Agora sem a Legião Portuguesa, claro.

Confesso os figos

Ontem, uma prima ofereceu-me duas sacas de figos secos. Não lhes digo quantos já comi. Há poucas coisas no mundo gustativo de que eu goste m...