A propósito de uma troca de comentários sobre os diplomatas e a escrita, suscitado pelo anterior post sobre Eça de Queirós, lembrei-me de anotar aqui hoje a figura de um meu predecessor neste posto, o embaixador Marcello Mathias (1903-1999).
Em 1973, surgiu nas livrarias de Lisboa um romance, editado pela Bertrand, com o título "Lusco Fusco", assinado por Pablo la Noche. A obra tinha uma real qualidade literária, apoiada numa escrita culta, um tanto nostálgica, mas com passagens de uma vivacidade inesperada. Foi bem acolhida pela crítica e viria a obter um prémio literário. Veio então a saber-se que o autor era, nem mais nem menos, o embaixador Marcello Mathias, o que suscitou grande curiosidade. Mais tarde, o romance veria a ser editado em França pela Robert Laffont, onde ganhou também um prémio literário, já com o nome verdadeiro do autor e tendo por título o pseudónimo utilizado na edição portuguesa: "Pablo la Nuit". Em Portugal, foi recentemente reeditado pela Quetzal.
Marcello Mathias é uma das grandes figuras da diplomacia do Estado Novo. Muito próximo de Salazar, seria por este convidado para o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros, função que exerceu entre duas estadas como embaixador em Paris, cidade onde permaneceu mais de duas décadas. É do maior interesse para a história contemporânea o livro que publicou sob o título "Correspondência Marcello Mathias/Salazar (1947/1968)". Num registo de curiosidade, por ele se fica também a saber algo mais do propalado romance sentimental entre o ditador e a jornalista francesa Christine Garnier.
Deve muito à habilidade e inteligência diplomática de Marcello Mathias o resultado favorável da complexa negociação que permitiu a ida para Portugal do valiosíssimo espólio artístico que Calouste Gulbenkian possuía em Paris, uma tarefa para a qual contribuiu a sua grande influência junto do poder político francês da época. O facto muito excepcional de, como embaixador, ter recebido das autoridades francesas a Grand-Croix de la Légion d'Honneur diz muito.
Há já uns bons anos, num jantar algures no mundo, ao lado de um dos seus filhos, o também meu predecessor em Paris, embaixador Leonardo Mathias (outro filho, Marcello Duarte Mathias, é um consagrado escritor e também embaixador), Manuela Margarido, à época representante diplomática de S. Tomé e Príncipe em Bruxelas, contou uma história curiosa. Com várias peripécias interessantes, Manuela - uma personalidade notável, infelizmente já falecida - revelou que fora graças a uma intervenção de Marcello Mathias que, um dia, conseguira evitar ser presa pela PIDE.
À conversa, estavam presentes dois jovens governantes da mesma geração política, um português e outro estrangeiro. Ambos partilharam uma forte e quase jocosa surpresa pelo facto de um dignitário do anterior regime se ter recusado a ser cúmplice de uma arbitrariedade. Talvez porque não percebessem que, sendo embora um fiel "da situação" - como se designavam os apoiantes do regime -, Marcello Mathias era um homem que havia já tido um papel importante na libertação de Alain Oulman, o compositor francês de Amália, das cadeias do regime.
Na troca de palavras que se seguiu, para além de terem provavelmente entendido que as voltas da vida não são tão lineares como as lógicas das ideologias, só posso dizer que os dois governantes aprenderam algumas coisas sobre a dignidade, coisa que o exercício episódico do poder nem sempre ensina.