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terça-feira, abril 03, 2012

Cante alentejano



Nos últimos dias, suscitou alguma polémica a decisão governamental de não apresentar à UNESCO, no corrente ano, a candidatura do Cante Alentejano ao estatuto de património cultural imaterial da Humanidade. A comissão promotora da iniciativa, ecoando o sentimento de outros apoiantes da mesma, manifestou o seu desagrado por esta tomada de posição.

É compreensível o desapontamento que atravessa as comunidades alentejanas que estiveram envolvidas na preparação do projeto, às quais tinha sido criada uma expetativa temporal para a conclusão do mesmo. Devo dizer, porém, que entendo menos bem algumas despropositadas e menos elegantes acusações personalizadas que surgiram neste contexto, que apenas posso levar à conta de exagerada emoção entretanto suscitada. 

Desde o primeiro momento que os interlocutores que, no quadro do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa e em Paris, dialogaram com os representantes da candidatura deixaram muito claro serem amplamente favoráveis à iniciativa, a qual, aliás, desde o início estimularam. Esse terá sido também o sentimento das altas autoridades do Estado e outras personalidades que expressaram o seu apoio à mesma. Toda essa solidariedade para com o projeto era dada, naturalmente, no pressuposto de que a candidatura seria apresentada com condições de pleno sucesso, tanto mais que, no caso de uma eventual rejeição, o processo teria de esperar cerca de cinco anos antes de poder ser repetido, com o incontornável efeito negativo que tal decisão não deixaria de ter na memória interna da própria UNESCO.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros não tem, no seu seio, uma "expertise" própria, pelo que, como em casos análogos, teria sempre que se apoiar, para a formulação do seu juízo sobre a oportunidade de apresentação da candidatura, em opiniões técnicas abalizadas, nomeadamente as que se projetam na comissão científica que a própria organização criou.

A comissão científica da candidatura foi presidida pelo professor Rui Vieira Nery, que já exercera idênticas funções na recente e bem sucedida candidatura do Fado ao estatuto agora pretendido pelo Cante Alentejano. O professor Vieira Nery pediu, entretanto, demissão do cargo e, ao fazê-lo, deixou algumas críticas àquilo que entendia serem alguns pontos menos consistentes desta candidatura. Sem desprimor para os restantes membros, a pessoa que, de forma unânime, era considerada como imediatamente mais qualificada, no seio da comissão científica, era a professora Salwa Castelo-Branco, a quem, aliás,os promotores da candidatura haviam solicitado a revisão final do respetivo processo. Ora também esta eminente especialista, conjuntamente com outro membro da comissão, considerou que, no seu estado atual de preparação, a candidatura teria fragilidades que poderiam conduzir à sua rejeição.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros - e não apenas a Comissão Nacional da UNESCO, como erradamente é sugerido - entendeu que, perante estas abalizadas opiniões e em tais condições, constituiria um elevado risco propor a candidatura este ano. Nada do trabalho já feito, na laboriosa preparação do dossiê que foi desenvolvida, se perderá. Apenas se pretende que, no tempo que agora temos pela frente, possam vir a ser colmatadas as deficiências e os problemas entretando detetados.

Todos temos interesse em que ao Cante Alentejano seja dado um estatuto internacional à altura da indiscutível qualidade que esta manifestação popular tem, como fator identitário de uma região e como património cultural de prestígio do próprio país. Por isso, com serenidade e redobrado rigor, vamos trabalhar para que, num prazo que esperamos curto, possamos apresentar na UNESCO uma candidatura de sucesso do Cante Alentejano.

(Artigo que hoje publico no "Diário de Notícias")

segunda-feira, janeiro 30, 2012

"Diplomatas"

Reproduzo hoje aqui, porque há novas razões para o fazer, um post que publiquei no dia 5 de junho de 2011:

"A nossa imprensa é sempre muito lesta quando lhe cheira a qualquer esturro que possa ligar-se negativamente à imagem da diplomacia lusa.

Há meses, um "cônsul honorário" na Alemanha apareceu envolvido em maroscas financeiras. De imediato, os títulos e os textos apontavam para "diplomata recebe luvas em negócio" ou "diplomata acusado de corrupção".

Há dias, um "vice-cônsul" no Brasil, uma categoria administrativa em má hora recém-renascida, que alguns, premonitoriamente, advertiram que poderia vir a redundar em "vício-consulados", foi acusado de desvio de fundos. Como era expectável, a comunicação social logo trouxe títulos como "diplomata roubou" e coisas do mesmo jaez.

Vamos a ver se nos entendemos: ambos os cavalheiros envolvidos no que parece serem atividades criminosas* não são diplomatas - eu diria mesmo, estão mesmo muito longe de o serem. A qualidade de "cônsul honorário" ou de "vice-cônsul", que, por todo o mundo, é exercida por pessoas geralmente muito estimáveis e de impecável honestidade, não confere a ninguém a qualidade de "diplomata", categoria profissional que tem requisitos de formação, recrutamento e responsabilidade muito específicos. Repito: um "cônsul honorário" ou um "vice-cônsul" são categorias funcionais que nada têm a ver com a carreira diplomática, salvo na circunstância de exercerem uma atividade na dependência desta.

Por essa razão, é completamente abusivo utilizar o termo "diplomata" para qualificar quem o não é, fazendo recair sobre uma profissão os "salpicos" de eventual falta de ética de quantos, noutra qualidade, agem em nome do Estado português no exterior.

Só lamento** que a entidade representativa dos diplomatas portugueses (que, por alguma razão, se não chama "sindicato dos diplomatas e ofícios correlativos"...) não tenha saído a terreiro em todos os casos, pondo "os pontos nos is", denunciando a difamação e ensinando, por uma vez, aos plumitivos de serviço aquilo que a sua profissão, pelos vistos, não lhes soube ensinar."

*Em tempo: o vice-cônsul na Alemanha foi já condenado. O vice-cônsul no Brasil está fugido

**Em 1.2.02, a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses veio a público clarificar este assunto. Fico satisfeito.

sábado, novembro 05, 2011

Aristides Sousa Mendes

Uma conversa com João Crisóstomo, o indefectível defensor da memória de Aristides Sousa Mendes nos Estados Unidos, que aqui anotei há semanas, trouxe-me à evidência a questão do estado deplorável da preservação da residência do antigo diplomata, em Cabanas de Viriato. 

Não fui o único a chocar-me e, por essa razão, integro um grupo de pessoas que hoje divulga no jornal "Público" uma texto-alerta.  Assinei-o porque me parece muito justa a posição tomada e também, no meu caso pessoal, porque considero que, depois de tantos anos e de tantas boas-vontades mobilizadas e desperdiçadas, estamos perante um verdadeiro escândalo, onde se misturam incúria, incompetência e o exacerbamento de alguns egos. A memória de Aristides Sousa Mendes não é propriedade de ninguém e muito menos o poderá ser de alguns que, nada fazendo, nada deixam que nada se faça. Quem assim procede não parece entender que está a fazer o jogo objetivo dos inimigos póstumos do diplomata - e, podem crer, eles não são poucos.

Aqui fica o texto do artigo hoje publicado, sob o título "Em defesa da Casa do Passal, de Aristides Sousa Mendes":

Não é possível aceitar o estado de extrema degradação em que se encontra a Casa do Passal, situada em Cabanas de Viriato, concelho de Carregal do Sal. Uma situação tanto mais indigna, porquanto se encontra classificada como património nacional.

Falar do Passal é lembrar a figura notável de Aristides de Sousa Mendes, «o cônsul de Bordéus», como ficou conhecido,  que, de Novembro de 1939 a fins de Junho de 1940, contrariando as ordens de Salazar, concedeu vistos a cerca de 30.000 refugiados, de diferentes nacionalidades, 10.000  dos quais judeus, salvando-os da perseguição das tropas nazis que haviam invadido a França. Um acto desinteressado, e nas suas palavras, «inspirado  única e exclusivamente nos sentimentos de altruísmo e de generosidade», mas que, paradoxalmente, lhe mereceu uma severa punição. 

Sousa Mendes não foi "o Schindler português" como, muitas vezes, se afirma. Com efeito, o seu procedimento não teve outra «recompensa» senão a «satisfação da [sua] consciência», e da desobediência às instruções de Salazar, que não permitiam «dar vistos a cidadãos dos países já ocupados pelos alemães» e em caso algum «a Judeus, Russos, Polacos, Checos e os sem-pátria», resultou o seu afastamento compulsivo da carreira diplomática e a impossibilidade de exercer a advocacia, situações que se repercutiram dramaticamente na Família, aliás numerosa, e que o apoiara no trabalho exaustivo da emissão de vistos. Sousa Mendes não elaborou uma qualquer lista de gente a salvar; disse sim a quantos, desesperadamente, o procuraram, indo para além das suas possibilidades. Testemunham-no a memória de documentos e de descendentes de refugiados salvos. Em carta dirigida ao embaixador do Brasil, pedindo-lhe que intercedesse em seu favor, ditou ao seu filho Luís Filipe: «Esperava eu que, terminada a guerra, Salazar reconsiderasse a sua injusta decisão, mas tal não sucedeu, encontrando-me eu actualmente não só na mais cruel miséria com a minha numerosa família, mas gravemente doente». (Figueira da Foz, 7-9-1945).

É esta Casa, espaço alicerçado na memória histórica, que ameaça ruir por completo, caso não se proceda a intervenções, neste momento, inadiáveis. A saber: execução de uma cobertura provisória e medidas provisórias de estabilização estrutural. Surpreendente é o facto de estes 2 projectos já existirem desde 2010, por iniciativa do Eng. Vítor Cóias, Presidente do GECoRPA – Grémio do Património (www.gecorpa.pt), uma associação sem fins lucrativos que defende a excelência na recuperação e reabilitação do património.  Estes dois projectos foram entregues à Câmara de Carregal do Sal e encontram-se ambos aprovados (2010) pelo IGESPAR (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico). Também em 2010, Francisco Manso realizou um documentário sobre a Casa do Passal, que está disponível  na internet, em português e em inglês. Refira-se ainda que a Direcção-Regional da Cultura Centro está a preparar o caderno de encargos para a cobertura provisória  e  para os trabalhos de consolidação, com base nos projectos do Eng. Vítor Cóias. 

Perante a situação de intolerável abandono a que está votada a Casa do Passal, onde viveu Aristides de Sousa Mendes com a sua família, um grupo de cidadãos, certamente acompanhado por todos os portugueses, e não só, apela à Fundação Aristides de Sousa Mendes (www.fundacaoaristidesdesousamendes.com) que, em articulação com a Câmara de Carregal do Sal e outras Instituições, actue rapidamente, envidando esforços para a concretização dos 2 projectos  acima  referidos  que,  necessariamente, exigirão a intervenção de mecenato. 

Assinam este texto:

Maria do Carmo Vieira (professora do Ensino secundário), Vítor Cóias (engenheiro e presidente da GECoRPA), António Barreto (professor), António Monteiro (embaixador), Francisco Seixas da Costa (embaixador), D. Januário Torgal Ferreira (bispo), Iva Delgado (presidente da Fundação Humberto Delgado), Gastão Cruz (poeta), João Pombeiro (director da Revista LER), Pedro Tamen (poeta e tradutor), Pedro Mexia (escritor), Carlos Calvet (arquitecto e pintor), Isabel Allegro de Magalhães (professora universitária), Teresa Cadete (professora universitária), Rui Baptista (professor universitário), Emília Nadal (pintora), Maria Filomena Molder (professora universitária), Jorge Molder (fotógrafo), Emanuel Pimenta (músico e compositor), Teolinda Gersão (escritora), Inês Pedrosa (rscritora), Fernando Ornelas Marques (professor universitário), Santana Castilho (professor universitário), Joshua Ruah (médico), José António Melo Gomes (médico), João Carlos Alvim (editor), Carlos Fragateiro (encenador), Guilherme Valente (editor da Gradiva), Maria Amaral (pintora), Maria João Cantinho (poetisa e professora do ensino secundário), Maria do Carmo Abreu (tradutora), Rui Zink (escritor). 

segunda-feira, outubro 31, 2011

Diplomacia em tempo de crise

Agora que a chamada "diplomacia económica" está na ordem do dia das conversas e das decisões, apetece-me recordar aqui um texto que sobre o assunto publiquei, em maio último, na revista da AICEP, "Portugal Global", sob o título em epígrafe.

"Não há muito tempo, um colega de um país do norte da Europa, cujo tecido económico foi bastante menos tocado pela crise internacional, perguntava-me de que modo a nossa diplomacia se estava a adaptar ao tempo de exigência acrescida que o país atravessava. A sua curiosidade tinha a ver, não apenas com a possibilidade de estarmos a encarar uma melhor adequação do nosso dispositivo diplomático aos objetivos mais imediatos da ação externa mas, igualmente, quanto ao modo como o nosso próprio trabalho teria, ou não, sofrido uma mutação qualitativa, em função de alguma reversão de hierarquia de prioridades.

A questão era interessante, embora a resposta não fosse óbvia. A diplomacia, como instrumento executivo da política externa, configura-se com a evolução dos tempos, por uma reformulação de prioridades, decorrente de novos objetivos. Embora deva ter-se sempre presente – e sei que isto pode parecer chocante para alguns cultores do imediatismo – que o papel dos diplomatas, na fixação da imagem do país, deve ir sempre um pouco para além das conjunturas. Essa é a razão pela qual a resposta às solicitações prementes do presente deve ser, no seio da nossa ação externa, modulada em permanência com a necessidade de garantir a preservação dos interesses permanentes do país, numa perspetiva de coerência de longo prazo. A nossa história não se improvisa.

Indo por partes, eu diria que, em face da presente crise, a diplomacia portuguesa tem diante de si três linhas de adaptação.

Em primeiro lugar, dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros não deixou de se considerar, desde o primeiro momento, a importância de repensar a rede diplomática existente, dando atenção particular a áreas geográficas que, não tendo sido privilegiadas nas opções de distribuição de recursos funcionais no passado, convinha que passassem a dispor de uma maior atenção no futuro. Quero com isto dizer que zonas como o norte de África, os países do Golfo e certos mercados asiáticos passaram a entrar na nossa ordem de prioridades, com vista a tentar conseguir novos pontos de apoio à atividade empresarial. Isso tornou-se particularmente importante face a mercados cuja evolução previsível de crescimento pudesse, simultaneamente, vir absorver produção nacional que tivesse menos atratividade para os nossos parceiros tradicionais (em especial, europeus) e garantir espaços sustentados de progressão futura de novas linhas de exportação. Assim foi feito e, estou certo, a prazo, os efeitos ir-se-ão sentir.

A segunda linha é de natureza formativa. Não vale a pena esconder que ainda não está ainda criada, no conjunto da nossa administração pública que opera na ordem externa, uma cultura de trabalho em comum. As razões são diversas, do corporativismo a alguma incompetência. Com felicidade, faço parte daquele grupo de diplomatas que sempre teve uma muito positiva experiência de trabalho conjunto com as estruturas de promoção económica externa (do FFE à AICEP, passando pelo ICEP/API). Por razões diversas, sei que essa experiência não é idêntica à de muitos colegas da diplomacia portuguesa. Não vale a pena estar a distribuir culpas, até pela certeza de que elas não estarão sempre do mesmo lado. Algo tem de mudar neste âmbito e, para isso, de há muito que só vislumbro uma solução, que sei difícil de pôr em prática, por escassez de recursos humanos: promover estágios profissionais cruzados, tanto nas instituições como nas empresas e nas associações empresariais, com suficiente duração para que tal possa ter reais efeitos, num esforço geral de aculturação.

Uma terceira vertente tem a ver com a mudança no paradigma da intervenção das nossas embaixadas, com impacto na informação que produzem. Imagino que a abordagem pública da questão, numa publicação desta natureza, possa escandalizar alguns. Mas julgo ter um mínimo de autoridade experiência para exprimir o que adiante vou dizer.

A diplomacia portuguesa não se deve esgotar no apoio à projeção económica externa do país – no comércio, na promoção do turismo ou na captação de IDE. A atenção à imagem do país na ordem internacional, o cultivo das redes de interesses políticos e culturais que o bilateralismo histórico justifica, a promoção da língua portuguesa e a proteção da diáspora são outros tantos pontos importantes a salvaguardar, como decisivo é sabermos potenciar o nosso valor acrescentado nacional de natureza política, como país construtor de pontes e entendimentos, à escala global. Como a eleição recente para o Conselho de Segurança da ONU o provou. Porque tudo isso, ao funcionar positivamente em favor da imagem do país, acaba por ajudar à criação de um ambiente favorável à promoção dos nossos interesses económicos – e dispensem-me de dar exemplos, por razões que julgo óbvias.

Porém, e como um dia já disse, com choque em alguns ouvidos mais sensíveis,  entendo que o MNE precisa de “menos Kosovo e mais batatas”, querendo com isto dizer que a diplomacia portuguesa tem de continuar o esforço já iniciado no sentido de infletir a sua focagem de prioridades, passando a perceber que a “política pura”, embora podendo dar-nos uma base interessante para um bilateralismo com vantagens, deve sempre apontar para uma visão objetiva dos interesses económicos que importa privilegiar, muito em especial numa situação de crise como a que vivemos.

Mas que fique clara uma coisa: não defendo que a política externa portuguesa seja refém da promoção económica externa, que se opte por uma “reapolitik” de interesses, como se o MNE devesse passar a ser, unicamente, uma espécie de agência de promoção externa de negócios. Não deve sê-lo exclusivamente, mas deve sê-lo também. E, para isto, não são precisos novos despachos ou decretos. Basta haver vontade.

Uma das razões pela qual não defendo uma dependência excessiva da nossa política externa face aos nossos interesses económicos tem a ver com o facto, que pude constatar ao longo das mais de três décadas que levo de ação diplomática, de que essa mesma atividade económica está longe de ter uma coerência mínima: os mercados flutuam, as prioridades variam, a oferta “tem dias”, os nossos empresários – desculpem lá! – têm estados de alma flutuantes. Se a ação externa do país ficasse vinculada, rigidamente, às opções do nosso comércio externo, Portugal teria a imagem de um catavento!

Por isso, recomendo apenas prudência, bom-senso e troca intensa de informação. À nossa diplomacia pode e deve ser pedido um grande empenhamento na promoção da atividade dos nossos agentes económicos. Os diplomatas portugueses devem ser mobilizados para servirem de eixo às campanhas de estímulo à atividade económica externa, as nossas embaixadas devem ser a “casa” dos empresários. Mas tudo isto tem de ter uma coerência global, uma hierarquia de prioridades bem estabelecida, uma dotação mínima de meios e uma proporção adequada de empenhamento. Uma missão diplomática ou consular não pode ser mobilizada apenas porque um empresário o solicita: essa solicitação tem de corresponder a uma razoável contrapartida previsível das vantagens potenciais decorrentes para o país.

É para essa avaliação que a diplomacia espera poder contar sempre com o insubstituível papel técnico da AICEP, como estrutura com capacidade de aferição daquilo que é, a cada momento, o interesse económico prioritário do país na ordem externa. É nesse diálogo, que não é complicado se dele forem excluídos os egos e os reflexos de casta, que deve assentar a parceria constante entre a atividade económica externa e diplomacia portuguesas." 

A alguns observadores poderá parecer que a evolução subsequente ocorrida no tratamento deste tema, no tocante aos novos modelos institucionais em vias de criação, pode ter desatualizado o que acima se escreveu. Leiam bem. Não há a menor contradição entre o que foi decidido e espírito que neste texto defendo como devendo estar na base do nosso trabalho futuro. Nem podia haver.

sábado, outubro 22, 2011

Eugénio Lisboa

A universidade de Aveiro promove hoje uma justíssima homenagem a um homem a quem a literatura portuguesa muito deve, através do lançamento do livro que lhe é dedicado: "Eugénio Lisboa: vário, intrépido e fecundo - uma homenagem". Tenho imensa pena de não pode estar presente nesta ocasião, mas o dom da ubiquidade, por ora, ainda me é alheio.

E aqui fica o curto texto com que, no livro, saúdo o Eugénio:

Por décadas, li o nome de Eugénio Lisboa em textos críticos sobre literatura portuguesa que me iam passando à frente dos olhos. Como essa era uma “praia”, como agora se diz, que eu apenas tocava pela rama, tinha, acerca dele, alguma, mas não excessiva, curiosidade, apenas potenciada pela raridade do facto de se tratar de um “engenheiro”, qualidade que partilhava com o Jorge de Sena – mas isso num tempo em que os engenheiros ainda não assumiam a importância que, entre nós, viriam a ter…

A circunstância de ter raízes em Moçambique e de, mais tarde, ter andado por França e pela Suécia, situavam Eugénio Lisboa, no meu imaginário, na prateleira prestigiada dos expatriados da nossa cultura, essas figuras com cujas assinaturas eu tropeçava em livros e artigos e que, de quando em quando, entrevia em colóquios ou na televisão, saídos da sua habitual geografia. Mas eu nunca fui fã de José Régio (o Eugénio não me vai perdoar esta!) e esse era o terreno de estimação do nosso crítico, pelo que não atentava, como seguramente deveria, ao que ele escrevia sobre o poeta – no “Colóquio Letras”, no JL e noutras folhas cultas e de culto.

Um dia, no início dos anos 90, ao ser colocado em Londres, tive oportunidade de pôr finalmente uma fotografia no nome do Eugénio Lisboa. E, simultaneamente, no de Rui Knopfli, com quem ele fazia um singular “par” de conselheiros da coisa escrita – o Lisboa, da cultura, o Knopfli, da imprensa – dentro da nossa Embaixada. Durante mais de quatro anos, convivi diariamente com ambos e, no meu saldo pessoal, julgo neles ter feito dois amigos. Era muito interessante observar a sua complementaridade, o sublinhar das comuns raízes moçambicanas, distintos no trabalhar de certas memórias, sobre figuras do passado frequentado e no modo de viver o presente de então. Porém, onde o Eugénio era uma formiga de trabalho, o Rui era uma cigarra, de cigarros seguidos e outros vícios, onde parecia assentar a alegria residual da sua vida e em que preparava, com uma certeza que íamos visualizando, o caminho apressado para a morte. Por mais de uma vez, fui aliado do Eugénio Lisboa – cuja óbvia ternura pelo Rui sempre mascarava – na tentativa de salvar o poeta de si próprio. E ambos sofríamos, cada um a seu modo, a inglória certeza, a prazo, desse esforço. 

Sou testemunha privilegiada de que, em Londres, Eugénio Lisboa desenvolveu um trabalho notável na promoção da nossa cultura. Para além de animar, frequentemente com a sua presença, muitas iniciativas, dedicava-se, com afinco, à edição de traduções de clássicos da nossa literatura, através da “Carcanet Press”. Com o Helder Macedo e com Michael Collins, seus principais cúmplices em iniciativas a que, com pertinácia, se dedicava, o Eugénio procurou “furar” o complexo mundo do tecido cultural britânico, tendo, a seu lado na Embaixada, a ajuda entusiasta e atenta de Mercês Gibson. Olhando para trás, tenho consciência de que procurei ser útil, à medida do que me era possível, a esse labor, onde frequentemente nos deparávamos com boas vontades – como era o caso da Fundação Calouste Gulbenkian – mas, igualmente, com alguns egos de estimação, às vezes de natureza institucional, bem difíceis de contornar.

Foi pela mão do Eugénio Lisboa que vim a conhecer figuras como o jornalista António de Figueiredo, lendário representante de Humberto Delgado em Londres, o advogado Adrião Rodrigues, nome destacado dos “Democratas de Moçambique”, ou Alexandre Pinheiro Torres, um escritor cuja obra justificaria maior reconhecimento público. Em Londres, o Eugénio funcionava como uma espécie de “placa giratória” por onde passava muito do mundo cultural português, mas onde a África lusófona estava sempre presente.

Esse “carrefour” londrino nem sempre era tão pacífico como se poderia pensar – mas, com o tempo, habituei-me a perceber que o mundo cultural é um espaço onde, com alguma facilidade, as personalidades se chocam e as palavras podem desencadear grandes fogueiras. Recordo-me de uma polémica, que envolveu o Eugénio Lisboa e o José Saramago, a propósito de um almoço que eu havia oferecido ao escritor, com a presença do Hélder Macedo, da Paula Rego, do Bartolomeu Cid dos Santos, do Luís de Sousa Rebelo e do Rui Knopfli. O modo como Saramago relatou uma cena desse repasto, nos seus “Cadernos de Lanzarote”, criou uma fúria no Eugénio, que zurziu o escritor no JL. A diplomacia não exclui a indignação.  

Devo confessar que tenho alguma saudade das conversas que, aos fins de tarde, mantínhamos no meu gabinete, muitas vezes acompanhados pelo fumo e pela ironia do Rui Knopfli. Ouvia-os então cruzar memórias africanas, referências literárias, leituras pessoais de episódios comuns do passado, tudo envolvido na agudeza crítica que, quando inteligente, não faz mal a ninguém.

Homenagear o Eugénio Lisboa, como grande figura da cultura portuguesa – não esquecendo a imprescindível serenidade da Antonieta, a seu lado –, é um ato mínimo de justiça. E, para mim, é também uma oportunidade para lhe enviar um abraço de sólida amizade.

sexta-feira, outubro 21, 2011

JL

A convite do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, publico na última página do seu mais recente número um "Diário" intitulado "Cais das Necessidades". Os leitores deste blogue pouco ou nada lá encontrarão de novo...

domingo, outubro 16, 2011

Negar a mentira

Há muitos anos que leio, publicadas em jornais, "cartas ao diretor", destinadas a retificar escritos. Tanto quanto me lembro, só por duas vezes me senti motivado a utilizar essa figura: uma primeira vez em 2002 e outra hoje. O que não deixa de ser curioso. Em ambos os casos, para denunciar coisas flagrantemente falsas, sem o menor apoio em factos. Nada de particularmente grave ou preocupante, atenta a notória falta de credibilidade daquilo que foi publicado. Mas apenas porque achei importante "to set the record straight". Para desmentir. Etimologicamente: para negar a mentira.

quarta-feira, setembro 28, 2011

BB e David

O franceses habituaram-se a interpretar BB como as iniciais de Brigitte Bardot*. Bertolt Brecht, o genial escritor e teatrólogo alemão, usou as mesmas iniciais no seu magnífico poema "Do pobre BB", que Jorge Palma cantou num álbum de 2005. E, no mesmo registo, há que lembrar BB King, esse génio do jazz que tive o privilégio de ouvir ao vivo, por mais de uma vez.

Portugal tem também o seu BB - as iniciais pelas quais fica identificado Baptista Bastos. Conheci-o pessoalmente há quase 40 anos, quando, pelas tardes, nos encontrávamos num café e bar no topo da então livraria Opinião, na rua da Trindade - eu saído do meu emprego na Caixa, ao Calhariz, ele acabado o seu trabalho no "Diário Popular", também por ali perto. Esse era então um espaço aberto de conversa onde eu me imiscuíra, por via de amigos comuns. Por lá paravam jornalistas, escritores e outros que, como eu, eram meros espetadores atentos da vida intelectual de Lisboa. Com a sua voz bem caraterística, não abandonando a marca pessoal que é o seu laço, Baptista Bastos confirmava, em pessoa, a frontalidade opinativa a que sempre nos viria a habituar no futuro. Passei a lê-lo com regularidade e, depois sempre à distância, a apreciar o seu sentido crítico e a sua postura ética, muito em especial a independência com que sempre preserva a amizade por cima das ideologias. E, também, a sua rara maestria no domínio do português, uma "arma" que utiliza como poucos poucos e cuja "bala" mordaz tem criado engulhos em muitos.

A que propósito lembro BB agora? Porque acabo de ler a magnífica crónica que ele hoje publica no "Diário de Notícias", sobre esse outro grande senhor da literatura portuguesa, que se chamou David Mourão-Ferreira.

Nestes dias de uma "Lisboa contada pelos dedos", em que há cada vez mais "Gaivotas em terra", haveria grande proveito em que se lesse e relesse esses dois grandes escritores.

* que hoje faz 77 anos

sábado, setembro 10, 2011

11 de setembro

Nestes que foram os dez anos passados sobre o 11 de setembro, e porque vivi então a data em Nova Iorque, quando aí era embaixador português junto da ONU, fui chamado a dar testemunhos em diversos jornais, rádios e televisões. 

Não procurei ser original, até porque há muito que sedimentei aquilo que penso sobre o que se passou nessa data e no que se lhe sucedeu.  

Correndo o risco de ser repetitivo, e para quem possa estar interessado, deixo "links" para três textos: aqui, ali e acolá. Hoje, escrevi no "Correio da Manhã" isto.

Mas é isto é o que eu gosto de recordar de Nova Iorque, com um abraço aos amigos que por lá deixei.

sexta-feira, agosto 26, 2011

Diplomacia económica

Porque o tema da diplomacia económica está na ordem do dia, reproduzo aqui o texto do artigo "Diplomacia em tempo de crise" que publiquei, na edição de junho de 2011, da revista "Portugal Global", da AICEP:
 
"Não há muito tempo, um colega de um país do norte da Europa, cujo tecido económico foi bastante menos tocado pela crise internacional, perguntava-me de que modo a nossa diplomacia se estava a adaptar ao tempo de exigência acrescida que o país atravessava. A sua curiosidade tinha a ver, não apenas com a possibilidade de estarmos a encarar uma melhor adequação do nosso dispositivo diplomático aos objetivos mais imediatos da ação externa mas, igualmente, quanto ao modo como o nosso próprio trabalho teria, ou não, sofrido uma mutação qualitativa, em função de alguma reversão de hierarquia de prioridades.

A questão era interessante, embora a resposta não fosse óbvia. A diplomacia, como instrumento executivo da política externa, configura-se com a evolução dos tempos, por uma reformulação de prioridades, decorrente de novos objetivos. Embora deva ter-se sempre presente – e sei que isto pode parecer chocante para alguns cultores do imediatismo – que o papel dos diplomatas, na fixação da imagem do país, deve ir sempre um pouco para além das conjunturas. Essa é a razão pela qual a resposta às solicitações prementes do presente deve ser, no seio da nossa ação externa, modulada em permanência com a necessidade de garantir a preservação dos interesses permanentes do país, numa perspetiva de coerência de longo prazo. A nossa história não se improvisa.

Indo por partes, eu diria que, em face da presente crise, a diplomacia portuguesa tem, diante de si, três linhas de adaptação.

Em primeiro lugar, dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros não deixou de se considerar, desde o primeiro momento, a importância de repensar a rede diplomática existente, dando atenção particular a áreas geográficas que, não tendo sido privilegiadas nas opções de distribuição de recursos funcionais no passado, convinha que passassem a dispor de uma maior atenção no futuro. Quero com isto dizer que zonas como o norte de África, os países do Golfo e certos mercados asiáticos passaram a entrar na nossa ordem de prioridades, com vista a tentar conseguir novos pontos de apoio à atividade empresarial. Isso tornou-se particularmente importante face a mercados cuja evolução previsível de crescimento pudesse, simultaneamente, vir absorver produção nacional que tivesse menos atratividade para os nossos parceiros tradicionais (em especial, europeus) e garantir espaços sustentados de progressão futura de novas linhas de exportação. Assim foi feito e, estou certo, a prazo, os efeitos ir-se-ão sentir.

A segunda linha é de natureza formativa. Não vale a pena esconder que ainda não está ainda criada, no conjunto da nossa administração pública que opera na ordem externa, uma cultura de trabalho em comum. As razões são diversas, do corporativismo a alguma incompetência. Com felicidade, faço parte daquele grupo de diplomatas que sempre teve uma muito positiva experiência de trabalho conjunto com as estruturas de promoção económica externa (do FFE à AICEP, passando pelo ICEP/API). Por razões diversas, sei que essa experiência não é idêntica à de muitos colegas da diplomacia portuguesa. Não vale a pena estar a distribuir culpas, até pela certeza de que elas não estarão sempre do mesmo lado. Algo tem de mudar neste âmbito e, para isso, de há muito que só vislumbro uma solução, que sei difícil de pôr em prática, por escassez de recursos humanos: promover estágios profissionais cruzados, tanto nas instituições como nas empresas e nas associações empresariais, com suficiente duração para que tal possa ter reais efeitos, num esforço geral de aculturação.

Uma terceira vertente tem a ver com a mudança no paradigma da intervenção das nossas embaixadas, com impacto na informação que produzem. Imagino que a abordagem pública da questão, numa publicação desta natureza, possa escandalizar alguns. Mas julgo ter um mínimo de autoridade experiência para exprimir o que adiante vou dizer.

A diplomacia portuguesa não se deve esgotar no apoio à projeção económica externa do país – no comércio, na promoção do turismo ou na captação de IDE. A atenção à imagem do país na ordem internacional, o cultivo das redes de interesses políticos e culturais que o bilateralismo histórico justifica, a promoção da língua portuguesa e a proteção da diáspora são outros tantos pontos importantes a salvaguardar, como decisivo é sabermos potenciar o nosso valor acrescentado nacional de natureza política, como país construtor de pontes e entendimentos, à escala global. Como a eleição recente para o Conselho de Segurança da ONU o provou. Porque tudo isso, ao funcionar positivamente em favor da imagem do país, acaba por ajudar à criação de um ambiente favorável à promoção dos nossos interesses económicos – e dispensem-me de dar exemplos, por razões que julgo óbvias.

Porém, e como um dia já disse, com choque em alguns ouvidos mais sensíveis,  entendo que o MNE precisa de “menos Kosovo e mais batatas”, querendo com isto dizer que a diplomacia portuguesa tem de continuar o esforço já iniciado no sentido de infletir a sua focagem de prioridades, passando a perceber que a “política pura”, embora podendo dar-nos uma base interessante para um bilateralismo com vantagens, deve sempre apontar para uma visão objetiva dos interesses económicos que importa privilegiar, muito em especial numa situação de crise como a que vivemos.

Mas que fique clara uma coisa: não defendo que a política externa portuguesa seja refém da promoção económica externa, que se opte por uma “reapolitik” de interesses, como se o MNE devesse passar a ser, unicamente, uma espécie de agência de promoção externa de negócios. Não deve sê-lo exclusivamente, mas deve sê-lo também. E, para isto, não são precisos novos despachos ou decretos. Basta haver vontade.

Uma das razões pela qual não defendo uma dependência excessiva da nossa política externa face aos nossos interesses económicos tem a ver com o facto, que pude constatar ao longo das mais de três décadas que levo de ação diplomática, de que essa mesma atividade económica está longe de ter uma coerência mínima: os mercados flutuam, as prioridades variam, a oferta “tem dias”, os nossos empresários – desculpem lá! – têm estados de alma flutuantes. Se a ação externa do país ficasse vinculada, rigidamente, às opções do nosso comércio externo, Portugal teria a imagem de um catavento!

Por isso, recomendo apenas prudência, bom-senso e troca intensa de informação. À nossa diplomacia pode e deve ser pedido um grande empenhamento na promoção da atividade dos nossos agentes económicos. Os diplomatas portugueses devem ser mobilizados para servirem de eixo às campanhas de estímulo à atividade económica externa, as nossas embaixadas devem ser a “casa” dos empresários. Mas tudo isto tem de ter uma coerência global, uma hierarquia de prioridades bem estabelecida, uma dotação mínima de meios e uma proporção adequada de empenhamento. Uma missão diplomática ou consular não pode ser mobilizada apenas porque um empresário o solicita: essa solicitação tem de corresponder a uma razoável contrapartida previsível das vantagens potenciais decorrentes para o país.

É para essa avaliação que a diplomacia espera poder contar sempre com o insubstituível papel técnico da AICEP, como estrutura com capacidade de aferição daquilo que é, a cada momento, o interesse económico prioritário do país na ordem externa. É nesse diálogo, que não é complicado se dele forem excluídos os egos e os reflexos de casta, que deve assentar a parceria constante entre a atividade económica externa e diplomacia portuguesas."

sexta-feira, agosto 12, 2011

Águas passadas no DOC

Ontem, no rio Douro, ao passar em frente ao restaurante DOC (como registo na foto), na Folgosa, entre a Régua e o Pinhão, recordei-me de ter escrito, já há quase três anos, um texto num blogue ("paralelo") que não tenho alimentado muito e que se chama Ponto Come. Tratou-se de uma "estranha" experiência ocorrida nesse mesmo DOC. Nestes tempos de assumida preguiça, e com uma ainda mais assumida publicidade a essa bela mesa gastronómica, aqui fica o texto (ainda antes do AO, para os saudosos):

O entusiasmo com que partira a caminho do DOC foi de tal forma afectado pelo choque da informação recebida que abrandei a velocidade e quase parei o carro. Um jantar no DOC, sem vinho?!

Pois era essa a proposta, nem mais nem menos: uma refeição de degustação, só com águas e total ausência de alcoóis. Confesso que a hipótese de desistir chegou a passar-me pela cabeça e que só o facto de haver um compromisso fixado com antecedência, e não querendo ofender o autor do alvitre – um arquitecto de “primeira água” –, fez com que a minha relutância fosse atenuada.

A imagem que eu mantinha do DOC era muito positiva, pela boa memória de uma visita passada. Críticas lidas ao longo do ano haviam-me alimentado o desejo de regressar e rever a cozinha de Rui Paula, que me diziam estar cada vez mais imaginativa, com uma rara sustentação de qualidade. Mas, tenho de confessar, desse desejo também fazia parte integrante a possibilidade de acompanhar a comida com algum ou alguns dos excelentes Douros que integram a magnífica lista de vinhos que o restaurante sempre apresenta.

O DOC tem uma situação privilegiada, na margem esquerda do Rio Douro, a meio desse percurso mágico que é a sinuosa estrada entre a Régua e o Pinhão, bordejada de vinhas e nomes de quintas, algumas a fazerem-nos recordar rótulos de belas produções vinícolas. O local é magnífico, em dia ameno pode-se utilizar o deck exterior. Dentro, telas de plasma na sala permitem seguir os trabalhos na cozinha, um exercício de transparência que nos aumenta a confiança. Uma área para amenizar a espera foi entretanto criada, com um piano a sugerir interessantes potencialidades e a assegurar que nunca o espaço virá a ser perturbado por uma qualquer “musak” ambiental. E, sobre tudo isso, a certeza de podermos beneficiar de um cenário deslumbrante, no centro de uma paisagem de uma serenidade única.

Tudo bem, tudo isso era verdade, mas a minha perplexidade mantinha-se. A ideia continuava a ser verdadeiramente bizarra: um jantar degustação, sem vinhos, só com águas?! Não sou fundamentalista, não sou um ansioso de vinho, passo imensos dias sem provar uma gota de álcool. Mas no DOC, no coração do Douro, um jantar sem vinho soava-me como que ofensivo a esses “montes pintados” que Araújo Correia nos descreveu.

Foi num misto de perplexidade e curiosidade, com a primeira a superar em muito a segunda, que entrei no restaurante. Ainda lancei, sem sucesso, a ideia de, pelo menos, “abrir” com um gin tónico, como que a criar lastro etílico para sustentar o que aí viria. Fui logo desiludido por vozes suavemente reprovadoras, que me alertaram para os riscos de afectação da pureza gustativa, a qual deveria ser mantida numa espécie de virgindade profiláctica, indispensável ao acolhimento dos gozos que se seguiriam.

E, pronto, lá fomos para a mesa, uma dúzia de convivas, a maioria desconhecidos, uns aparentemente mais convictos das virtualidades do exercício que outros – comigo, francamente, bem ancorado no campo dos últimos.

Tudo começou por um período inicial de carência psicológica, em que um ou outro lá ia recordando a falta do vinho à mesa. A sólida constatação de que o único líquido permitido seria a água provocou então graçolas nervosas, com os mais imaginativos a aventarem o recurso limite a uma “aguardente” ou a uma “água-pé”.

É que, de facto, eram as águas as rainhas da noite. Águas diferentes, umas lisas outras gasosas, umas mais “planas” outras mais “profundas”, algumas algo “agressivas”. Tivemos até o privilégio de provar umas nórdicas de belo design, mais frescas umas que outras. Sempre águas, claro! Apenas uma água era portuguesa e, para mim, totalmente desconhecida.

Durante o repasto, as águas sucediam-se, em copos diferentes, cada uma a acompanhar as (creio!) oito propostas gastronómicas, que não estavam sequer listadas à partida. Um simpático “expert” – reputado conhecedor de vinhos, imaginem! – procurava ajudar-nos a identificar, não apenas a singularidade de cada uma das águas experimentadas (sobre cujas qualidades comparadas alguns dos convivas já ousavam, a medo, “mandar bitaites”), mas igualmente a razão pela qual essa mesma água fora seleccionada para acompanhar tal prato, em função do seu potencial para combinar, por contraste ou complemento, o produto cozinhado.

E foi então que se foi passando essa coisa extraordinária que foi o facto de, sem disso termos real consciência, a ausência do vinho ter deixado praticamente de constituir tema da conversa, muito menos de qualquer angústia. A refeição, regada a águas, ia-se impondo naturalmente, perante o deslumbre dos sentidos, a variedade das escolhas propostas, a riqueza das combinações que nos eram oferecidas.

Duas evidências ficaram claras, na minha perspectiva.

A primeira foi o facto da ausência do vinho nos ter tornado, a todos, muito mais atentos aos sabores do que nos ia sendo apresentado, não nos “distraindo” da essência dos paladares, obrigando a que nos concentrássemos, de forma mais profunda, em cada componente do que nos era sugerido. Por mim, pude constatar que o vinho, em toda a sua imorredoura glória de factor criativo e de qualificador global do gosto, pode ter o “defeito” colateral de nos afastar do esforço de procura de construção/desconstrução do que estamos a saborear, da especificidade de um molho, da ténue diferença gustativa de um vegetal, da “nuance”, quase imperceptível, de um produto sujeito a um tratamento muito sofisticado. Digo isto porque, talvez pela primeira vez desde há muito, consegui descortinar e isolar, combinando-os depois muito melhor, os componentes que o Chefe ia indicando como constituintes das propostas gastronómicas que surgiam.

Quererei dizer, com isto, bem no coração deste nosso Douro, que o vinho passou a ser algo dispensável? Longe disso: o vinho é, cada vez mais, o grande “sublinhador” criativo dos paladares, o provocador de efeitos que se acrescentam aos alimentos e deles consegue extrair novos e decisivos matizes. E tem, além disso, uma importante carga eufórica, que excita as almas e alegra os tempos, particularmente se for de qualidade e se tomado com conta, peso e medida – e, claro, se as garrafas forem abertas com antecedência adequada e se servido à temperatura requerida.

Mas esta interessante experiência teve a virtualidade de nos mostrar que, numa refeição, há mais vida para além do vinho, se bem que a vida e a refeição sejam sempre muito boas com ele à frente.

Uma segunda constatação também se impõe: a virtualidade desta prova, sem o recurso ao complemento do vinho, só teve o sucesso que teve pelo facto de ter sido apoiada na qualidade excepcional de todos os pratos apresentados, que a ausência do álcool permitiu que ganhassem autonomia própria, deixando-os “brilhar” por si mesmos. E foi a circunstância dessa qualidade nunca ter decaído ao longo do jantar, de prato para prato, que conseguiu garantir um apego contínuo e sustentado do nosso paladar àquilo que íamos degustando, sem fazer ressaltar a “saudade” do travo adjectivo do vinho. Com uma refeição banal, por melhores que fossem as águas, tudo não teria passado de uma grande “seca”… E eu, tenho de admitir, fui menos capaz do que outros companheiros desta agradável jornada de ser sensível a algumas características específicas que eram atribuídas e identificadas em cada uma das águas provadas.

Dito isto, vamos ao principal: Rui Paula provou-me definitivamente, nesta memorável noite, que é hoje um dos chefes portugueses com maior criatividade, que consegue aliar a sofisticação de uma cozinha contemporânea de grande nível e excelente apresentação com algumas notas de rodapé gustativo, em que faz orgulhosa questão de trazer-nos à lembrança sabores regionais, na maioria dos casos tipicamente nortenhos, umas vezes de forma subliminar, outras de modo plenamente assumido. Rui Paula consegue assim demonstrar-nos – e entendo que outros deveriam aprender com isso – que o cosmopolitismo sofisticado de uma cozinha não é incompatível com o recurso a citações sensoriais ligadas às raízes geográficas de onde se opera. Pelo contrário, a originalidade do que nos propõe no DOC só ganha com a chamada à mesa desses mesmos elementos.

Num circo, trabalhar sem rede é um risco que enobrece a arte. Num restaurante, ousar um menu sem o recurso ao complemento de vinhos será talvez a prova mais provada de que a grande gastronomia também se constrói na autoconfiança e na certeza de que a qualidade se imporá sempre por si própria. Quando exista no trabalho de um grande Chefe, como é o caso de Rui Paula.

A boa disposição com que saí deste exercício – que, a bem dizer, deveria ter o “mecenato” da Brigada de Trânsito da GNR – leva-me a ecoar a já célebre frase de um velho oficial de Marinha, pouco navegado nas especificidades da gramática, que a nossa História acolheu como uma patética anedota política, quando um dia quis qualificar uma sua qualquer alegria pública: “só tenho um ‘adjectivo’ para expressar o que hoje aqui senti: gostei!”.

sexta-feira, julho 08, 2011

Ainda as agências de notação

Quem estiver interessado pode consultar o artigo que hoje publico no principal diário económico francês sobre o comportamento das agências de notação financeira quanto à economia portuguesa.

O texto foi enviado na tarde de quarta-feira para o jornal. A questão colocada no seu último parágrafo acabou por ser (parcialmente) respondida ontem à tarde pelo Banco Central Europeu. Só nos podemos felicitar.

Leia o artigo (em francês) aqui (ou aqui) ou em português aqui.

A pedido da TSF, comentei o artigo desta forma.

quinta-feira, junho 16, 2011

Ainda o Dia de Portugal

Para registo, aqui fica a mensagem do embaixador de Portugal em França, por ocasião do Dia de Portugal, publicada pelo LusoJornal.

quarta-feira, junho 01, 2011

As relações económicas entre a França e Portugal

A revista "Portugal Global", editada pela AICEP, publica no seu número de Junho de 2011, que hoje surge a público, um completo dossiê sobre as relações económicas bilaterais entre a França e Portugal. Pode consultar o pdf da revista aqui.

Neste número, publico um artigo intitulado "Diplomacia em tempo de crise", que pode ler na revista ou aqui

quinta-feira, abril 28, 2011

Morte

Hoje, mais uma vez, a A10 provou ser a estrada que tanto serve para conduzir os portugueses à alegria do encontro com as suas famílias como pode servir de cenário onde, nas últimas décadas, a vida de muitos terminou abruptamente. Seis cidadãos de origem portuguesa, bem como um francês, morreram esta noite, perto de Bordéus, num terrível acidente rodoviário. Que se pode dizer mais?

Em tempo: sobre o assunto, publiquei, em 29.4.1, no "Correio da Manhã". um artigo.

sexta-feira, abril 22, 2011

... e Steinbroken lá respondeu!

Em belo soneto a preceito, o Conde de Steinbroken respondeu ao desafio de João da Ega (que o "Diário de Notícias" hoje gentilmente reproduz)

Entretanto, e em atenção aos mais ignaros, o Notas Verbais foi obrigado a fazer pedagogia queirosiana.

Para quem quiser saber um pouco mais sobre esse vulto da diplomacia nórdica, aconselho uma visita aqui.

E deixo este daguerreótipo, bem raro, em que o jovem Steinbroken aparece, em férias em Jyväskylä, ao lado da sua irmã Toroteija, que uma tísica haveria de vitimar, poucos anos depois, ainda no alvor da sua juventude.

segunda-feira, abril 18, 2011

Carta a um diplomata finlandês

Caro Steinbroken

Por estes dias, recordo as noitadas em que nos cruzávamos nos salões dos Maias, no Ramalhete, às Janelas Verdes, nas tertúlias que o José Maria retratou no livro a que deu o nome daquela família.

Lembro-me da generosidade com que você, diplomata finlandês, era recebido naquele cenáculo, onde, com carinho lusitano mas cosmopolita, entre mesas de whist ou numa ronda de bilhar, ou ouvindo-o a si como "barítono plenipotenciário", procurávamos atenuar a sua nórdica solidão.

Muita água passou sob as pontes. Você regressou aos gelos da sua Finlândia, eu por aqui fiquei, com a escassa fortuna que Celorico me deixou.

Há uns anos, caro Steinbroken, você escreveu-me para Lisboa, dizendo do agrado com que vira Portugal apoiar, com entusiasmo, a entrada do seu país na União Europeia. Elogiou o facto de, ao contrário de outros, não termos achado que a "finlandização" havia sido um imperdoável pecado histórico de agnosticismo estratégico, um genérico triste da "realpolitik". E recordar-se-á de eu lhe ter respondido, na volta do correio, que, conhecendo-o a si, nunca o tivera por seguidor do "better red than dead".

Noutra ocasião, você veio bater-me epistolarmente à porta, pedindo que deixasse cair uma palavra nas Necessidades, com vista a evitar que Portugal cedesse a um compreensível egoísmo, por mor dos fundos estruturais, a ponto de poder criar obstáculos aos Estados bálticos, “primos” da Escandinávia, que queriam então aceder à NATO e à União Europeia. A resposta da nossa diplomacia foi, reconheça, soberba: embora o alargamento fosse um passo que tinha em Portugal um dos países mais prejudicados, adoptávamos uma visão solidária da Europa, pelo que entendíamos que um mínimo de respeito histórico nos obrigava a acolher aqueles Estados no nosso seio. Da caixa de vodka que você me mandou, com um cartão catita, a agradecer a diligência, ainda me resta uma botelha.

Pensava partilhá-la consigo, Steinbroken, numa sua próxima vinda a Portugal, à cata de sol e de olho nos corpos morenos, Chiado abaixo. Passaríamos pelo Grémio, jantaríamos no Tavares e iríamos degustar o resto dos álcoois no meu terraço, Tejo à vista. Eu contar-lhe-ia a poética aventura eleitoral do Alencar, a carreira como banqueiro da besta do Dâmaso, o folhetim da venda da “Corneta do Diabo” à Prisa, a colaboração do Cruges com os “Deolinda”, a agitação do Gouvarinho e de outros tantos, nas lides que levam às Cortes.

Mas, agora, o que me chega? Que você foi ouvido, num dos últimos dias, passeando sob as árvores onde o verde já brota, ali na Promenade, no centro de Helsínquia, recém-saído do spa do vizinho Kämp, de braço dado com um alemão, com tiradas muito pouco simpáticas sobre Portugal e os portugueses. E que dizia você? Que, afinal, o compromisso político que a Finlândia havia dado à estabilidade do euro, que servira para a Grécia e para a Irlanda, poderia já não valer para Portugal. Ao seu lado, o alemão ecoava coisas parecidas, quiçá esquecido que o meu país, como todos os outros parceiros europeus, andou anos a pagar elevadas taxas de juro, para liquidar a fatura da reunificação da Alemanha, que hoje é, como sempre foi, o grande beneficiário do mercado interno europeu. 

É triste, caro Steinbroken, é muito triste que a frieza do vosso egoísmo lhes faça esquecer que a solidariedade é uma estrada de dois sentidos. Aqui, por Portugal, estamos a atravessar uma conjuntura difícil. Outras já tivemos, todas ultrapassámos. Mais recentemente, cometemos alguns erros, revelámos fragilidades que a crise sublinhou. Pensávamos poder contar com os amigos. Ao longo dos tempos, aprendemos a ser gratos a quem nos ajuda, a ser-lhes leais quando de nós necessitam. Não somos rancorosos, porque alimentar ressentimentos mesquinhos não está na nossa maneira de ser. E sabe porquê? Porque, na vida internacional, mantemos alguns sólidos valores, os mesmos que nos permitiram sobreviver nove séculos como país, um dos mais antigos do mundo, sabia? 

A vossa atitude, a vossa quebra de solidariedade, porque revela o conceito instrumental que têm da Europa, para utilizar uma frase que você repetia, entre outras platitudes árticas, pelas noites do Ramalhete, “c’est très grave, c'est excessivement grave…”.

Receba um abraço, ainda amigo, orgulhosamente (quase) mediterrânico do

João da Ega

sexta-feira, dezembro 31, 2010

Europa - 25 anos

Faz hoje precisamente um quarto de século (já!) que Portugal ingressou nas então Comunidades Europeias, mais tarde chamadas União Europeia. 

Uma publicação do gabinete do Parlamento Europeu em Portugal, intitulada "25 anos de Integração Europeia", a editar dentro de alguns dias, vai recordar esse trajeto.

Por lá deixo, como muitos outros, um curto depoimento, que intitulei "Os limites da integração": 

O pedido de adesão de Portugal às Comunidades Europeias foi a decorrência óbvia do novo curso político do país, no período subsequente à Revolução de 1974, pela necessidade sentida, por pressão das forças então emergentes como dominantes, de garantir que o Portugal democrático pudesse ganhar um espaço no seio de uma cultura política internacional de sucesso. Quem teve a força política para decidir essa opção sentiu que ela poderia, não apenas proporcionar apoios materiais a um mais rápido desenvolvimento económico e social do país, mas, igualmente, trazer um eficaz enquadramento para a consolidação, em moldes congéneres aos dos Estados já então membros, do modelo político que pretendiam implantar no país - assente em instituições democráticas e na economia de mercado. Não foi, por isso, uma opção política neutra, razão pela qual certos setores partidários então reagiram, porque pressentiram que ela iria condicionar definitivamente a dinâmica política do país.

A presença de Portugal nas instituições comunitárias acabou por ter um efeito muito importante sobre a nossa vida coletiva. Para além de induzir uma cultura de modernidade, nas mentalidades e no quotidiano material, bem como forçar algumas dinâmicas de reforma que o processo político interno dificilmente teria condições para gerar autonomamente, Portugal conseguiu com isso atenuar, embora não colmatar por completo, os efeitos do longo percurso de periferização, face ao centro europeu, a que a ditadura tinha condenado o país. Olhando em perspetiva, pode hoje concluir-se que, se acaso não tivesse ingressado nas instituições europeias em 1986, o nosso país teria tido necessidade de efetuar um esforço muito superior de adaptação, para poder integrar um dos alargamentos europeus posteriores, com muito menos vantagens materiais do que as que então obteve.

A experiência da nossa presença nas instituições europeias também nos mostra, contudo, que o voluntarismo tem os seus limites e que há idiossincrasias que não são mutáveis por mera pressão enquadradora externa, que há vícios e formas de comportamento que vão para além dos mecanismos políticos a cuja observância nos comprometemos. Se foi possível a Portugal introduzir as mudanças necessárias à adaptação ao Mercado Interno e à criação de condições sincrónicas para a entrada na moeda única, a verdade é que isso não induziu a interiorização de um cultura comportamental de rigor, suscetível de fazer perdurar no tempo, e maturar nos efeitos, as vantagens da nossa pertença ao “clube”. 

segunda-feira, novembro 29, 2010

Coscuvilhices

A prática da diplomacia tem como um dos seus pilares a garantia da confidencialidade naquilo que os profissionais dizem aos seus governos, e vice-versa. Na guerra como na paz, os serviços de “cifra” procuram assegurar a possibilidade de transmitir, com total franqueza e discrição, a apreciação de perfis de personalidades, a avaliação crítica de factos ou o desenho de cenários, tidos por relevantes para os interesses dos respetivos Estados. Não é por acaso que este tipo de comunicações só costuma ficar oficialmente disponível para escrutínio público algumas décadas depois.

A questão suscitada pela divulgação de centenas de milhares de documentos pela “WikiLeaks” configura uma quebra grave nesta relação de confiança. Ela coloca políticos e profissionais em elevado risco, nalguns casos com potenciais consequências funestas, podendo também induzir um ambiente de gratuita tensão entre Estados.

Com exceções muito raras, a diplomacia portuguesa não sofreu, até hoje, problemas desta natureza. Isso não significa que o que agora ocorreu não possa, subliminarmente, vir a retrair-nos no modo como, de futuro, venhamos a atuar.

O “voyeurisme” pateta de alguns setores sente-se deliciado com o acesso àquilo que deveria permanecer num registo discreto. É um belo teste de caráter, idêntico ao que qualifica quem revela conversas ouvidas nos locais públicos ou promove a divulgação de escutas telefónicas de natureza privada. Que se há-de fazer? São os novos “bufos”, as modernas comadres da eterna coscuvilhice.

(Texto de um artigo que hoje publico no "Diário Económico")

sexta-feira, setembro 10, 2010

Duas cidades

"O 11 de Setembro de 2001 não derrubou apenas o World Trade Center e uma ala do Pentágono. Fez ruir também o sentimento de confiança que a América mantinha na sua própria intocabilidade, com profundas consequências no modo como a maior potência olha hoje o mundo e o seu papel dentro dele.

Uma das grandes linhas divisivas que afectam a política mundial prende-se precisamente com a impossibilidade, para a Europa, de interiorizar o sentimento de profunda angústia que hoje atravessa a América, face à sua inesperada impotência perante perigos de contorno desconhecido. E isso tem consequências com expressão política, num país onde a agenda pública segue de muito perto o sentimento colectivo, muito em especial quando este coincide com os grandes interesses estratégicos.

Desde há muito, a Europa habituou-se a viver com o perigo. Teve duas guerras trágicas no seu seio, sofreu o nazi-fascismo, os temores da Guerra Fria e os “anos de chumbo” das acções radicais extremistas. Os europeus têm consciência da sua própria fragilidade, mas convivem com ela com alguma naturalidade.

Para os Estados Unidos, o mundo exterior sempre fora um lugar perigoso, de que faziam uma caricatura à medida da suas vivências internas. E se a segurança interna não conseguira prever alguns actos tresloucados, os riscos políticos profundos estavam afastados do quadro de probabilidades, com a rede securitária concentrada na criminalidade, com a droga como inimigo público.

Tive a experiência de viver em Nova Iorque, antes e depois do 11 de Setembro. É sabido não ser a cidade americana típica. Alguém dizia que os europeus sempre tiveram Nova Iorque como a sua principal imagem da América, enquanto, pelo contrário, para a generalidade dos americanos, aquela cidade aparece já como uma espécie de primeira aproximação à vida europeia. Mas, talvez por isso, estando Nova Iorque “mais próxima” de nós, talvez a mudança da atitude de vida nessa cidade nos seja mais perceptível. E a ideia que me ficou do pré e do pós-11 de Setembro é que vivi em duas cidades diferentes.

Fui a Nova Iorque, pela primeira vez, há mais de 30 anos, com o World Trade Center por acabar. Daí para cá, visitei a cidade várias vezes, dela sempre recolhendo a mesma matriz trepidante, palco da ambição individual, de alguma agressividade egoísta, mas com uma indefinível cordialidade, com a assunção de um escasso número de regras de convivência urbana como chave para nos sentirmos em casa.

Em 2001, quando fui viver para Nova Iorque, a cidade recuperara o usufruto pleno de muitas zonas para os seus cidadãos, por virtude da queda do desemprego e de um eficaz combate à criminalidade. Passear à noite, em antigas “no-go areas”, tornou-se rotina. Restaurantes e galerias apareciam e desapareciam no West Village e em Chelsea, com as esplanadas cheias e um ar de prosperidade geral, embora distante do auge do Nasdaq.

Como em todas as sociedades em que a precariedade do vínculo laboral é a lei que reflecte as crises, Nova Iorque reagiu ao 11 de Setembro com brutalidade. Desemprego, encerramento de actividades e retracção de consumo, com a queda vertical do turismo e o afundar temporário da Broadway.

E, também, com a emergência da angústia com a segurança, que nunca mais terminou. Foram os tempos do “antrax”, das ameaças constantes das “dirty bombs”. Os novaiorquinos passaram à “vigilância popular”, a olhar o vizinho, o “diferente” como uma ameaça potencial. O uso da bandeira americana passou a factor de credibilitação, nas lapelas, nas portas ou nas montras, com os não seguidores da regra a serem vistos com anti-patriotas. O “nine-eleven” (fórmula americana para o 11 de Setembro), o terrorismo, Bin-Laden e Al-Queda monopolizaram os discursos, com uma comunicação social marcada por um jingoísmo que abafava reticências.

Com o 11 de Setembro, aprendi que os americanos estão dispostos a sacrificar o mais sagrado da sua liberdade – e poucos povos haverá com um sentimento de liberdade mais arreigado – em favor da restauração, ainda que limitada ou mesmo virtual, da sua própria segurança. Por muitos e menos bons tempos, a América está prisioneira de si própria, pelo temor e pela desconfiança. Mas América que eu conheço e admiro vai, estou certo, conseguir fazer sair o país desta psicose colectiva. E todos ganharemos com isso."


Nota: Este texto foi publicado no "Jornal de Notícias" em 11 de Setembro de 2003. Embora datado, achei que podia ser interessante recordá-lo hoje.

Confesso os figos

Ontem, uma prima ofereceu-me duas sacas de figos secos. Não lhes digo quantos já comi. Há poucas coisas no mundo gustativo de que eu goste m...