Numa nota interna, o nosso MNE registou que Portugal nunca tinha expressamente reconhecido Israel, razão pela qual o respetivo governo não fora incluído na comunicação geral através da qual dera conta ao mundo do novo regime.
Porque os tempos corriam a favor de um posicionamento prioritário de abertura da diplomacia portuguesa face ao então chamado "Terceiro Mundo", em que os países árabes tinham um papel predominante, e de que decorria naturalmente uma atitude mais pró-palestina, o período pós-Revolução não parecia muito favorável a uma aproximação com Tel-Aviv.
Melo Antunes, ministro dos Negócios Estrangeiros, assumiu então posições públicas desfavoráveis aos desígnios israelitas e abriu caminho a que, nas Nações Unidas, num voto que viria a ser considerado muito polémico, o nosso país se ligasse a uma resolução que equiparou o sionismo ao racismo (72 votos a favor, 35 contra e 32 abstenções), afastando-se, neste caso, da posição de vários países ocidentais.
Julgo que se pode considerar que, tendo sido este o gesto anti-israelita mais extremado assumido pela diplomacia portuguesa, ele acabou por criar, paradoxalmente, um ambiente propício a uma viragem na posição futura de Portugal face a Israel. Jaime Gama, na Assembleia Constituinte, apresentou um requerimento que indiciava a futura atitude que o PS iria ter neste tema.
Foi o Partido Socialista que esteve no centro dessa nova atitude portuguesa. Com efeito, estando o Partido Trabalhista no poder em Israel, a lógica de apoios dentro da Internacional Socialista acabou por favorecê-lo. Mário Soares veio a mostrar-se crescentemente aberto a favorecer uma maior aceitação de Israel no quadro internacional.
Ao mesmo tempo - e lembremo-nos que estávamos no tempo tenso de 1976 -, esta orientação socialista marcava também, no plano interno, o seu claro afastamento da linha "terceiro-mundista" que o PS considerava ter marcado o consulado diplomático de Melo Antunes. Aliás, o ministro militar teve o cuidado de desenvolver bem o seu ponto de vista no seu discurso de despedida do MNE.
Assim, logo no programa do I Governo constitucional, em 1976, referem-se, embora sem oferecer um sentido claro de decisão, "as questões do estabelecimento de relações diplomáticas com a China Popular e Israel".
Esta clara inflexão fora precedida de visitas partidárias a Israel de Jaime Gama e de Salgado Zenha. Porém, como bem refere Manuela Franco (*), dentro do MNE essa nova predisposição socialista não só não provocou efeitos sensíveis como suscitou algumas surdas resistências. Basicamente, e para o que contava em termos de atitude prática, a política manteve-se a mesma, mesmo sendo já Medeiros Ferreira o novo ministro.
Finalmente, em 12 de maio de 1977, ultrapassando as resistências internas da nossa diplomacia, são estabelecidas relações diplomáticas entre Portugal e Israel. Em 30 desse mesmo mês, foi negociado em Lisboa um Acordo no domínio da Agricultura e do Cooperativismo entre Portugal e Israel, o primeiro instrumento legal firmado entre os dois países. Fiz parte da delegação que negociou esse acordo.
O estabelecimento de relações diplomáticas entre dois Estados não implica, necessariamente, que haja embaixadores acreditados mutuamente, mesmo que sem a instalação física de uma embaixada.
Porém, em 16 de outubro de 1977, foi anunciado que Portugal e Israel tinham decidido elevar as suas relações diplomáticas para o nível de embaixada. Mário Soares anuncia isso em Madrid, depois de uma reunião com o líder trabalhista Yitzhak Rabin, no quadro de uma reunião da Internacional Socialista. Rabin já não era, à época, primeiro-ministro de Israel, cargo que, desde junho, era ocupado por Menachem Begin, do partido Likud, de direita.
Medeiros Ferreira, ministro dos Negócios Estrangeiros, demite-se, na sequência dessa decisão, e Soares, como primeiro-ministro, assume interinamente a pasta dos Negócios Estrangeiros. Esta interinidade manter-se-á até 30 de janeiro de 1978, altura em que Mário Soares será substituído nas Necessidades por Victor Sá Machado, do CDS, no novo governo PS-CDS.
Israel, no ano anterior, logo que isso foi possível, transformou em Embaixada o Consulado-geral que mantinha em Lisboa. Portugal, que não tinha qualquer instalação em Israel, nada fez.
A decisão de Mário Soares de anunciar um "upgrading" das relações com Israel caiu mal no mundo árabe. Nos meses seguintes, a nossa diplomacia passou então por momentos de dificuldade com os países árabes, que chegou a ameaçar os nossos fornecimentos petrolíferos e que, ao que parece, terá afetado a campanha que tínhamos em curso para candidatura a um lugar de membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU.
Fui "vítima" colateral desse anúncio: uma missão técnica à Líbia, que eu integrava, destinada a finalizar um processo de contratação de obras públicas, iniciado no ano anterior, foi sujeita a uma espécie de "quarentena" em Tripoli. Sem qualquer explicação, durante quase uma semana, colocaram-nos num hotel nos arredores da capital, sem comunicações com o exterior. Foram-nos retirados os passaportes e os bilhetes de avião. A nossa surpresa era tanto maior quanto, em dezembro do ano anterior, havíamos sido recebidos com "tapete vermelho"... Demorou alguns dias, até a questão se normalizar.
Só 11 anos mais tarde, em 1988, Portugal viria a acreditar em Telavive, embora como embaixador não residente, o nosso embaixador em Roma, Ruy Medina. E seria apenas na iminência da nossa primeira presidência europeia, em 1991, que Portugal abriu uma embaixada em Telavive, com João Quintela Paixão.
Entre 24 a 30 junho de 1978, por insistência do governo de Tel-Aviv, teve lugar a primeira missão governamental portuguesa a Israel. Era ministro dos Negócios Estrangeiros, como atrás referi, Victor Sá Machado. A delegação era chefiada pelo ministro da Agricultura e Pescas, Luís Saias e ia participar na 1ª comissão mista do acordo nesse domínio assinado cerca de um ano antes, em 30 de maio de 1977.
Algures no início desse mês, para grande supresa minha, fui chamado ao gabinete do meu ministro, que me anunciou que eu devia acompanhar Luís Saias. "Você vai ser o primeiro diplomata português a deslocar-se oficialmente a Israel". Quando eu digeria, deliciado, essa honra, Sá Machado moderou o meu entusiasmo: "Quisemos que o primeiro sinal diplomático dado da nossa parte fosse a um nível baixo. Por isso, vai você, que é o "desk" no Médio Oriente e do Magrebe".
Foi um "banho escocês", mas o melhor estava ainda para vir: "Isto é confidencial, só para si, mas é importante que saiba que é com grande relutância que o MNE se associa a esta viagem, que consideramos prematura. Porém, a decisão vem "de cima" (dando a entender que era determinada pelo primeiro-ministro Mário Soares) e por isso só nos compete fazer um "damage control". Conto consigo para evitar que o senhor ministro da Agricultura se meta por terrenos políticos, que faça declarações fora da linha oficial que Portugal mantém face a Israel e ao processo político do Médio Oriente em geral. Ele chefia uma missão puramente técnica, no quadro do acordo. Sei que conhece os parâmetros dessa nossa atitude neste dossiê, mas, no entanto, o Dr. Queiroz de Barros (um colega mais velho, chefe de repartição, que se mantinha em silêncio ao lado do ministro) dar-lhe-á todas as informações. Conto consigo!" Recordo bem ter dito a Sá Machado que iria ser difícil para mim, jovem diplomata, controlar a atitude de um governante, mas que faria o meu melhor.
A viagem lá correu "tant bien que mal". À entrada no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, os vários carimbos libios que eu levava no meu passaporte causaram visível perturbação e atrasaram a entrada de toda a nossa delegação. O ministro Saias saiu, algumas vezes, do "script" que eu, com regularidade, lhe recordava. E não consegui impedir que, no final, numa conferência de imprensa em que fui o seu intérprete (e em que traduzi, à minha maneira e da forma que achava mais adequado, aquilo que ele ia dizendo), ele convidasse o seu homólogo israelita para vir a Portugal. Recordo que Menachem Begin, do partido Likud, era o primeiro-ministro de então. E, para o que conta, esse ministro da Agricultura acabou por nunca vir a Portugal: chamava-se Ariel Sharon, imaginem!
Como atrás se disse, a nossa Embaixada em Tel-Aviv só viria ser aberta em 1991, a tempo de poder acompanhar a nossa segunda presença no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A partir daí, as relações entraram num registo de normalidade, com Portugal a assumir sempre uma posição de grande equilíbrio que, basicamente, tentava conciliar o direito à criação de um Estado palestino e a necessidade de preservação de um Estado de Israel com fronteiras reconhecidas.
Em Novembro de 1995, teve finalmente lugar a primeira visita de um chefe de Estado português a Israel. Então já no exercício de funções políticas, coube-me acompanhar Mário Soares nessa viagem, em substituição do ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama.
Vivia-se um tempo de grandes esperanças para o processo de paz no Médio Oriente, posterior aos acordos de Oslo e Washington. Mário Soares, que estava no fim do seu segundo mandato, era um interlocutor altamente respeitado pelo primeiro-ministro Yitzhak Rabin e pelo MNE Shimon Peres.
Nas várias conversas que ambos tivemos com estes responsáveis israelitas, Portugal foi estimulado a ajudar, nomeadamente no âmbito europeu, aos esforços de reconstrução económica que a Autoridade Palestina tinha em curso na Cisjordânia e, em especial, em Gaza.
Foi em Gaza, na noite de 4 de Novembro de 1995, quando ambos jantávamos com Yass+-er Arafat, líder da Autoridade Palestina, que nos chegou a notícia do assassinato de Rabin. Com quem tínhamos estado em Jerusalém nessa manhã e em casa de quem tínhamos almoçado na véspera. À margem desse almoço, Soares pediu-me que relatasse a Rabin o episódio em que ele, quase duas décadas antes, tinha "perdido" um ministro dos Negócios Estrangeiros por divergências quanto a Israel (**). Assim fiz. Dois dias depois, Soares e eu regressámos a Jerusalém para o funeral de Yitzhak Rabin.
O resto da história é conhecida "and counting".
(*) O artigo de Manuela Franco, "O melindre do problema sionista - relações Portugal-Israel, 1947-1977", publicado no nº 11 da revista "Relações Internacionais", Junho 2006, que consultei para este e para o anterior posts, regista dados factuais do maior interesse para o período que cobre).
(**) Sem descontar que a questão de Israel possa ser uma das razões por detrás da demissão de Medeiros Fereeira, há informações de que pode ter havido outros fatores, nomeadamente quanto ao modo de intervir nas difíceis relações com Angola, na justificação da sua decisão.