Há pouco, vi colocado um “like” na minha página de Facebook por alguém de apelido Torga. E embora todos devamos saber que Miguel Torga era um pseudónimo e que o escritor e médico, na realidade, se chamava Adolfo Correia da Rocha, posso imaginar a quantidade de vezes que a essa pessoa alguém deve ter já perguntado: “é parente do Miguel Torga?”.
E como isto é como as cerejas, lembrei-me de um episódio.
No Ministério dos Negócios Estrangeiros, tive um colega, bastante mais velho, chamado Carlos Ary dos Santos. Foi chefe do Protocolo e embaixador em vários postos. Era uma figura clássica, um homem muito educado, de excelente trato, com quem sempre tive uma magnífica relação, pessoal e profissional.
Sendo primo do famoso poeta, letrista e declamador José Carlos Ary dos Santos, constava, como mais tarde vim a saber, que não lhe agradava excessivamente que as pessoas lhe lembrassem esse parentesco - quiçá por razões políticas, quiçá por outras.
Um dia dos anos 80, fui em missão de trabalho ao Luxemburgo, onde Ary dos Santos era embaixador, tendo ele oferecido um jantar à delegação. Depois da refeição, à conversa, perguntei-lhe, casualmente: “O senhor embaixador é com certeza parente do ...”.
Ainda a frase não estava concluída e eu já via a cara do embaixador formar um esgar estranho, misto de desagrado e maçada. “Lá vem o meu primo à conversa”, devia estar ele a pensar. Eu desconhecia então que ele não gostava da associação ao primo, porém pressenti-o naquele preciso instante.
Acontece que a minha pergunta não era sobre o seu primo e poeta José Carlos. E concluí a frase: “... parente do jurista Ary dos Santos, de quem tenho uma obra publicada sobre o aborto”.
Imagino que, entre os circunstantes, alguém devesse ter-se interrogado por que luas eu me tinha interessado em adquirir uma obra jurídica do pai do embaixador, logo sobre um tema tão bizarro como o aborto. Mas nada esclareci, confesso, por embaraço. Vou fazê-lo agora.
Fora uns bons anos antes, na década de 70, na feira do livro de Lisboa, na noite do último dia, antes do fecho definitivo. Eu procurava, nos stands de livros usados, algumas pechinchas, nessa altura vendidas ao desbarato, nas últimas horas da feira. Já ia carregado de sacos quando vi, no topo de uma das bancadas, longe para lhe poder chegar com a mão, um livro de Ary dos Santos, com o título “O crime de aborto”. Por baixo, trazia a menção “advogado”. Acaso seria o poeta advogado? Eu sabia lá! A edição parecia antiga, o preço eram, creio, 15 tostões. Obra “de juventude”? Nunca tinha ouvido falar. Era um título forte. Seria poesia? Seria um manifesto de polémica? Pelo sim pelo não, disse ao livreiro, apontando: ”ponha esse aí também!”. O volume veio assim na molhada que levava dessa bancada dos “quinze tostões”, num saco. Só chegado a casa é que vi o “barrete” que enfiara. O livro era mesmo uma tese ultra-conservadora sobre o aborto, de Alfredo Ary dos Santos. De 1935...
Voltemos à sala do Luxemburgo. O sorriso aliviado de Carlos Ary dos Santos, ao ouvir o termo da minha pergunta, acompanhou uma detalhada explicação de que se tratava, de facto, do seu pai, de cuja carreira e obra nos falou, com muito orgulho.
Carlos Ary dos Santos continuou a tratar-me lindamente, todas as vezes que nos voltámos a cruzar, no futuro. Se calhar, desde essa data, até um pouco melhor do que antes...