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quarta-feira, maio 24, 2017

Olha a mala!

Sentado numa simpática esplanada de Aveiro, com o pôr-do-sol a aproximar-se, neste Verão "avant la lettre", leio na net a notícia da pesada condenação de Oliveira e Costa.
Do outro lado, fica a Pousada da Ria. Há muitos anos, nós e um casal amigo fomos lá ficar uma noite. Estava um funcionário na receção, a tomar conta dos nossos dados, que, amavelmente, nos esclareceu: "Não se preocupem com as malas! O meu colega vem já buscá-las!".
E, de facto, nem um minuto era volvido quando ouvi o meu amigo, atrás de mim, notar, para alguém que chegava: "Pode levar já estas. Há ainda duas sacas que eu vou buscar ao carro". E saiu, apressado.
Notei que qualquer coisa de estranho sucedia: as malas, mesmo ao meu lado, continuavam no lugar.
Olhei para trás e deparei com o olhar impassível de Oliveira e Costa, que o meu amigo, pouco dado às políticas, não identificara como secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, um "ajudante" de Cavaco Silva.
"Fiz de conta" que não tinha ouvido a cena e só mais tarde expliquei ao meu amigo quem era o pretendido "carregador" de malas.
Estes equívocos podem ocorrer.
Em 1980, na Noruega, tinha lugar uma reunião da Internacional Socialista, a que foi Mário Soares, então líder da oposição, que vinha acompanhado por Maria Barroso e Rui Mateus.
No hall do Hotel SAS a confusão era grande. Os trabalhistas noruegueses tinham uma organização pouco eficaz, ou nós é que estávamos já fartos de esperar. O embaixador português, Cabrita Matias, estava em Oslo há poucos dias e logo lhe caíra "na sopa" um peso pesado como Soares, que dava mostras, compreensíveis, de querer ir para o quarto logo que possível. O embaixador estava "elétrico", ao ver a impaciência de Soares. Eu procurara já ajuda, sem grande sucesso.
Surgiu então, perto de nós, uma senhora com ar e atividade que indiciavam pertencer à organização, com a identificação ao pescoço.
Vi o embaixador avançar para ela e, ainda à distância, dizer-lhe, no seu impecável inglês, qualquer coisa como isto: "Ó menina, pode tratar destas malas, "faxavor"?" Eu dei um salto, puxando-lhe pelo braço, evitando que ele perseguisse a senhora, que parecera não ter notado o pedido.
Apenas lhe pretendia dizer que a "menina" era Gro Harlem Brundtland, a futura líder dos trabalhistas noruegueses, que ele ainda não tivera ocasião de conhecer. Dois meses depois, a "menina" era primeira-ministra...
Isto de malas tem muito que se lhe diga!
(E o sol está a pôr-se, aqui em Aveiro!)

sábado, maio 20, 2017

Agora Marcelo Caetano

Como aqui assinalei, morreu, há dias, no Rio de Janeiro, António Gomes da Costa, um dos mais destacados líderes da Comunidade portuguesa no Brasil. 

Foi uma figura cuja ação sempre admirei, pela sua empenhada dedicação à promoção de Portugal no Brasil e ao aprofundamento das relações luso-brasileiras. Era um homem profundamente conservador, apreciador confesso das virtualidades do regime derrubado em 1974, crítico regular no novo regime então surgido.

Isso nunca o impediu de manter um relacionamento impecável com os representantes do Estado, em democracia, como foi o meu caso, entre 2005 e 2009.

Num depoimento que hoje enviei para o JL - Jornal de Letras, contei um episódio passado no primeiro encontro que tive com António Gomes da Costa, em inícios de 2005. 

Perguntei-lhe então sobre o estado de conservação da sepultura do professor Marcelo Caetano. Respondeu-me que tinha indicações de que o espaço estava bem cuidado, por pessoas da nossa comunidade. Notei, contudo, a sua surpresa, pelo facto de eu ter abordado o assunto. Expliquei-lhe – e fazia-o com total sinceridade – que era minha preocupação, como embaixador, garantir, durante o tempo que durasse a minha missão no Brasil, que o local onde estavam os restos mortais daquele antigo chefe do governo estivesse preservado com a dignidade necessária, assegurando que a embaixada tinha toda a disponibilidade para auxiliar em tudo quanto, nesse domínio, viesse a ser necessário fazer. 

António Gomes da Costa terá percebido nesse instante que a minha atitude relevava de uma leitura de Estado, muito para além das trincheiras políticas muito diversas que ocupávamos. E julgo que isso contribuiu para que, a partir daí, nos tivéssemos relacionado sempre sem o menor problema. Continuando nós, bem entendido, cada um "na sua", em matéria política.


É que uma coisa que todo o diplomata deve ter sempre bem presente, quando está em serviço no estrangeiro, é que, estando embora sob as ordens conjunturais do governo de turno, ele representa o Estado e é depositário de toda a História que o país carrega consigo. Toda, mesmo.

quinta-feira, maio 18, 2017

Photo opportunity

Um dia, num aeroporto do Brasil, cruzei-me com uma figura ligada a um derminado setor da Justiça daquele país, com quem me tinha encontrado em diversas ocasiões oficiais e com a qual mantinha uma relação cordial. Em tom casual, perguntou-se se eu conhecia uma determinada pessoa, um cidadão brasileiro. O nome nada me dizia. A figura da Justiça sorriu e disse-me que essa pessoa estava presa e que, no seu processo, constava uma fotografia tirada comigo.

Já não sei como, cheguei à conclusão de que coincidira com essa pessoa, mais de um ano antes, num jantar com uma vintena de pessoas, em casa de uma amiga comum. Puxando mais pela memória, recordei-me que, a certa altura, essa pessoa quis tirar uma fotografia com o embaixador de Portugal, provavelmente para recordação. Não tinha nenhum motivo para recusar fazê-lo e, verdadeiramente, esqueci tudo no instante seguinte.

A personagem ligada à Justiça brasileira disse-me que o assunto não tinha a menor importância, mas deu-me um conselho: quando alguém que eu não conhecesse me pedisse para tirar uma fotografia comigo, deveria tomar a iniciativa de pedir a mais alguém, que estivesse perto, para se juntar ao retrato. Isso evitaria dar a ideia de uma excessiva intimidade com o parceiro desconhecido registado na imagem. Tomei boa nota da técnica, embora depois tivesse aprendido que há outra, também eficaz, que é ter fotografias, mesmo a dois, com quase toda a gente, como faz o nosso presidente da República...

Lembrei-me disso há pouco, ao receber tristes notícias políticas do Brasil. É que, se olhar os meus arquivos fotográficos, não são poucas as fotografias que tenho com figuras políticas, brasileiras e não só, que entraram em desgraça, algumas delas presas, outras, aparentemente, com fortes probabilidades de o virem a ser.

quarta-feira, maio 17, 2017

O arroz do padre

Ao ler na imprensa de hoje que um padre italiano, conluiado com a Mafia, desviava alimentação destinada a imigrantes, a expressão "arroz do padre" veio-me à memória.

Foi há mais de 60 anos, lá por Vila Real. Eu era muito miúdo mas recordo bem uma conversa em torno de um arroz que um dia foi servido na casa onde então vivia, com os meus pais e os meus avôs. Louvava-se a qualidade ímpar de um arroz que estava a ser servido - de uma textura que nunca ninguém tinha experimentado até então (agora, depois de uma vida como "arroseiro" militante, imagino que tivesse sido o primeiro arroz agulha que nos fora dado a provar). À volta da mesa, as pessoas perguntaram-se de onde tinha surgido aquela maravilha. Foi chamada a criada (o termo "empregada" é bem mais tardio, nesse tempo em que também não havia "colaboradores" nas empresas), inquirida sobre se aquela "especialidade" (um termo muito usado à época, para qualificar algo de muito bom) fora comprado no Mário Miranda ou no Sarreiro, tradicionais provedores alimentares da casa.

A senhora surpreendeu toda a gente: "Não, esse é arroz do padre", e passou a explicar. Uma colega de uma casa vizinha alertara-a para o facto de, na sacristia de uma igreja da cidade (que não refiro, para evitar especulações dos vilarrealenses com boa memória), vendia-se arroz ao quilo, que vinha depois naqueles cartuchos de papel grosso, acinzentado. "É muito mais barato!", esclarecia a criada, ufana com a poupança introduzida no rol das compras.

Arroz à venda numa sacristia era, no mínimo um mistério, a que a sua extraordinária qualidade somava uma interrogação mais! 

Horas depois, o enigma escareceu-se: o tal padre estava a vender ao público, a granel, imagina-se que para crédito das contas da paróquia (numa versão otimista), arroz de origem americana que tinha chegado pela Caritas, para ser distribuído pelos pobres. O "desvio" era para dos os adultos da casa um tanto obsceno, numa casa por onde chegou a "circular" a "sagrada família" e onde existia um mealheiro de cartão, de cor azul clara, distribuído pela paróquia, com a inscrição rimada "um tostão por dia para os padres da freguesia".

Não sei quantos quilos de "arroz do padre" tinham sido adquiridos, não tenho registo se o prazer em consumir aquela delícia compensou o remorso de estar dela a privar os seus naturais destinatários. Só sei que o conceito de "arroz do padre" passou a ser um "benchmark" referencial, quase inatingível, para qualificar um arroz  excecional. 

Um dia, na Noruega, confrontado com um prato acompanhado de um belo "Uncle Ben's" (um notável arroz americano), lembro-me do meu pai suspirar: "É muito bom, mas nada que se compare com o arroz do padre..." 

quarta-feira, maio 03, 2017

Isabel Mota

(fotografia de João Paulo Dias)

Isabel Mota assume hoje as funções de presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. É a primeira mulher à frente dos destinos da Gulbenkian e isso não pode deixar de ser especialmente assinalado. 

Conheço Isabel Mota há muitos anos, desde que foi trabalhar para a Representação Permanente em Bruxelas, pouco após a nossa entrada para as então Comunidades Europeias, em 1986, ao tempo em que eu próprio integrava a estrutura central de coordenação da nossa integração europeia, em Lisboa. Depois, Isabel Mota foi secretária de Estado do Planeamento durante vários anos, durante os quais adquiriu uma vasta experiência nos dossiês comunitários.

Com o fim do "cavaquismo" (a Isabel não gosta muito da expressão...), Isabel Mota passou a assessorar o então líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, nas questões europeias. Eu era então o secretário de Estado dessa área. Um dia, no gabinete do então primeiro-ministro António Guterres, este combinou com Marcelo Rebelo de Sousa, na nossa presença, que seria criada uma "miniestrutura de relação permanente" entre o governo e o PSD, que "monitorizava o acompanhamento da política europeia passo-a-passo" (para utilizar as expressões usadas pelo agora presidente numa entrevista ao "Expresso", em dezembro de 2015). Essa "miniestrutura" era a Isabel e eu, que passámos a almoçar e a encontrarmo-nos com alguma regularidade. 

Embora com algumas "nuances", as posições dos dois principais partidos tinham largas similitudes no plano europeu e, muito em especial, ambas eram bem distintas, à direita, das do então muito eurocético CDS e, à esquerda, das do PCP (o Bloco estava ainda para nascer). Ficou claro que o PSD não teria um "droit de regard" sobre as posições do governo socialista mas, nas principais questões, este procuraria consensualizar com ele, na medida do possível, aquilo que viesse a apresentar em Bruxelas. E assim se fez, creio que com proveito para o país. Com a "oposicionista" Isabel Mota, que me recorde, só tive uma troca pública de argumentos, aliás bem civilizada, no "Expresso", em torno da questão da regionalização, tema que ela combatia e em que eu defendia a posição governamental, com toda a convicção pessoal que consegui mobilizar na altura para o assunto - e que, confesso, não era imensa... Às vezes, ainda nos rimos com essa polémica.

Os nossos encontros eram sempre com muito "boa onda", porque Isabel Mota é uma pessoa extremamente agradável e divertida. Julgo que conseguimos levar a bom porto aquilo de que os dois líderes políticos nos encarregaram. Anos mais tarde, em 2003, quando eu estava como embaixador na OSCE em Viena, viria a encontrar de novo Isabel Mota numa "task force" que o governo de Durão Barroso criou para acompanhar as negociações do malogrado Tratado Constitucional europeu.

Nos últimos anos, tendo eu passado a exercer as funções de presidente do Conselho Consultivo para a Delegação de Paris da Fundação, regressámos a um contacto mais regular. Sendo Isabel Mota a administradora responsável por aquela área, revelo aqui que passei a tratá-la por "chefe". Agora com a sua ascensão à presidência, vou ter de descobrir um qualificativo que possa representar um "upgrade" a esse título!

Só posso desejar à minha querida amiga Isabel Mota os maiores sucessos na presidência dessa notável instituição "do bem" que tem o nome de Fundação Calouste Gulbenkian. E aproveito também para, neste momento, deixar um abraço de grande amizade a Artur Santos Silva, que abandona a chefia da instituição, depois de um exigente mas muito bem sucedido mandato, num período que, como é sabido, não terá sido nada fácil para a gestão dos recursos que sustentam a atividade daquela casa.

quinta-feira, abril 27, 2017

Os dias de Orbán


Embora fria, lembro-me de que estava uma bela e límpida noite. À varanda central do majestoso parlamento húngaro, nesse mês de Março de 1999, os presidentes Jorge Sampaio e Árpád Göncz trocavam impressões sobre a paisagem frente ao Danúbio.

Horas antes, eu havia acompanhado Jorge Sampaio num encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán.

Os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo anunciavam-se iminentes. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões iriam sobrevoar a Hungria, que era candidata a integrar a organização. Orbán mostrava-se tenso, deixando clara a sua preocupação pelas populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia dotada de alguma autonomia. Quando reagi, politicamente, ao conceito de "futuras populações NATO", que o primeiro-ministro utilizou para caraterizar essas pessoas e a obrigatoriedade da sua proteção prioritária, pareceu-me ver acentuar-se o olhar duro e fechado que mostrou durante todo esse encontro. Não esqueci mais esse olhar.

Sabia-se que as relações entre o presidente Göncz e Orbán não eram nada fáceis, essencialmente por razões de política interna húngara, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade e de história política.

Por contraste com Orbán, Göncz era uma figura suave, um homem cheio de bom senso, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente, olhando esse passado apenas na linha do futuro do seu país. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. Homem de cultura, Göncz seduziu Jorge Sampaio, com quem falou longamente e estabeleceu uma relação pessoal fácil e calorosa.

A certa altura, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Depois da conversa com Orbán, e de ter ouvido outros interlocutores húngaros, percebemos bem o que significava esse recado.

A Hungria, que entretanto entrou para a União Europeia. Göncz deixou a presidência há muito e morreu em 2015. Viktor Órban é, de novo, primeiro-ministro e o que se tem passado nos últimos anos na Hungria, em matéria de abusos que infringem as liberdades fundamentais, as regras do Estado de direito e o respeito pela separação de poderes, envergonha a Europa. Orbán, como ainda hoje se observou no Parlamento Europeu, continua a fazer caminhar o seu país para uma "democratura".

Felizmente para ele, tem assessores, até portugueses, à altura do seu prestígio.

quarta-feira, abril 26, 2017

Poesia Alegre


Intervenção feita no dia 25 de abril, nos jardins da residência oficial do primeiro-ministro, a convite de Manuel Alegre e de António Costa, na passagem de meio século sobre a publicação do livro de poesia "O Canto e as Armas".

Caro António Costa
Caro Manuel Alegre

E agora, apetecia-me dizer: "Amigos, companheiros e camaradas". Porque era assim que aquela, que esta voz nos surgia pela noite dentro. Mas já lá vamos.

Há dias, na iminência desta ocasião, perguntei a mim mesmo quando terei ouvido falar, pela primeira vez, em Manuel Alegre. Foi num aparelho de rádio lá de casa, em Vila Real, que o meu pai, uma noite, numa espécie de iniciação, assegurando-se que as portadas das janelas estavam bem fechadas, partilhou comigo, pela primeira vez, a escuta da Rádio Voz da Liberdade. Imagino que, nessa noite da minha adolescência, eu deva ter crescido um pouco com essa partilha de cumplicidade, por parte de alguém com quem, anos antes, tinha ido ver Humberto Delgado, na sua passagem pela capital transmontana.

A voz que ouvíamos nessas noites, mas que então não sabíamos ter o nome de Manuel Alegre, tinha uma envolvência convocatória de uma natureza que eu nunca experimentara até então. Para o meu pai, mais do que a proclamação anti-colonial, sobre a qual tinha sentimentos divididos, como ao tempo acontecia com muita gente que se sentia próxima da oposição democrática, era na denúncia aberta do ditador, das patifarias do regime e na revelação daquilo que a imprensa nos escondia que residia toda a virtualidade daquela mensagem.

Com o tempo, já não sei bem como e quando, coloquei o nome de Manuel Alegre naquela voz que nos chegava da "rue Auber, nº 13, Alger, Argélia" - endereço que, no fim da emissão, nos era recomendado que usássemos para eventual correspondência. Nunca ousei escrever para lá, mas, há uns anos, fui a Argel e passei pela porta. Como curiosidade, a rua já não se chama Auber, chama-se Mohamed Chabani. Sem saudades mas com alguma nostalgia, lembrei-me então dessas noites em que colávamos o ouvido ao "Telefunken", embalados pelo "Vozes ao alto" de Lopes Graça.

Passou algum tempo até uma outra noite, também em Vila Real, em que um amigo, então sacerdote católico, me leu pela primeira vez alguns poemas de Manuel Alegre, a tal voz que vinha da Argélia. Esse amigo chamava-se António Cabral e era, ele próprio, poeta.

Fomos muitos, a partir de então, os que conheceram, partilharam e cantaram a poesia de Manuel Alegre - da "Praça da Canção" a "O Canto e as Armas". Para nós, para a minha geração, aquela poesia era muito mais do que literatura. Era a expressão escrita da revolta, era a trova que alimentava a luta anti-fascista, era a vocalização rimada que educou muito dos que vieram a fazer o 25 de abril.

Foi nessa poesia empolgante e empolgada, adjetivada de vigor revolucionário, saudavelmente subversiva face ao estado de coisas que se vivia no país, que então assentávamos, com ou sem música, a nossa esperança na chegada do dia em que por aí viria essa coisa, dificil de obter mas afinal muito agradável de viver, que é a liberdade.

Há 43 anos, o país viu chegar Manuel Alegre, olhou pela primeira vez a sua cara. Lembro-me de o ver com Fernando Piteira Santos a anunciar a criação dos Centros Populares 25 de abril. Uma estrutura efémera, como efémeras foram muitas das iniciativas que brotaram do entusiasmo da Revolução. Para trás tinha ficado Argel e o complexo microcosmos de tentativa de coordenação da luta contra o Estado Novo, aí criado nos anos 60.

Depois, Manuel Alegre, com a naturalidade dos lutadores, enveredou pela política, pelo PS. Foi algumas vezes polémico, divisivo, nunca acomodado, com voz própria. Teve as suas vitórias e as suas derrotas - confortáveis vitórias e honrosas derrotas - porque é essa a essência do regime democrático e é esse o destino de quem se propõe servi-lo. Passaram todos estes anos. Manuel Alegre é hoje, no país cuja liberdade a sua poesia ajudou a construir, um dos rostos mais simbólicos da nossa democracia. Neste primeiro 25 de abril que passamos sem Mário Soares, Manuel Alegre permanece, para todos nós, como um expoente da Revolução e da liberdade que ela nos trouxe.

Mas hoje estamos aqui também - ou essencialmente - para falar e ouvir poesia. E, em matéria de poesia, deixem-me que lhes diga, este é um país feliz. Foi uma excelente ideia, meu caro António Costa, ter um poeta na Cultura. É um "luxo" que só prestigia Portugal.

O livro que hoje aqui evocamos - "O Canto e as Armas", ao lado da "Praça da Canção" - foi uma bela ferramenta literária para a Revolução de abril. Mas eu imagino que Manuel Alegre, nos dias de hoje, olhe para esses dois livros com um sentimento ambivalente. Por um lado, claro que não os renega, não apenas por serem as suas primeiras obras, mas também pelo facto de terem sido aquelas que o fixaram no nosso imaginário. Mas, do mesmo modo, posso crer que, em algum momento, tenha sentido a tentação de "ver-se livre" deles. Porquê? Porque, com toda a certeza, tem o justo sentimento de que muito daquilo que, a partir de então, publicou é, no plano puramente literário, bem superior a essa histórica produção "de juventude".

A vida, contudo, pode ser algo injusta: não conheço quem saiba de cor algum dos seus belos poemas mais recentes. E, no entanto, muitos de nós - a começar por mim - somos capazes de declamar (mal ou bem, logo se verá) os mais antigos dos seus poemas, porventura menos valiosos como literatura, mas seguramente bem mais importantes para a nossa memória afetiva.

Ainda há dias, ao reler com atenção "O Canto e as Armas", me comovi com alguma dessa trova. É que, ao lê-la, eu estava a recordar-me, também um pouco, desses "bons amargos tempos", como uma amiga minha os qualificou ainda esta manhã, em que eu tinha todo o futuro à minha espera. O futuro, esse futuro, aqui está, agora, no Portugal democrático em que vivemos, conquistado pelas armas, há 43 anos, habitado pela palavra dos poetas que souberam fazer rimar abril com liberdade.

Muito obrigado, Manuel Alegre.

25 de abril sempre!

Viva Portugal

segunda-feira, abril 24, 2017

"Portugal Amordaçado"

O "Expresso" decidiu republicar, em pequenos volumes, a versão portuguesa do "Portugal Amordaçado", o "testemunho" (era assim que vinha escrito na edição francesa) escrito por Mário Soares enquanto esteve no exílio, originariamente publicado em França pela Calmann-Lévi, em inícios de 1972. É uma bela homenagem ao pai da nossa democracia, neste primeiro 25 de abril que passaremos sem ele.

O livro é uma leitura pessoal da luta contra a ditadura, com uma história muito detalhada dos grandes momentos desse confronto. Soares, que está nessa luta desde muito jovem, percorre com grande equilíbrio histórico todo esse tempo. A escrita é muito agradável e no tratamento dos factos nota-se a pena de um historiador de formação académica (Soares colaborou com algumas entradas no "Dicionário da História de Portugal", de Joel Serrão). Pela primeira vez com alguma objetividade e rigor, era feita uma "desmontagem" do regime salazarista, subscrita por um dos principais protagonistas da oposição. Antes, havia muito poucos trabalhos de conjunto sobre o oposição ao Estado Novo. Apenas o PCP e o MRPP tinham ensaiado as suas próprias "histórias", em leituras naturalmente algo sectárias.

Comprei o livro no dia 1° de maio de 1972, na sua versão francesa ("Le Portugal Baillonné - Témoignage"), como tenho assinalado no volume que possuo. Tenho quase a certeza de ter feito a aquisição na Livraria Barata, na Avenida de Roma, então uma loja muito pequena, muito diferente da que hoje por lá existe. Mas também poderia ter sido na Moraes, ao Chiado, ou na Opinião, na Rua da Trindade - nesta última livraria eu costumava passar ao final da tarde, depois de sair do meu emprego na Caixa Geral de Depósitos. Essas eram as três livrarias onde, que me recorde, mantinha contactos para a obtenção de livros que se sabia que a polícia podia vir a "recolher".

Mário Soares escreveu o livro em diversos tempos do seu exílio (1969/1974) tendo-o terminado, ao que parece, em Itália, numa casa junto a um lago, emprestada por Mário Ruivo. Um dia comentei isto, que é conhecido, com Maria Barroso e notei, na sua cara, um ar de desagrado. "O Mário, nos fins de semana, durante esse período, ia a Roma, a casa do Mário Ruivo. Mas nunca gostei muito daquilo: parece que o Ruivo fazia por lá umas festas, tinha por lá umas amigas..." Mário Soares riu-se muito quando, mais tarde, lhe contei a observação da mulher...

quinta-feira, abril 20, 2017

Viver fora


Hoje, aqui em Bogotá, lembrei-me de que tenho dois amigos, ambos diplomatas, um português e outro brasileiro, que assentaram arraiais de vida aqui pela Colômbia. Sempre que por aqui venho, tenho os dias tão ocupados que nunca tive tempo para lhes dar um abraço.

Foi a propósito disto que dei comigo a pensar se acaso teria sido capaz, se a ocasião se tivesse proporcionado, de ter ficado a residir numa das várias cidades estrangeiras onde vivi. 

É claro que reconheço que tudo dependeria muito do enquadramento, em especial de ordem material, em que essa estabilização da vida se fizesse. Mas, por melhores que fossem essas condições, confesso não me estou a ver a passar o resto da minha vida numa cidade estrangeira, onde eu também forçosamente me sentiria sempre como tal. É que uma coisa é ser-se diplomata, com esse estatuto e a precariedade cómoda da estada, outra coisa é ser-se um cidadão estrangeiro comum, mesmo que ex-diplomata, a viver para sempre numa sociedade estrangeira.

O que é que eu faria hoje por Oslo, onde teria de ter uma fortuna para aí conseguir viver? Que conhecimentos por lá teria entretanto cultivado? E a falta de sol? Não estou a ver-me por ali.

Os meus amigos angolanos desculpar-me-ão se eu não elaborar sobre as razões por que não me apeteceria nunca viver na Luanda dos nossos dias, talvez as mesmas que levam a que a grande maioria deles viva hoje ... em Portugal. 

Londres é uma cidade ótima para se viver (bem)? Isso é uma evidência e sempre vi a capital britânica como o local estrangeiro onde me sentiria melhor (com ou sem Brexit). Porém, tenho a sensação de que, mesmo que tivesse uma casa em Hampstead (como o meu amigo Hélder de Macedo), ia sentir-me sempre algo isolado. E talvez infeliz.

Depois viria Nova Iorque, talvez a cidade do mundo onde me senti menos estrangeiro, porque ela própria é feita de gentes de várias origens, sob uma lógica comportamental muito simples. Mas acaso gostaria de viver por lá? Talvez em Downtown Manhattan ou no Upper West Side. Mas dar-me-ia bem, naquela babel individualista, sem a vida profissional intensa que por lá tive? Não me parece.

Viena? Nunca por nunca me senti confortável numa cidade onde não falo a língua, fechada sobre si mesma e, agora cada vez mais, sobre o mundo. 

Com uma casa agradável no Lago Sul, é muito fácil viver-se em Brasília (onde, com orgulho, sou um dos poucos estrangeiros com o título de cidadão honorário). Mas teria de me ter saído a lotaria (coisa complicada para quem nunca comprou um bilhete, nunca jogou no Totoloto ou no Euromilhões e não aposta na bolsa) para poder ter uma vida boa na capital brasileira, tão boa que permitisse viajar... para Portugal, como fazem regularmente os meus (muitos) amigos brasilienses. 

Resta Paris e, nesse caso, não tenho a menor dúvida: gosto de passar por lá, almoçar ou jantar com amigos, comprar livros, ver exposições ou espetáculos, "mais c'est tout!" Viver em Paris, para sempre, foi uma ideia que nunca se me colocou.

Não, não viveria nunca, em definitivo, no estrangeiro. Gosto da terra onde nasci, a única da qual posso dizer "cobras e lagartos", coisa que faz parte desta nossa maneira cruel de olharmos para nós próprios, sem termos o sentimento culposo de estar a trair a hospitalidade com que somos acolhidos. Portugal é a "questão que eu tenho comigo mesmo", como disse o O'Neill, mas é onde, sem a menor dúvida, me sinto bem. Ou, para ser mais preciso, onde me sinto melhor.

quarta-feira, abril 19, 2017

Parsons


Um dia de 1989, numa visita ao Brasil, fomos com o José Stichini Vilela a Tiradentes, no Estado de Minas Gerais. Ficámos instalados no Solar da Ponte, da Anna Maria e do John Parsons, seus amigos, um delicioso hotel "de charme" que, à época, era praticamente o único endereço recomendável da região.

A Anna Maria e o John não eram uns proprietários quaisquer. Eram pessoas muito interessantes, intelectualmente ricas, com um "savoir faire" que dava ao local um requinte que se manteve ao longo dos anos e das diversas vezes que por lá passámos. 

Nos anos 70, ambos tinham decidido trocar Londres por Tiradentes, pequena cidade por que se apaixonaram e onde criaram o Solar da Ponte. Não viviam no Solar, habitavam na parte alta da cidade, numa bela casa onde jantámos por mais de uma vez, em conversas infindas, nas quais revíamos os nossos amigos comuns - e tantos eram, desde a Sofia e do António Pinto da França aos expoentes culturais de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo e Guiomar de Grammond, passando pela Tânia e pelo Eros Grau, juiz do Supremo Tribunal, vizinhos do Solar. E alguns outros, porque pertencíamos à "raça" de gostar de fazer amigos.

O John, engenheiro e industrial inglês, tinha-se dedicado à preservação de Tiradentes, "went native" pela localidade, para a qual olhava com um carinho muito próprio. Lembro-me de belas noites quentes em que nos foi mostrar peças da paisagem urbana, que descrevia com carinho, naquele seu insuperável sotaque.

A Anna Maria, uma mulher brilhante e inteligente, era historiadora, viamo-la sempre cheia de projetos, estava ligada à Universidade de Ouro Preto, mas não só. Era uma mulher com a força da natureza e uma alma de entusiasmo, que combinava bem com a serenidade imaginativa do John.

Quem se hospedou no Solar nunca mais terá esquecido daquele sereno chá das cinco (crianças com menos de oito anos não eram ali admitidas, sorry!), servido na ampla sala de cima, um hábito seguramente trazido pela influência britânica do John. 

O John morreu, há pouco mais de um ano. A Ana Maria, que sabíamos doente, acaba de desaparecer, dizem-me agora. 

Espero que o Solar da Ponte permaneça ali por Tiradentes, memória desse casal luminoso, a lembrar o restaurante local, o "Tragaluz", onde, na última ocasião em que estivémos juntos, convidámos a Anna e o John para jantar.

domingo, abril 16, 2017

Peregrino de primeira classe


(A minha querida amiga Leonor Xavier publicou em livro os testemunhos de sete dezenas de pessoas, subordinados ao título comum "Peregrinações". Porque a dimensão espiritual não fazia, de todo, o meu género, optei por relatar a minha "peregrinação" pessoal pelas principais cidades onde a vida profissional me levou - um pouco ao jeito daquilo que, há uns anos, a própria Leonor fez sobre as casas por onde viveu. Deixo aqui esse texto, agradecendo à mulher-coragem que é a Leonor este seu convite.)

A minha peregrinação, Leonor, não é “interior”, como a do Alçada, nem “ad loca infecta”, como a do Sena.

Um dia, por um acaso da vida, tornei-me peregrino “de primeira classe”. Descia uma rua, encontrei um amigo engravatado, perguntei-lhe o que fazia, disse-me que era diplomata e de haver um concurso próximo para essa carreira. Fiz o exame, fui aceite e comecei a andar pelo mundo. Não fui à aventura, fui com segurança, como peregrino público, pago pelos nossos impostos, para esse mundo que alguns patetas acham “do croquete”, até se verem numa alhada em terras alheias ou na necessidade de terem uma ajuda para um negócio encravado.

Essa minha peregrinação começou na Noruega, com frio e bacalhau, onde fiz o tirocínio para viver no estrangeiro – eu que sempre tinha achado que o estrangeiro era apenas um lugar para férias. Aprendi por ali o bê-à-bá da diplomacia, porque só fora do nosso país isso é possível. O peregrino começava a sua jornada.

Anos depois, as Necessidades entenderam dever dar-me uma experiência radical. E daquela “righteousness” de vida, sem um papel pelo chão e a 90 km/hora nas autoestradas, fui parar a uma Angola caótica, em guerra, sem uma loja aberta, recolher obrigatório noturno, por meses num hotel sofrível em que havia arroz com peixe frito ao almoço e peixe frito com arroz ao jantar. E não é que me diverti imenso! Pudera, com o António Pinto da França como chefe e o Zé Stichini Vilela como colega, os meses passavam depressa, com o Mussulo e a Barra do Kuanza para atenuar as neuras, que nunca foram muitas.

Regressei, depois, a Lisboa. Portugal iniciava a sua aventura europeia e eu entrei nela desde o primeiro dia. Era um mundo novo. Íamos a Bruxelas como quem ia a Meca. Sabíamos que parte do nosso futuro estava por ali, embora, à época, não sonhássemos quanto a nossa vida coletiva ia depender dessa Europa. Viajei muito pelo mundo, por esses tempos: por todos os continentes (mesmo todos!). Peregrinava em nome e em representação do país, estudando, de caminho, o modo como nos viam lá por fora.

Um dia, porque as peregrinações diplomáticas não podem parar, fui parar à Corte de St. James. Foi um privilégio poder viver no país mais idiossincrático do mundo, que tem de si mesmo uma ideia tão elevada que, às vezes, roça o caricato – e eles sabem! Londres é, foi, uma das mais belas cidades do mundo para viver.

Até um dia. Lisboa de novo. É assim a vida. Fui para o governo. Outra vez as coisas da Europa como destino. E o peregrino, agora tomado de empréstimo pela política, continuou a andar. Muito, talvez demasiado, até se cansar. Aeroportos sobre aeroportos, quartos de hotel como residência precária, falso turismo muito urbano e sempre “à vol d’oiseau”. Fiquei vacinado. Uhf!

Depois, a peregrinação fez-me assentar vida, levou-me para Nova Iorque. Trabalho, mesmo muito trabalho, vida muito diferente, exigente, tensa. Mas com imensa graça, desafiante, naquela cidade que, para nós, é a porta da América e, para os americanos, já “cheira” a Europa. Por lá, nesse tempo, ali ao meu lado, caíram as Twin Towers. Vi mudar a América, pressenti claramente que qualquer coisa de essencial ia acontecer pelo mundo. E assim seria.

Viena foi o destino seguinte da peregrinação. Mas a “música” por lá era outra, o trabalho também, a gestão dos despojos politicos da Guerra Fria. De lá parti várias vezes, em peregrinação acessória, pelas terras fascinantes do Cáucaso e da Ásia Central. E da Ásia mais distante, e do Médio Oriente e de alguma África. E, uma vez mais, viajei imenso, aprendendo bastante – e aprender, aprendi eu, é a melhor coisa da vida.

Depois, Leonor, você sabe: foi o Brasil, uma espécie de descoberta de nós mesmos noutros tempos, uma peregrinação através das viagens que outros, antes, já haviam feito por nós. No Brasil, aprendi que não há nada de mais distante e distinto do que aquilo que temos a tentação de ver como muito próximo. O Brasil foi o deslumbre, a graça de uma existência sorridente, alegre, uma ilusão consentida.

E, finalmente, o meu sonho geracional fez-se. A peregrinação teve Paris como penúltimo porto. O Paris que eu sonhara na juventude, com um pai francófilo e francófono, ali estava, com uma comunidade portuguesa que também peregrinara pela corda da vida, de Champigny à atualidade próspera de muitos. Eram as livrarias, as brasseries, os passeios a beira-Sena ou pela França profunda. Belos tempos.

Um dia, com naturalidade, chega-se ao fim dessa peregrinação privilegiada, de “primeira classe”. Lisboa, o país, onde tudo começou, é onde tudo vai acabar, serenamente, com a família, os amigos, as tertúlias, a boa mesa, as leituras e as escritas. É o olhar para trás que verdadeiramente nos faz ter consciência da peregrinação feita, onde se recorta uma vida onde a sorte, que deu trabalho, nos dá a felicidade possível. Nem mais nem menos. 

quarta-feira, abril 12, 2017

Morrer na cama

O seu nome não interessa para aqui. Era um grande (imenso) amigo da minha família, lá por Vila Real. Oposicionista declarado ao Estado Novo, assinara as famosas listas do MUD e, por virtude disso, teve problemas sérios na sua carreira de funcionário público. Era uma pessoa muito divertida, alegre, de cuja simpática companhia, em muitas noites lá em casa, ao tempo da minha juventude, me recordo sempre.

Salazar era o seu ódio de estimação. Detestava o ditador com todas as suas forças. A "situação" estragara-lhe a vida, perseguira-o e ele, claro, não perdoava. Na sua linguagem superlativa e colorida de oposicionista radical - não era comunista, era apenas "do reviralho" - apodava o "botas" de Santa Comba de tudo quanto eram nomes depreciativos.

Um dia de Verão de 1968, surgiu-nos visivelmente feliz: "Já sabem a novidade?! Dizem que o "botas" está com os pés para a cova! Caiu, ao que parece".

A tragédia pessoal do ditador, naquele instante, não permitia, humanamente, que comungássemos abertamente da sua satisfação, se bem que, quer eu quer o meu pai, sentíssemos que uma era de esperança podia abrir-se a partir dela.

Mas o nosso amigo, nessa noite, estava imparável. E continuou: "Mas, cá no fundo, estou triste!". Ao ouvir isto, invadiu-nos um sentimento de estranheza. Seria algum remorso pelo gozo que o acidente de Salazar lhe dava?, pensei eu. Qual quê! Não era nada disso! "É que o bandido vai morrer na cama! Devia ter levado com uma bomba, com um tiro, por todo o mal que fez a tanta gente, pelas prisões, pelas torturas, pela miséria a que condenou este país! Mas não, lá está ele no hospital, rodeado daquela canalha política, cheio de médicos à volta. E vai acabar por morrer na cama! É uma grande injustiça!" Rimo-nos muito deste extremismo, com muita verdade pelo meio, que exorcizava uma vida de revolta.

Salazar ainda demoraria mais de um ano a morrer, mas não tenho nota de como esse amigo reagiu, na circunstância. Apenas sei que a alegria com que, anos mais tarde, recebeu o 25 de abril iria ser rapidamente ultrapassada. Por questões no âmbito profissional, entrou em conflito com estruturas sindicais ou de trabalhadores e teve pesados dissabores. De feroz oposicionista passou a ser, em poucos meses, um afirmado direitista, embora, creio, sem a menor atividade partidária. A esquerda transformar-se-ia na sua "bête noire" e o seu espírito azedou muito, com o avançar da idade. De muito divertido passou a sardónico, sarcástico e ácido: a sua intolerância mudara de sinal. Progressivamente, deixou de aparecer lá por casa, e, embora sem um mínimo de acrimónia no relacionamento pessoal, afastou-se bastante. Os meus pais sentiram e lamentaram isso.

Um dia, ao tempo em que eu estava num governo socialista, cruzei-o num restaurante: "Então agora andas metido com esses gajos!" Ele tinha suficiente confiança comigo, a quem conhecia desde criança, para me dizer isso naquele tom. Eu não tive coragem, pela diferença de idades e pelo respeito que lhe devia, para lhe responder o que me apetecia. Sem exceção, toda a minha família que ele conhecia desapareceu entretanto. Ele também mudou há muito de cidade. Nunca mais o vi e, confesso, tenho alguma pena. Afinal, em comum, tivémos alguns anos de forte amizade e muita estima. E isso não é pouco. A ser vivo, o que duvido, será já muito idoso.

terça-feira, abril 11, 2017

A zurrapa


Ontem, durante uma palestra que proferi no Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, referi um episódio diplomático ocorrido há duas décadas.
Por essa altura, defrontavam-nos com o facto da África do Sul produzir uma espécie de "vinho do Porto", que comercializava para os países vizinhos. No quadro da União Europeia, Portugal procurava proteger aquela sua denominação de origem e fazer pressão para que os sul-africanos descontinuassem a designação de "Porto" associada a esse vinho, conformando-se às regras internacionais. Por tática negocial, a Comissão Europeia propunha um "phasing-out" progressivo, com um certo calendário. Eu defendia uma aceleração desse periodo, que entendia mais consonante com os interesses dos nossos produtores e exportadores. Um dia, a questão subiu ao Conselho de Assuntos Gerais, como então se chamava a reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros. Portugal estava nela representada por Jaime Gama, acompanhado por mim. Expliquei ao ministro a política que, sobre o assunto, tinha vindo a seguir nos meses anteriores, no tratamento do assunto.
Sem pôr em causa essa orientação, mas talvez pela importância conjuntural de algum outro dossiê bilateral nosso com a RAS que eu desconhecia, observei que Jaime Gama se mostrava algo contemporizador face à posição sul-africana de calendário, com o qual, aliás, a Comissão concordava e que eu teimava em contestar.
Foi então que lhe ouvi este singular argumento: "Não é de todo mau que os sul-africanos e os seus vizinhos se habituem a beber essa "zurrapa", como você lhe chama. É que isso indu-los, a preços baixos, ao consumo de vinhos generosos, o que não deixa de ser um bom princípio. Assim, quando um dia vierem a ter o ensejo de provar o verdadeiro Vinho do Porto, eles logo perceberão a imensa diferença de qualidade com aquilo a que se tinham habituado, aceitando talvez pagar o verdadeiro Porto a outro preço...".
não me recordo como o assunto terminou, nem sei do eventual sucesso da pressão comunitária no quadro da Organização Mundial do Comércio, mas o argumento de Gama não deixava de ter algum sentido. E graça.

quinta-feira, abril 06, 2017

Virgílio Varela



Conheci o Virgílio Varela em outubro de 1974, quando, depois da dissolução da Junta de Salvação Nacional criada em 25 de abril, onde eu assessorava o general Galvão de Melo nas questões da extinção da PIDE/DGS, fui trabalhar para a 2ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, chefiada pelo então brigadeiro Pedro Cardoso. 

O Varela, como lhe chamávamos, era por ali uma figura agitada e sorridente, sempre bem disposta, de convívio muito agradável, com o seu sotaque madeirense, trabalhador como poucos. Naquele curioso espaço no topo do Palácio da Ajuda (contar a história daqueles meses e de muita gente que ali operou nesses meses "da brasa" dava um belo livro), ambos então sob as ordens diretas do major (depois general) Espírito Santo, vivia-se uma "guerra" feliz, combinando alguma gente mais à esquerda (onde eu me situava) com quantos se mostravam inquietos com o ritmo da Revolução (como era o caso do Virgílio Varela).

(Era um tempo em que havia tempo para tudo: eu trabalhava desde as 8.30 da manhã na Ciesa NCK, ia almoçar à messe de Pedrouços e, entre as 13 e as 19 horas, "fazia a tropa" no EMGFA. Pelo meio, nesse ano de 1975, escrevi com um amigo um livro sobre "O caso República" e ia fazendo as provas de admissão ao MNE, onde ingressei em Agosto.) 

O Varela trazia colada à pele a imagem da heroicidade que revelara nas Caldas da Rainha, em 16 de março desse ano, quando prendeu o comandante do regimento, amotinou a unidade e comandou a coluna que procurou chegar a Lisboa. Como consequência do movimento ter falhado, foi depois preso por algum tempo na Trafaria, de onde sairia no 25 de abril, em que logo teve atividade operacional relevante. Era tido como um fiel spinolista, sendo que o nosso trabalho em conjunto se processou já após a demissão de Spínola de Presidente da República, em 28 de setembro de 1974. Na sequência do 11 de março de 1975, voltaria a ser detido, por algumas semanas, por acusações de implicação no golpe que Spínola encabeçou nessa data.

Perdemo-nos de vista durante muitos anos. Voltei a encontrá-lo apenas uma vez, num café, já depois dele ter sido comandante da PSP de Lisboa. Falámos e eu aproveitei para "arrumar" algum "misunderstanding" que sentia que havia sobrado entre nós, na sequência da confusão do 11 de março, da dissolução da 2ª Divisão do EMGFA e da criação do SDCI (que eu passei a integrar, enquanto ele estava preso). Acabámos a conversa, franca e leal, com um abraço de amizade, coisa que agora não poderemos repetir. Morreu ontem esse generoso capitão de abril, que, para a História democrática, ganhou as sua esporas revolucionárias ainda no mês de março de 1974.

quinta-feira, março 23, 2017

Alvo manto


Se as coisas ainda são o que eram, esta neve primaveril que cai sobre Vila Real não vai "pegar" - como se dizia no meu tempo de infância, então fazendo figas para que o nevão fechasse o caminho para a escola. 

Nesse outro tempo, a neve caída na cidade, com ou sem fotografia (do Marius ou do Macário), era notícia garantida na meia página que "O Comércio do Porto", "O Primeiro de Janeiro" e o "Jornal de Notícias" - os três jornais do Porto que chegavam à cidade (havia também o vespertino "Diário do Norte", mas não se vendia em Vila Real) - dedicavam diariamente às principais cidades nortenhas.

Em minha casa, lia-se o "Comércio" e o "Janeiro", respetivamente comprados para o meu pai e para o meu avô. Todos os anos, por ocasião da queda da neve (nesse tempo, a neve parecia cair com maior regularidade), o meu pai lembrava:

- Ora deixa cá ver qual é o jornal que traz a frase batida "a cidade acordou sob um alvo manto de neve". 

É que essa figura estilística, muito própria de um gongórico jornalismo de província então em voga, era repetida com regularidade e sem pudor do ridículo.

Se não vinha nesses dois jornais comprados na loja do Albertino, o meu pai, antecipando o gozo de a encontrar, procurava-a no "Notícias", numa ida ao café no Excelsior, na Rosas ou na Pompeia (a Gomes foi para ele um pouso mais tardio). 

O "Notícias" era um jornal então menos conceituado, com muita nota desportiva da região (nisso só ultrapassado pelo "Norte Desportivo", do Alves Teixeira) e com um pendor para o crime e para o "sangue": "Carteiro de Contumil mata a sogra"... (Mas nunca, porque o respeitinho social-geográfico era muito bonito: "Crime passional em Nevogilde").

Amanhã, mais pela força do degelo do que pela melhoria do jornalismo, "cheira-me" que a cidade não vai acordar "sob um alvo manto de neve"...

domingo, março 12, 2017

Os "nègres"


Os franceses chamam-lhe "nègres", os ingleses "ghostwriters". São aqueles que escrevem textos que, no final, serão assinados por outros. Ás vezes são livros, outras vezes são discursos.

Ontem, comprei uma biografia sobre um político português em que o autor diz de si próprio que é "crítico literário e ghostwriter". Acabo agora de ler, num semanário também ontem publicado, alguém que se identifica como membro do "European Speechwriters Network". Nunca tinha visto tanta "transparência" neste assunto...

Na minha vida, escrevi dezenas de discursos - e artigos de jornal - que foram lidos e subscritos por outras pessoas. São coisas que acontecem com naturalidadade na vida pública. Embora eu goste de escrever tudo o que leio em público ou assino, também já me aconteceu ter de ler (embora muito poucos) textos de que não fui autor, ao tempo em que estive no governo.

Há, neste domínio, um episódio curioso que até hoje nunca contei. Alguém me tinha pedido para preparar um prefácio para a tradução portuguesa de um determinado livro (cujo autor, curiosamente, li que virá proximamente a Lisboa, para uma conferência). O texto, bastante longo (seis densas páginas, em letra miúda), era para ser assinado por essa pessoa, como viria a acontecer. (Que fique claro que eu não ganhava nada com esse trabalho). Passaram alguns anos e as minhas relações com essa pessoa alteraram-se profundamente. Um dia, num debate público (lembra-se, Luís Tibério?) em que eu intervinha ao lado da figura que assinara o texto, essa pessoa defendeu uma tese, sobre um determinado assunto, em absoluto oposta à orientação seguida naquele prefácio (que, repito, eu escrevera e ele assinara). Fui então, confesso, "mauzinho". Disse-lhe que estranhava muito que tivesse "mudado de opinião", porquanto me lembrava de que, num prefácio "da sua autoria" a um determinado livro - "um texto com que eu concordava em absoluto, que até podia subscrever..." - ele defendera precisamente uma tese oposta. A pessoa em causa não gostou nada da minha "graça", mas foi obrigada a calar-se...

quarta-feira, março 08, 2017

RTP


Acho graça aos filmes das primeiras emissões da RTP, na antiga Feira Popular, com a futura Vera Lagoa a apresentá-las. Já os conheço de cor, mas essa não foi a minha primeira RTP.

Para quem vivia "para lá do Marão", em Vila Real, a RTP era uma "coisa" de Lisboa, apenas falada nos jornais e na Emissora Nacional. Por algum tempo, bastante, mas cuja duração não posso precisar, a cidade não teve aparelhos de televisão, porque o "sinal" não chegava lá. 

Um dia, talvez em 1958 ou 1959, o meu pai recebeu um convite impresso, cuja imagem guardo na memória, enviado pela Rádio Patinhas, uma casa de eletrodomésticos que existia numa esquina da avenida principal da cidade, convidando "Vossa Excelência e a Excelentíssima família a assistirem à emissão da Radiotelevisão Portuguesa". E lá fomos, uma noite, juntamente com alguns escassos eleitos, sentar-nos dentro da loja, olhando um aparelho pequeno, a preto e branco, com uma imagem muito granulada e um som episódico. Cá fora, de cara colada às montras, amontoavam-se muitos curiosos, que não tinham o privilégio do convite. O "sinal" era muito mau, vinha da Lousã, mas aquilo era, para o miúdo que eu era, o "máximo". Tenho três recordações, porque as belas coisas novas nunca se esquecem: o Trio Odemira a tocar, Artur Agostinho e Gina Esteves a apresentar o "Quem Sabe Sabe" e números de magia e ilusionismo, creio que pelo "Conde de Aguilar". 

Algum tempo depois, a televisão começou a ser visível nas montras dos vendedores de aparelhos. Em Vila Real, na Casa Dionísio, concorrente do Patinhas, e, em férias, na Casa Ponte, na Praça da República, de Viana do Castelo. Depois, com o tempo, o mundo mudou e, pouco a pouco, todos passámos a ter televisores em casa, com as infernais antenas, os "potenciadores de sinal" e, mais tarde, os pesados "estabilizadores" de corrente. A partir de certa altura, havia mesmo quem colocasse no écran uma cobertura cobertura com ligeiras cores, uma patetice a sugerir uma antecipação do colorido. Essa cor chegou um dia, como também chegaria esse momento democrático do país que foi a abertura de outros canais. Antes, porém, já todos pagávamos a famosa "taxa", hoje disfarçada já não sei bem como.   

60 anos é uma bela idade. A RTP faz parte da história de todos nós e todos nós temos uma "história" com a RTP. A minha cruza-se também com os tempos que por lá passei, como militar, nos dias que se seguiram ao 25 de abril. E, nos de hoje, com um programa em que também por lá, de vez em quando, colaboro.

Deixo de parte a minha leitura da relação da RTP com o poder, a qual, só por si, já deveria ter merecido um estudo universitário - desde os tempos de Camilo de Mendonça, seu primeiro presidente, até aos de Gonçalo Reis, que atualmente a dirige, passando por um número infindo de figuras que marcaram os ciclos políticos. 

Agora, é ocasião apenas para dar parabéns à sexagenária RTP e a alguns amigos que por lá tenho.

segunda-feira, março 06, 2017

Guimarães

Sou do tempo em que o Sporting ganhava em Alvalade ao Guimarães... (O empate de ontem deve ser consequência da noitada de júbilo da reeleição do "líder" que nos levará às grandes vitórias.)

Numa bela tarde de sol (mais bela porque ganhámos por 3-1), já há uns bons anos, em Alvalade, o Sporting estava a fazer um bom jogo com o Guimarães. A certa altura, um atacante sportinguista caiu na área do adversário e, na bancada onde eu estava, houve um imenso berro de "penalti". O árbitro não marcou.

Talvez porque, antes dos meus 20 anos, fiz um curso de arbitragem de futebol, "tenho a mania" de ser rigoroso nas minhas análises. Sou completamente incapaz de, por cegueira clubista, achar que houve falta... quando não houve! (Embora, muitas vezes, não me importe que o árbitro marque, mas isso é outra questão.)

Naquele instante, no seio de uma homogénea bancada leonina, saiu-me um imprudente: "Não foi penalti!" O que eu fui dizer! De "lampião" para cima (porque, no seio do Sporting, é o mais baixo qualificativo insultuoso existente) fui apodado de tudo (lembras-te, Tó Zé?). E não fora dar-se o caso do jogo estar a correr bem para o Sporting e o meu gesto podia ter-me saído bem caro.

Nessa tarde, decidi definitivamente deixar a honestidade técnica à porta dos estádios.

quarta-feira, março 01, 2017

Diplomata de Abril

«Nada mata mais um escritor do que obrigá-lo a representar um país», disse um dia Julio Cortázar, citado por José Fernandes Fafe nas «Conversas durante anos» (Almedina 2002) que António Silva com ele teve. Não para concordar necessariamente com a asserção, mas para questionar ironicamente essa dicotomia nem sempre fácil de assumir. Na limitada abertura a quadros exteriores à carreira diplomática tradicional, que o poder democrático subsequente à ditadura decidiu levar a cabo a partir de 1974, José Fernandes Fafe, ao lado de Coimbra Martins, Álvaro Guerra e José Cutileiro, figura entre as personalidades oriundas da área cultural que vieram a ser escolhidas.

Ser o nosso novo homem em Havana foi o desafio que Mário Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros, lhe lançou, quem sabe se lembrado de uma viagem clandestina que ambos haviam feito à ilha de Fidel, em meados dos anos 60. Fafe partilhava, há muito, uma sedução geracional pela revolta que havia deposto Baptista. Uma simpatia que tinha menos de ideológico – Fafe era um socialista moderado, com um pendor liberal – e bastante mais de romântico. Ele fora «David Alport», o pseudónimo com que assinou, para escapar ao crivo da ditadura portuguesa, aquela que é hoje considerada uma das primeiras biografias de Che Guevara. 

O novo embaixador beneficiava da boa vontade política junto do regime cubano, num tempo em que alguns militares e outras figuras da Revolução portuguesa se deliciavam em romagens à terra dos heróis do «Granma». A memória das Necessidades guarda a ideia de que a densidade objetiva das nossas relações com Cuba estava, à época, algo aquém daquilo que uma figura com o prestígio e os excelentes contactos de Fernandes Fafe poderia ter proporcionado

Daí que, para essa memória coletiva da nossa ação externa, o seu posto seguinte, o México, se tenha consagrado como um ponto particularmente alto – eu diria, na perspetiva de um profissional da casa, aquele que o tornou verdadeiramente «one of us». A profunda interação cultural que aí conseguiu levar a cabo, com presença constante na imprensa e nos meios da cultura, viria a ser muito marcante, num  país onde a imagem das ditaduras ibéricas permanecia ainda forte, com culturas de exílio a misturarem-se com os novos tempos. Mas seria ainda no México que Fernandes Fafe se iria «libertar» do estigma redutor que, um pouco por todo o mundo, sempre persegue as figuras da cultura convertidas à diplomacia: no forte impulso que deu às relações económicas bilaterais, nomeadamente aquando da sensível questão do abastecimento petrolífero a Portugal, as «esporas» de um embaixador completo viriam a assentar definitivamente a Fernandes Fafe.

Mas a cultura, com naturalidade, regressaria ao seu horizonte. Por um par de anos, o papel de embaixador itinerante para esse domínio caiu-lhe que nem uma luva. Diga-se que, com o brasileiro Celso Cunha e Lindley Cintra, Fernandes Fafe foi então um dos autores de um estudo sobre uma estratégia para a Lingua Portuguesa que ainda hoje ganharia em ser revisitado. Foi, aliás, nessa qualidade que o cruzei pela primeira vez, ao tempo em que eu próprio era diplomata em Angola.

Acabaria por ser também um país de lusófono, Cabo Verde, o seu terceiro posto de destino. Um país onde trabalhou muito e bem, como todos reconhecem. Cultura e economia foram pontos fortes dessa sua ação, marcada também pela dinamização do apoio às várias instituições do país, através das estruturas congéneres portuguesas. O êxito atual de Cabo Verde, o seu papel de «benchmark» para a África, rima muito com essa sua linha de trabalho.

A carreira de Fernandes Fafe viria a reencontrar a América Latina naquele que seria o seu último posto: Buenos Aires. Um desafio aos 63 anos, numa embaixada onde teria, contudo, um mandato curto. Dois anos depois, como mandava a lei, regressava a Lisboa.

José Fernandes Fafe foi um diplomata de abril, uma figura que levou o seu prestígio intelectual para as estruturas da política externa portuguesa. Serviu o país com brilho, empenhamento e qualidade. O seu desaparecimento, aos 90 anos, é um momento triste para a nossa diplomacia.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Letras")

terça-feira, fevereiro 28, 2017

Bonnie and Clyde


Olhei ontem para ambos, ainda antes da "gaffe' patética que involuntariamente protagonizaram nessa gala dos Óscares, e tive algumas saudades. De mim, confesso. Nessa noite do Porto, há quase meio século, num cinema então novo junto à Costa Cabral, por detrás do Estádio do Lima. Era o "Bonnie and Clyde", esse belo filme sobre a dupla de bandidos (só o cinema e a política tornam charmosos os bandidos), que dava ares de cinema europeu de autor (e, talvez por isso, fez tanto sucesso na Europa), mas eu, na altura, não fazia ideia do que isso era. Chovia, lembro-me, porque a sala tinha uma cobertura metálica onde isso se sentia, julgo recordar-me (mas posso estar equivocado). Debaixo do braço, levava comigo "A Capital", um novo jornal que era uma dissidência do "meu" "Diário de Lisboa", que trazia uma análise detalhada ao filme, num tempo em que a crítica cinematográfica não tinha necessariamente como finalidade mostrar-se ininteligível. Saí dali com amigos para o Ginjal, no Bonjardim, para acabar a noite. Aquelas imagens impressivas de Faye Dunaway e Warren Beatty, de armas na mão em carros "vintage", nunca mais me largaram. Por isso, vê-los entrar, algo trémulos, naquele palco, fez-me alguma impressão, agravada pela confusão que se seguiu. Depois, passou. Tudo passa, já aprendi.

Ainda Caminha

Foi um par de horas de conversa, na tarde de sábado, na Biblioteca Municipal de Caminha, tendo como anfitriã a vereadora da Educação, dra. L...