Nesse dia, há uma semana, ele tinha querido um almoço. Organizado pelos seus maiores amigos, a Didas e o Luís. E quis ter-nos por lá, bem como a Mena e o Eduardo. Falou muito pouco, mas o Nuno falava sempre muito pouco. Sorria, visivelmente contente com a festa armada à sua volta.
A Manuela escondia-se por detrás das palavras, como sempre e cada vez mais fazia. Era uma óbvia fuga em frente, como nós e ela bem sabíamos. Às vezes, ao longo dos últimos meses, perguntava-me como conseguia aquele prodígio de seguir em frente, vendo o seu mundo - a vida com o Nuno - a desmoronar-se, dia após dia.
Tinha-me comovido muito ver o Nuno, em novembro, na Gulbenkian, no lançamento do meu livro. Quando o observei, de muletas, com imensa dificuldade, a descer a escadaria, fiquei siderado. Ele tinha insistido em ir, disse-me a Manuela. De propósito, não o referi nas palavras que, no final, dirigi às pessoas que por ali estavam, para que isso não pudesse sublinhar a sua crescente fragilidade física, fruto da doença infernal que o ia invadindo.
Quando é que conheci o Nuno Júdice, de quem nunca fui um amigo íntimo mas com quem tinha um excelente entendimento, muitas vezes silencioso, desde há muitos anos? Terá sido por 1968 ou 1969, na Granfina, onde ambos íamos parando, ao final da tarde ou depois do jantar. O Nuno vivia perto, eu chegava dos Olivais no 21. Com outros migrantes universitários, recém caídos na capital, tecíamos por ali as redes que acabariam por desenhar o nosso futuro.
Um dia de 1971, eu e o Nuno, à frente de um pequeno grupo de "agitadores" associativos, invadimos uma aula do Eduardo Prado Coelho (que ele iria substituir, anos mais tarde, como Conselheiro Cultural na nossa embaixada em Paris, onde eu depois seria embaixador), na Faculdade de Letras. Abrimos a porta, interrompemos a lição e pedimos solidariedade para com estudantes que tinham sido presos pela polícia política. Eu arenguei às massas, já não sei com que resultado, perante alguma disfarçada irritação do Eduardo. Sem surpresas, ao meu lado, o Nuno mantinha o seu sorriso esfíngico de sempre. Muito nos ríamos, anos mais tarde, a lembrar o momento!
Nestes retalhos soltos de memórias com o Nuno, ficam ainda as laranjas. As melhores laranjas do mundo, doces como nenhumas outras, que o Nuno tinha numa propriedade no Algarve, à beira do Alvor, e que fomos colher num fim de tarde de fortes incêndios, no verão de 2021. As conversas e as laranjas desse fim de semana ficam-nos para sempre. Agora bem amargas.
Um beijo imenso na nossa parte, Manuela. Agora é a ti que digo: força!
7 comentários:
Partiu o Poeta, ficaram os poemas. Descanse em Paz!
O Senhor Embaixador avivou-me a memória dessa cena na faculdade de Letras, em 1971. Eu estava no grupo de “invasores”. Era aluno do antigo Instituto Comercial de Lisboa, hoje ISCAL…
há três ou quatro meses li ensaio de Nuno Júdice palestrado numa conferência da universidade de Évora relativamente às crónicas de Lobo Antunes. Muito me ajudou.
há umas semanas visitei o museu Cargaleiro em Castelo Branco o qual me deixou muito impressionado. Fiquei retido num seu poema que fotografei para o levar comigo. Sei que saí de lá mais rico do que quando entrei.
"Ainda a luz perdura e já avisto o teu negrume que vai nascer da tua ausência"
"....Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa...."
Caro Artur Gomes. Confirme esta minha lembrança, por favor: não eram precisamente alunos da sua escola que tinham sido detidios? Lembro-me de ter ido a outros locais, como o INEF. Às tantas, estivemos juntos!
Caro Embaixador: sinceramente, não me recordo. Vagamente, diria que eram do ISCEF. Lembro-me, sim, de ter “invadido”, também, à faculdade de direito, de fugir para a cantina universitária e depois, quando a polícia de choque se aproximou desta, ter ido para o hospital de Santa Maria de onde saí já tarde quando as coisas “acalmaram”. Entretanto, quando a polícia, de mauser, capacete e cães, surgiu do lado do Campo Grande, já andavam pides no meio da multidão de estudantes a agarrar os mais conhecidos. Saudações.
Caro Francisco,
Colaborei com a Manuela e o Nuno Júdice em várias ocasiões. Foi sempre um gosto. Por viver noutra terra, não nos víamos há muito. Fica um abraço sentido para a Manuela. Felizmente o Nuno deixou muitas e belas obras publicadas, das quais pude apoiar várias traduções.
Um abraço
JPGarcia
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