Há uns dias em que me dá para ver filmes com pancadaria “da velha”, espiões saídos do frio e vestidos de preto ou de couro, sempre com cara-de-mau, corridas infernais pelas ruas, carros a “esbardalharem-se”, bandidos “abatidos” por tiros de metralhadoras ou pistolas com silenciador. Histórias que acabam, quase sempre, em cenas de cama de belos hotéis de luxo. Ia escrever “com pequename à maneira”, mas tive medo de ter um processo por sexismo…
Ontem à tarde, num zapping, apareceu-me um filme com Kevin Costner, cheio desses ingredientes. Fiquei a vê-lo, claro! O essencial da ação era em Paris, com os cenários do costume (a “versão” americana de Paris: muito Montmartre, Trocadéro, Torre Eiffel qb, ruas marginais do Sena, Meurice e George V. Faltou o Marais e Saint Germain, sei lá bem porquê!), muito bem filmados, numa trama de confortável implausibilidade. O “fazer de conta” bem feito é uma das belas artes.
O filme tinha começado numa cena desenhada com violência no Hotel Jugoslavia (escrito sem assento), em Belgrado. O hotel, que o Booking me diz ter agora três estrelas, está com ar de ser já bem pouco glamoroso. Mas o nome Jugoslávia, infelizmente, rima sempre bem com violência.
Nem sempre foi assim, lá por Belgrado. Nos anos 70, o Hotel Jugoslavia era um “must” daquela capital balcânica. Ficava “do outro lado” da cidade, recordo-me bem. Por ali se alojavam muitos dos diplomatas que então negociavam no âmbito da CSCE, a Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa, nos últimos tempos da Guerra Fria, uma iniciativa que procurava atenuar as tensões Leste-Oeste. (Mal eu sabia que, vinte e tal anos depois, iria chefiar, em Viena, durante a presidência portuguesa, a embaixada da Organização secessora daquele exercício).
Estive lá por Belgrado duas vezes. Não que eu ali fosse negociar nada. Muito simplesmente, como jovem diplomata, era encarregado de transportar a “mala diplomática acompanhada”, que levava e trazia graves “segredos de Estado”. Diferenciava-se assim da “mala” comum, que ia pelo correio normal.
“Ir de mala”, nesse circuito da Europa ou no dos Estados Unidos, era, na vida dos jovens diplomatas de então, uma tarefa simpática, que nos oferecia um circuito cosmopolita de uma semana. Havia uma escala do pessoal para essas viagens e, sempre que alguém faltava, logo surgiam, discretamente, uns colegas “papa-malas”, que acediam à informação privilegiada das vagas, “abichando” a oportunidade para avançarem. Coisas desses tempos…
Um dia, aí entre 1976 e 1979, saído de Lisboa, eu tinha passado, em dias sucessivos, por Londres e por Bruxelas. A bem dizer, este último era o destino principal da "mala diplomática acompanhada", por aí se situar a sede da NATO (ia-se e voltava-se sempre por Bruxelas). Da capital belga, parti para Viena, onde a esmagadora maioria da correspondência que eu levava iria ser encaminhada para postos dos então países comunistas, de onde as nossas Embaixadas enviavam depois à capital austríaca os seus diplomatas, para a respectiva recolha e canalização dos seus relatórios para Lisboa. Pouca coisa seguia na mala para Belgrado, a ajuizar pelo tamanho do pequeno pacote que me sobrava, cujo conteúdo, naturalmente, eu desconhecia (nós nunca abríamos a mala, não nos competia saber o que transportávamos). E, de Belgrado, iriam seguir, mais tarde, pela nossa atenta mão, correspondência e documentação “secreta”, destinada a Bruxelas e Lisboa.
A cidade de Belgrado, num inverno sob neve, era, numa dessas vezes, uma urbe cinzenta e algo desconfortável. De autocarro, fui parar, já muito ao final da tarde, ao imenso Hotel Jugoslavia. Passava da hora de fecho da nossa Missão temporária junto da CSCE, pelo que decidi ficar com a mala diplomática à minha guarda (período das refeições incluído, porque não era permitido perdê-la de vista). Entregá-la-ia no dia seguinte, logo de manhã.
Tomava eu um banho reconfortante no hotel, preparando-me para ir jantar com o pessoal da Missão (Ana Barata, Ana Marinho, Maria do Pilar, Rui Brito e Cunha, Jorge Ritto), quando me chegou um telefonema da secretária do Embaixador, dizendo-me que ele me ordenava que fosse, ainda naquele dia, ao escritório da Missão, para entregar a mala. Reagi, dizendo que era já muito tarde.
Qual quê!? O embaixador insistia e quis mesmo que eu fosse de táxi, porque não podia dispensar o seu motorista. Furioso, lá tive de encasacar-me para o gelo da cidade, algo intrigado com a urgência da entrega daquela documentação. Mas, quem sabe?, podia tratar-se de instruções para uma diligência urgente ou contactos não adiáveis.
Chegado à Missão, fui levado à presença do embaixador, cujo nome agora não importa, que exclamou: "Ora temos então aqui a nossa mala! Já não era sem tempo!", numa clara "indireta" à minha resistência, complementada pela displicência com que me saudou.
Preparava-me, deliberadamente sorumbático, para sair do gabinete e regressar ao hotel, quando reparei que o embaixador se mostrava empenhado a ser ele próprio a quebrar os selos diplomáticos (de chumbo) do pacote. Por curiosidade, fui-me deixando ficar na cena.
Foi então que assisti à aparição de um embrulho, saído de dentro do pacote que, com toda a segurança e cuidado, eu transportara por várias capitais europeias. Vi os olhos do embaixador encherem-se de alegria: "Até que enfim! Estava a ver que o nosso colega de Havana nunca mais se despachava!". E lá abriu ele, com a avidez do vício, a sua caixa de "Cohibas", pelos visto a única "correspondência" relevante que, para escapar aos riscos da espionagem comunista, nesses derradeiros anos da Guerra Fria, eu levara em mão, durante dias, até Belgrado...