segunda-feira, dezembro 31, 2018

Maria Mello


Dizer que esta casa teve melhores dias é uma obviedade. No pequeno andar cimeiro funcionava, na minha infância, um ateliê onde um pequeno batalhão de empregadas fazia aquelas que eram então consideradas as melhores malhas de Vila Real. Muitas camisolas vesti que foram lá feitas. A proprietária do negócio era uma senhora chamada Maria Melo, de cuja imagem me recordo bem e cujo nome me ficou gravado para sempre. 

Há já muitos anos, em Itália, num determinado contexto, deparei com uma série de criadores de moda italianos, com nomes sonantes, e pensei cá para mim: “Maria Mello” seria uma designação magnífica para uma dessas casas. Estaria ali tudo: a leveza ondulada e bem sonante do conjunto dos dois nomes, a falsa simplicidade do Maria, o inescapável toque latino, o duplo L de quantos cuidam em atrasar a atualização da grafia para ganhar patine no nome. 

Anos mais tarde, finalmente, verifiquei que alguém seguiu essa minha íntima ideia, como se pode ver. O nome “Maria Mello” estava consagrado.

Reconheço que a fotografia atual não rima mimimamente com a pretendida sofisticação do nome. Mas ela aí fica, porque Portugal, gostemos ou não, também é isto.

O estore e as viagens


“Ó “shôtôr”! Então como é que o estore não havia de enferrujar! O “shôtôr” vem cá acima à “Bila“ tão poucas vezes, não lhe dá uso...”

Simões


1. António Simões, uma glória do futebol português, foi assaltado e ferido em Cabo Verde, onde ia passar o fim de ano. Pode acontecer a qualquer um, em qualquer parte do mundo. A notícia só foi notícia porque os factos aconteceram com Simões. Tivesse ocorrido com um cidadão anónimo e ninguém saberia de nada. Imagino agora que, para quem estiver a pensar ir passar uns dias de férias a Cabo Verde, o incidente tenha criado a ideia de que existe uma insegurança naquele país, tido geralmente por um local pacífico. E, provavelmente, assim será. Este é um caso em que a informação pode ajudar à injustiça.

2. E se os assaltantes fossem adeptos locais do Benfica, não fazendo a menor ideia da história da pessoa que estavam a assaltar? É que a probabilidade de um cidadão caboverdeano, como de qualquer ex-colónia portuguesa de África e de Timor, ser adepto desse clube é muito elevada, como bem sabe quem conhece essas terras. Essa é, aliás, uma curiosa herança pós-colonial. Mas o eventual benfiquismo dos bandidos (e já imagino o que, a partir daqui, alguns serão tentados a desenvolver...) seguramente não será suficiente, nos dias de hoje, para saberem que, nos pés do homem que assaltaram, esteve, muitas vezes, a esperança emocionada de um país - então sim, do Minho a Timor, como gostavam de dizer os próceres do império.

3. Há não muito tempo, na sala de espera de um consultório, encontrei-me a sós com António Simões. Não sou muito dado a gestos desse género, mas não resisti ao impulso de ir cumprimentá-lo, expressando a minha admiração por alguém que, não sendo do meu clube, me deu grandes alegrias futebolísticas, como português, mas igualmente por um cidadão que, nas televisões atulhadas de comentário sectário sobre futebol, sempre assume uma séria postura de dignidade e grande equilíbrio. As nossas respetivas consultas estavam atrasadas, o que permitiu que ainda falássemos uns minutos sobre a sua relação fraternal com Eusébio a outras coisas do mundo à volta do futebol. 

4. Agora, só desejo rápidas melhoras a António Simões e que tenha um excelente 2019.

O chá do doutor Andrade


Não me lembro do seu primeiro nome. De família, era Sales de Andrade. Para nós, durante muitos anos, era apenas o doutor Andrade. Embora mais novo, era um grande amigo do meu avô, com quem tinha uma relação que vinha dos tempos comuns na magistratura. Visitava-nos em Vila Real, algumas vezes ao ano.

O doutor Andrade era de origem indiana, vivia em Lisboa, vestia-se com uma elegância britânica e conduzia uma bela Citroën, modelo “arrastadeira”, junto à qual figuro, impante, em algumas fotografias de infância. Era um homem muito educado, marcando alguma distância, com quem o meu pai me contava ter tido um dia uma conversa muito interessante, com ele muito traumatizado psicologicamente, depois da entrada violenta das tropas indianas no Estado da Índia, no início dos anos 60.

Não obstante ter mais alguns anos, o doutor Andrade terá andado a fazer “rapapé” a uma tia minha, irmã da minha mãe, que parece que nunca lhe ligou peva. Essa desilusão não impediu que se mantivesse sempre próximo da nossa família, com a qual, em vários anos, vinha passar o Natal e o Ano Novo. No que me toca, tenho dele na memória os presentes que me trazia e a sua maneira de falar, com um sotaque à época estranho para mim. 

Como indiano que era, o doutor Andrade gostava muito de chá. Não tenho ideia qual era o tipo de chá que, à época, era servido lá por casa, mas imagino que não fosse de uma particular qualidade. Um dia, uma empregada trouxe um chá pedido pelo doutor Andrade. Ele tomou-o, em silêncio. A minha mãe contava sempre que, olhando-o, teve um pressentimento de que a qualidade do chá talvez não estivesse à altura de quem era originário do Industão, zona riquíssima no produto. E perguntou-lhe. O doutor Andrade, com a confiança que a amizade que tinha com a nossa família permitia, foi sincero: “Não está mau de todo!”, o que, apesar de tudo, sossegou a minha progenitora. Mas apenas por um segundo, porque ele logo acrescentou: “Já tomei chá bem pior!”

Há pouco, ao beber um magnífico Royal Blend, “the mother of all teas”, da minha “colheita” anual nas prateleiras do Fortnum & Mason, olhando a paisagem de fundo de Vila Real (de que ofereço a imagem), um cenário natural idêntico àquele que se desfrutava da sala de estar do meu avô, onde o doutor Andrade se sentava nesses anos 50 e 60 do século que já lá vai, perguntei-me se o chá que agora estava a tomar estaria, finalmente, à altura da exigência do doutor Andrade, o nosso simpático visitante solitário dos Natais e das festas de Fim de Ano, em outros tempos. E não tive a certeza, mas poder afirmar não ter certezas é o arrogante privilégio da idade da sabedoria. E por aqui me fico.

domingo, dezembro 30, 2018

O figurão do ano


Vai por aí uma grande indignação pelo facto da redação da RTP ter escolhido Jair Bolsonaro como personalidade ou figura do ano de 2018.

Posso imaginar que, se acaso a escolha tivesse recaído em Xi Ji Ping, nem uma agulha teria bulido na quieta melancolia dos cronistas do burgo. E, no entanto, o líder chinês é um ditador que chefia com mão de ferro um país onde os direitos humanos são uma ficção, a separação de poderes é um conceito inexistente e a democracia é o que não é. Mas, repito, tivesse sido ele o escolhido, nem uma voz se teria ouvido a contestar. Alguém duvida?

A eleição de Bolsonaro representa uma inversão política de 180° no mais importante Estado de língua portuguesa, onde vivem centenas de milhares de portugueses, cuja evolução é também vital para o futuro da CPLP. Um Brasil “ao contrário” pode ditar mudanças drásticas no tecido político da América Latina, uma sua relação privilegiada com a América tutelada por um figura como Trump pode trazer fortes surpresas, em matéria climática e em outras agendas onde, por muitas décadas, a diplomacia do Brasil, com presidentes de colorações bem diferentes, havia relançado a imagem do país. Se a chegada ao poder de uma figura política deste jaez não é a notícia mais relevante surgida na cena internacional nos últimos meses, então não sei qual será.

A personalidade ou figura do ano - a “Time” um dia escolheu Hitler, com toda a razão - não é um “prémio”, não é um reconhecimento valorativo, não é um elogio. Em 2016, Trump foi a Personalidade do Ano em todo o mundo - e não foi por gostarem dele. Assim, trata-se apenas da constatação de um facto: Bolsonaro é a grande “novidade” da política mundial no ano de 2018, goste-se ou não dela. Mais do que a figura, Bolsonaro é mesmo o maior “figurão” do ano!

E, já agora, aproveito para deixar aqui expresso, alto e bom som, que entendo que a informação produzida pela RTP nos últimos anos, com Paulo Dentinho ou agora com Maria Flor Pedroso, com todos os defeitos que possa ter (e tem muitos), está a anos-luz, em matéria de qualidade e equilíbrio, de qualquer dos seus concorrentes, com todo o respeito que alguns me merecem.

1968 - o mundo num ano


Publiquei no semanário “Visão” desta semana uma análise prospetiva sobre 2019, sob o título “Já não há anos calmos”, que pode ser lida mais abaixo.

Dei-me entretanto conta de que, há precisamente 50 anos, também em dezembro, mas de 1968, no semanário de Vila Real, “A Voz de Trás-os-Montes”, surgia um longo texto escrito por mim, intitulado “1968 - o Mundo num Ano”. 

Desde os meus 18 anos que aí escrevia textos sobre política internacional, mais tarde também sobre política interna, num permanente jogo de gato-e-rato com a Censura. A partir de 1971, não consegui que mais nenhum texto passasse no crivo do censor da cidade, o capitão Medeiros.

Tinha perdido de vista este meu (visto em perspetiva, bem ambicioso) artigo, que hoje revisitei. E que ano havia sido aquele de 1968! 

Ali estavam a chegada de Richard Nixon à Casa Branca, as mortes de Robert Kennedy e Luther King, o “Black Power” nas Olimpíadas do México (com a anterior repressão da revolta estudantil mexicana, com mais de uma centena de mortos), a colocação dos primeiros astronautas americanos em órbita, o estado dos conflitos no Vietnam e no Biafra, a revolta de maio em França e a saída de Pompidou (o articulista vaticinava “o ex-PM tem sérias hipóteses para a problemática substituição do General, que não deve vir longe” - e o futuro dar-lhe-ia razão), o fim da Primavera de Praga com a invasão soviética (“era o fim do sonho checoslovaco de abandonar o reino dos Brejnevs, Kosygins & afins, que preferiram desta vez mostrar ao mundo a face monolítica da sua “democracia popular”), a continuidade da crise grega depois do “golpe dos coronéis”, os golpes de Estado militares no Panamá, na Serra Leoa, no Iraque, no Perú e no Mali (sobre os quais escrevia, sentencioso, o jovem articulista: “Se os exércitos continuarem na sua senda de executores de golpes de Estado, deixarão de ter por fim garantir a paz externa e serão apenas simples perturbadores da ordem interna”). E também falei da Espanha (de Juan Carlos e das hipóteses de restauração monárquica), bastante sobre o Médio Oriente, da Rodésia sob domínio branco, das crises políticas internas no Reino Unido e em Itália, do “Mercado Comum” europeu, das tensões no Brasil, etc.

Com deliberada distância, como se estivesse a falar de um Estado distante, com as “pinças” necessárias à passagem na censura, o artigo atreve-se a abordar a situação do nosso próprio país: “Em Portugal - e após grave enfermidade do Prof. Salazar que, durante semanas, trouxe o país em intensa expectativa - sobe ao poder o Prof. Marcello Caetano, eminente jurista e antigo ministro, que procede a uma remodelação nos quadros administrativos, alargada à própria União Nacional, frente única de representação política. No entanto, é ponto assente nos objectivos do Governo a defesa intransigente das possessões do Ultramar, assegurando uma política de “continuidade com adaptação” “.

Eu tinha então 20 anos, uma escrita algo gongórica, muito tributária do que lia na imprensa francesa (o mundo anglo-saxónico só me chegaria mais tarde), marcada por alguma falsa ingenuidade, que rapidamente viria a abandonar.

Por muito narcisista que isto possa parecer, devo dizer que achei muita graça ao “ler-me”, meio século depois...

sábado, dezembro 29, 2018

A anedota e a vida


Não vi muito apreciada esta anedota. É que, tendo ontem sido comemoradas, cá por casa, essas quatro décadas e meia de casamento, a coisa podia dar azar. Não dá!

Já não há anos calmos


Deixei há muito de comprar a publicação que “The Economist” edita nesta altura do ano, com as suas previsões para os doze meses seguintes. Como a revista sempre nos habituou, os textos são magníficos, mas, se os guardarmos para ler no fim do ano a que respeitam, verificaremos que a qualidade da análise não resiste ao “teste do algodão” com a realidade que acabou por acontecer. A culpa não é da revista, é da vida, que tem sempre uma imaginação que supera qualquer antecipação dos factos.

Dizer que o mundo de hoje vive uma rápida mutação é uma banalidade. Mas é também uma pura verdade. Períodos houve da nossa História contemporânea em que “o tempo parou”, no que respeita a certos equilíbrios geopolíticos fundamentais. Basta lembrar alguns anos da Guerra Fria, em que o confronto Leste-Oeste “empatou”, pelo equilíbrio do terror, a possibilidade de confrontos entre os principais atores. Os conflitos processavam-se assim nas “zonas de confluência de poderes”, como Adriano Moreira as designava - guerras como as da Coreia, do Vietnam, do Afeganistão ou mesmo de Angola. Mas a confrontação essencial entre as chamadas super-potências era evitada, porque se sabia existencial.

Esses tempos mudaram. Correndo o risco da simplificação, pode dizer-se que o mundo das últimas décadas nos trouxe quatro realidades marcantes: o recuo no poder global de Moscovo, após a implosão da União Soviética, a esforçada tentativa europeia de criar um novo modelo integrado que desse músculo político ao poderio económico conjugado dos seus Estados, o crescimento, “silencioso” mas poderoso, da China, nos plano económico, político e militar e, como vetor mais estável. a permanência dos Estados Unidos como indiscutível potência de referência à escala mundial.

Mas hoje já nem tudo passa por este quarteto de poderes de Estado. Durante muito tempo falou-se do papel crescente das entidades económicas multinacionais e do condicionamento, por essa via, da ação dos Estados. As últimas décadas, além de terem assistido à emergência de várias outras entidades não-estatais, como atores internacionais relevantes, consagraram uma espécie de “internacionalismo” do poder financeiro, a que veio somar-se uma nova e poderosa realidade: o mundo da tecnologia informática, que tudo veio alterar, desde as relações de trabalho aos produtos informativos que hoje, através da internet, romperam as fronteiras do conhecimento. Há a sensação de que, nesse domínio, tudo se transforma muito rapidamente e, entre o deslumbre e o receio, esse novo e incontrolado poder continua a aturdir as sociedades.

É nesse cenário de poderes globais que 2019 nos projeta.

Uma América estranha

Nele avulta, goste-se ou não, o papel dos Estados Unidos, dirigidos por um presidente que, em dois anos, alterou, para alguns apenas circunstancialmente, a matriz de afirmação do país. Embora os EUA tivessem sido os grandes promotores da ordem multilateral surgida no final da Segunda Guerra mundial, a verdade é que eles nunca deixaram de ser apoiantes apenas seletivos do papel dessas mesmas instituições, considerando-se como que ungidos de uma excecionalidade que decorria do modo como viam a sua responsabilidade num mundo onde eles escolhiam o que entendiam como livre.

Esta é, em definitivo, uma América diferente, como Trump é um presidente de novo e inesperado tipo. Com a sua autoridade debilitada por eleições parlamentares intercalares, sob forte pressão judicial, Trump exercita uma agenda intuitiva que alarma os seus parceiros, desconcerta os adversários mas que, de momento, ainda não desiludiu quantos nele investiram a sua esperança. O poder de Trump pode ter sido afetado, mas ele mantém-se “master” do jogo, com grande capacidade para, no plano externo, condicionar a vontade alheia, dado o peso da economia americana e o suporte de poder militar que pode exibir. No passado, os presidentes dos EUA auto-limitavam-se frequentemente, em nome de uma ordem internacional de valores que cuidavam em respeitar formalmente, como modo de alimentar a sua autoridade moral. Trump não tem esses pruridos, não se sente sequer condicionado no verbo pelo respeito pela verdade. E assim vai continuar.

A obsessão americana, no plano externo, tem um nome: República Popular da China. Democratas e republicanos convergem no receio de Beijing poder vir a consagrar passos estratégicos que ameacem a “network” de poderes que se habituaram a ser próximos de Washington, obtendo conquistas que venham a ser irreversíveis. Privilegiando o diálogo entre potências, Trump segue um roteiro errático de testes da vontade chinesa. Em 2019, ver-se-á o que vai suceder à curta trégua comercial há semanas pactuada entre os dois Estados. Estará o presidente americano disposto a uma bravata jingoísta face à China, por exemplo tendo como pretexto as despudoradas ações de expansão dos chineses no seu mar meridional? Ou dará prioridade à espetacularidade das decisões comerciais, que colhem aplausos em setores do seu eleitorado, seduzidos pelos efeitos de curto prazo?

O “amigo russo”?

Se a China é o “inimigo”, a Rússia é, para os EUA, apenas um poder adverso. Com a recente decisão de recuar militarmente da Síria, numa linha de “desengajamento” progressivo que já vem dos tempos de Obama, Trump arrisca reforçar pontualmente Moscovo, que talvez ali veja como um “aliado” objetivo na luta contra o islamismo radical. A estranha relação que mantém com Putin, que se espera um dia venha a ser clarificada de vez, permite a este ir testando as “linhas vermelhas” até onde pode provocar a vizinhança europeia e, paulatinamente, reforçar o seu papel regional.

Vale a pena lembrar que nem no tempo da poderosa União Soviética a Rússia dispôs de uma posição tão confortável no Médio Oriente, onde agora venceu a difícil batalha para manter o ditador sírio no poder e é hoje o principal aliado tático do solitário Irão. Importa deixar também claro que de há muito que Moscovo tem conseguido manter um entendimento discreto com Israel. No ano que entra há que estar atento ao modo como a Rússia se comportará perante a inevitável subida de perfil da Turquia na região, que, depois do agravamento de relações com a Arábia Saudita por virtude do caso do jornalista assassinado, tornou mais remotas as hipóteses de qualquer entendimento no seio do eixo sunita. Curiosamente, Moscovo e Ancara gerem os seus conflitos bilaterais federados pelo interesse conjuntural que pode unir dois poderes autoritários e amorais, revisionistas da ordem internacional, que procuram exploram as vantagens colaterais da marginalização relativa que estão a sofrer.

Será que o vazio de poder, criado pela saída militar americana, vai potenciar as tensões no Médio Oriente? Será que a Arábia Saudita, para espantar os escândalos em seu torno, se sentirá tentada, com o apoio de Israel, a afrontar o poder iraniano que definitivamente a assusta e que, por via indireta, já combate no Iemen? E qual seria a posição da Rússia nessa hipótese?

A “nova” Europa

Muito ouviremos falar do Brexit em 2019. Este texto desatualizar-se-ia, em poucas semanas, se Theresa May acabasse por conseguir “vender” o (mau) acordo que fez com os “vinte e sete” - embora essa fosse a melhor solução para a Europa, num terreno em que, aliás, nenhuma solução é boa. Acho, no entanto, que o cenário de um Brexit duro, sem acordo, continua a ser o mais plausível. E isso pode desencadear consequências que, estando relativamente desenhadas, ficarão sempre além do que é possível prever, segundo todos os especialistas.

O Brexit e os seus efeitos não deixarão de estar também presentes na campanha eleitoral para o Parlamento Europeu. Aí se irá sentar, a partir de setembro, um número muito mais forte de anti-europeus. E essa será também a linha da frente de defesa dos Estados da União que hoje seguem modelos de autoritarismo e enveredam por práticas discriminatórias face aos estrangeiros, dos migrantes económicos aos refugiados. Essa é a razão pela qual estas eleições serão tão importantes.

No terreno do euro, veremos como a França e a Itália vão conseguir ultrapassar a sua divergência face às metas que são exigidas aos restantes. O ano também nos trará resposta à questão das hipóteses de completamento da União Bancária, embora nada aponte, por ora, para que o ambiente possa vir a modificar-se em favor dos modelos institucionais que Merkel recusou, apoiada aliás numa frente nórdica para quem a palavra solidariedade parece banida do léxico.

O ano vai ser muito complexo para a Europa, que, com a saída do Reino Unido, a forte tensão com a Rússia, o desprezo americano e as ameaças económicas chinesas, num cenário interno de alguma desunião (que só se quebrou para a resposta unida a Londres), atravessa um momento de rara solidão estratégica. E alguma angústia existencial.

... e agora a China!

É uma história fascinante, de determinação e ambição, o processo de afirmação da China no quadro mundial, nas últimas décadas. Para trás ficaram o seu “cisma” com a URSS, os conflitos com a Índia e o Vietnam, a persistência nos casos do Tibete, de Taiwan, de Hong-Kong (e Macau) e do mar da China. Fica a sensação de que vigora por ali um ritmo histórico próprio, onde se combinam fortes tensões internas com a continuidade inabalada de um poder ditatoral atípico. A “Belt and Road Initiative”, de que teremos novidades em 2019, e sobre a qual os EUA mantêm um atitude de estranha discrição, vai ser um magnífico teste à capacidade diplomática chinesa, até agora feita de iniciativas pontuais, cuja sustentabilidade num quadro de ação mais alargado e coerente está por confirmar. Parece evidente que, para concretizar aquela ambição (e a persistência chinesa não aponta para um cenário do recuo), a China vai ter de alterar substancialmente o seu perfil de ação externa.

Por ora, Beijing vai ter de procurar atenuar o sério problema comercial que tem com os Estados Unidos. As cartas não estão apenas de um lado, a América tem muitos trunfos e Trump conta também com algum susto que o peso da China provoca, desde a sua vizinhança a uma Europa que sente já o seu desafio económico. Se há país a que, não obstante a constância dos seus interesses identificados, se torna difícil antecipar as “jogadas”, esse país é a China. É que, se tivermos em conta os fortes investimentos militares que os chineses estão a levar a cabo, em especial no setor naval (a China importa energia e comercia pelos mares, cuja liberdade lhes é essencial), fácil é inferir que nenhuma opção está excluída para a defesa dos seus interesses. Em 2019, salvo surpresas, vai continuar a ser interessante acompanhar a coreografia da relação da China com os EUA.

A menos que Trump, para se defender internamente, procure uma improvável “aventura” externa (Venezuela?) que ele acha que o reconciliaria um pouco com o mundo, que Putin decida “explorar o sucesso” numa aventura suas cercanias, contando que os EUA estão longe e que as baterias da Europa só disparam palavras, que a China não rompa com um ato de violência a sua tensão fria com a vizinhança, provocando Washington, que a Arábia Saudita meça mal o incêndio que um desafio ao Irão poderia significar, quase se podia dizer que 2019 poderia ser um ano relativamente calmo. Mas aprendi que já não há anos calmos.

Todos os nomes

Acabo de constatar que o nome de Benedita entrou no “top 10” dos mais escolhidos para crismar crianças, em 2018. Pertencendo a uma família que mantém esse nome em todas as gerações, acho de meridiano bom gosto essa crescente opção de pais e padrinhos.

Conforta ver Francisco em segundo lugar. É claro que um argentino que vive em Roma ajuda bastante à festa, mas não deixa de ser também uma muito boa escolha.

A mãozada do Trancoso


Eu trabalhava no setor de contabilidade da Secção de Títulos da Caixa Geral de Depósitos, no Calhariz, em Lisboa, nesse início dos anos 70. 

Era o meu primeiro emprego, a que fora parar por concurso público. As tarefas que me cabia fazer “nos Títulos” (como lhe chamávamos) não eram entusiasmantes, o regime de trabalho era bastante rigoroso, mas o salário não deixava de ser simpático. Continuava a ser estudante “voluntário” na universidade, onde ia fazer as “frequências” e os exames. Para se imaginarem as “facilidades” dadas a um trabalhador-estudante, nesses tempos da ditadura, bastará dizer que, sempre que tinha uma prova académica, esse dia era-me descontado nas férias.

O “setor da contabilidade” era, vale a pena dizer, um conceito majestático: era apenas constituído pelo Sirgado Serra, que o chefiava, e por mim. Por graça, ameacei várias vezes mandar imprimir cartões com o meu título de “subchefe do setor de contabilidade”...

Por esta altura do ano, entre o Natal e o Ano Novo, a nossa tarefa tornava-se mais pesada: eram os “acertos” do balanço. Os acertos era a tentativa de fazer coincidir, até ao limite do centavo, todas as folhas da contabilidade, o que nem sempre era fácil. Nesses dias, trabalhava-se até às 11 da noite e recordo-me de um ano em que, por 30 centavos de diferença, perdemos horas infindas, com o Serra a suar em bica, intercalando impropérios entre a interminável e repetida conferências das folhas. Era assim a vida nesse serviço público, nesses tempos em que o único “computador” era controlado pelo Salazar.

(Não, não é esse que estão a pensar, esse já tinha ido à vida: o Salazar era um colega que manejava uma máquina gigante a que chamávamos “computador”, de onde, ao fim do dia, saía o Modelo 19. E, por favor, não me perguntem o que era o Modelo 19!)

O Serra, o meu chefe direto, era um montijense, com grossos óculos, bastante mais velho do que eu, mas com quem logo estabeleci uma relação simpática. Não tinha um feitio fácil, andava às vezes macambúzio, mas não me recordo de alguma vez termos discutido. Nas saídas, era pontual como um cronómetro. E sentia-se que tinha a vida marcada pelos barcos para a Outra Banda. Dois minutos antes da hora, da gaveta do fundo do lado direito da secretária (estou a ver a imagem), sacava de uma escova e de um pano de lustro, dava polimento aos sapatos e, ao bater da “badalada”, era o primeiro a zarpar.

Eu era um “hard worker” e tinha um truque íntimo: fazia o meu trabalho de contabilidade como quem faz charadas ou palavras cruzadas. Talvez porque soubesse que, a prazo, aquela não ia ser a minha vida, levava o quotidiano com alguma ligeireza. Mas muito a sério. À tarde, depois de sair da Caixa, mudava de registo: ia beber um copo à Opinião, onde entrava na tertúlia do Batista Bastos e do Carlos Porto, ou ia para o Curso de Semiologia, do Eduardo Prado Coelho, no Centro Nacional de Cultura. E acabava o dia, ou melhor, a noite, na Grãfina ou no Montecarlo e, nos fins de semana, às vezes no Bolero.

Ao meu camarada de trabalho Serra uniam-me algumas ideias políticas e, nesse capítulo, tínhamos criado mesmo uma certa cumplicidade. Num tempo em que as paredes tinham ouvidos, as nossas conversas sobre as patifarias do regime suspendiam-se habilmente quando, à nossa frente, passavam alguns colegas que sabíamos adeptos “da situação”. Eu era então bastante radical, o Serra era um socialista moderado. E assim correu a nossa vida, por alguns anos, até que a tropa me apanhou.

A uns metros da secretária do Serra ficava o gabinete do Trancoso, o poderoso chefe de Repartição, figura mítica, que quase não víamos, encafuado nos seus domínios, convocando pelo telefone os dois chefes de Secção existentes na imensa sala em L em que trabalhávamos. Raras vezes, em todos esses anos, vi o Trancoso sair da sua fortaleza burocrática e dar a confiança de se deslocar à nossa sala. Quando o fazia, atravessava em passo largo em direção à secretária do Marques, o nosso chefe de Secção, que logo se colocava em sentido. E o Trancoso, nessa sua rápida coreografia, nem nos olhava e, claro, nunca lhe passava pela cabeça cumprimentar-nos. O Serra, no final dessas raras aparições do chefe de Repartição, rosnava sempre coisas indizíveis.

Disse que o Trancoso nunca nos cumprimentava? Não é verdade! Fazia-o na véspera de Natal. Eu não tinha a menor ideia do ritual, mas, na manhã do primeiro 24 de dezembro que por ali passei, o Serra advertiu-me: “Hoje vai haver mãozada do Trancoso”. 

E assim foi. Quando faltava um minuto para a hora de saída, que nesse dia era generosamente antecipada para as 13 horas, sempre medida num relógio nervoso, colocado numa parede em frente a mim, cujo ponteiro dos minutos me recordo que tinha um sobressalto sessenta vezes por hora, lá emergiu a figura do Trancoso, da eternamente fechada porta do seu gabinete, colocando-se junto à nossa saída. E, prodigalizando-nos um sorriso que sempre tive por um mero esgar, dava-nos então essa “mãozada” anual, como dizia o Serra, acompanhada de um “Boas Festas” ritual - e eram essas únicas duas palavras que dele ouvíamos em 365 dias. No ano seguinte havia mais.

Nostalgia desse tempo? Não brinquem, está bem?

(Dedico esta memória ao meu amigo João Aldeia, a quem sei que ela chegará. Recordo-me dos sorrisos irónicos que ambos trocávamos, naquela sala “dos Títulos”, nesse nosso dia-a-dia de burocratas, que, com o saudoso Murta, tentávamos tornar divertido. E, às vezes, conseguíamos.)

sexta-feira, dezembro 28, 2018

Arranha-céus



Passei por lá na tarde de ontem e decidi ter uma fotografia. A imagem mostra o aspeto, nos dias de hoje, de um prédio de Vila Real, da segunda metade dos anos 50, construído na zona norte da cidade, em frente ao novo mercado municipal. À época, a sua construção foi considerada um marco na vida urbana.

Já repararam quantos andares tem? Pois é, mas, ao tempo em que foi construído, era o mais alto prédio de apartamentos da cidade. Chamavam-lhe - acreditem! - o “arranha-céus”! Lembro-me bem!

Na base do prédio houve um estabelecimento comercial com uma magnífica decoração interior, o Café Brasília. Por ali existiam magníficas peças de arte cujo paradeiro continua a ser um dos mistérios da Vila Real.

O autor deste edifício foi um importante arquiteto do Porto, Artur Andrade (1913/2005), que nessa cidade assinou obras tão marcantes como o Cinema Batalha ou o Café Rialto.

Artur Andrade foi também uma personalidade com forte intervenção cívica. Oposicionista a Salazar, foi várias vezes preso por razões políticas, foi candidato da Oposição em “eleições” legislativas na ditadura e dirigiu a campanha presidencial de Humberto Delgado. A seguir ao 25 de abril, aderiu ao PPD, mais tarde ao PRD, tendo tido intervenção autárquica no Porto. 

quinta-feira, dezembro 27, 2018

Vila Real (2)


Vila Real


A Europa que aí vem

2019 será ano de eleições europeias, um sufrágio que não costuma ser muito mobilizador. Afirmar que estas eleições são, a grande distância, as mais importantes desde a criação daquela instituição soará, para muitos, como uma “boutade” retórica. E, no entanto, é pura verdade.

O Parlamento é a instituição comunitária que, ao longo do tempo, mais mudou. Desde os longínquos dias em que era integrado por deputados indicados pelos parlamentos nacionais até ao momento de hoje, o areópago, que continua a viver numa patética “navette” mensal entre Bruxelas e Estrasburgo, tem vindo a ganhar poder decisório e espaço de afirmação no processo político. O seu papel no crescente número de decisões em que os ministros (por lá diz-se “o Conselho”) votam por maioria qualificada torna-o hoje um mercado apetecível para os lóbis e, no plano político, uma importante câmara de ressonância para as grandes temáticas, não apenas europeias como globais.

Por muitos anos, o Parlamento Europeu foi uma “academia” de europeísmo. Pode afirmar-se com segurança que o Parlamento era, em geral, bastante mais europeísta do que o padrão médio de vontades que se refletia no Conselho de Ministros – quer face ao aprofundamento das políticas, quer no estímulo aos alargamentos. Nos últimos anos, isso mudou. Em vários Estados, as eleições para o Parlamento não se fazem já sob a bandeira do proselitismo europeísta, que curiosamente por cá ainda impera. As forças eurocéticas têm vindo a ganhar um crescente poder, com alguns deputados a carrear para o Parlamento uma agenda abertamente anti-europeia.

Dir-se-á que, se essa vier a ser a vontade democrática, há que cumpri-la. É verdade, se tudo o que essas vozes renitentes disserem se enquadrar dentro dos princípios que os tratados preveem. Mas, cada vez mais, as coisas apontam noutra direção.

O que se torna preocupante é que, como se viu nos debates sobre os refugiados, e continua a observar-se nos temas migratórios, o próximo Parlamento Europeu venha a reforçar correntes representativas das derivas fortemente xenófobas e autoritárias, que já marcam o quotidiano de alguns Estados onde, na ordem interna, se verificam hoje verdadeiros atentados aos princípios do Estado de direito, da separação de poderes, da independência dos media. Aí já não estaremos a falar de legítimas divergências doutrinárias, mas de desafio aos princípios e valores que todos os países se obrigaram a cumprir aquando da sua adesão ao “clube”.

Porém, as grandes questões que a Europa de 2019 vai enfrentar não se esgotam nas eleições europeias. Salientaria as duas que acho essenciais.

Desde logo, o Brexit. Estamos a dias de perceber se há ou não razões fortes para começar a preparar a União para um cenário de não-acordo. O tempo que passou desde o trauma provocado pelo referendo, com a magnitude dos estudos de impacto entretanto feitos, poderá ter ajudado a tornar o divórcio mais “natural” junto dos mercados, mas diz quem sabe que, em certos setores, subsistem grandes pontos de interrogação sobre os reais efeitos de uma rutura. 

Mas o Brexit será muito mais do que isso. Representará, pela primeira vez, um recuo assumido no processo integrador, uma Europa sem um Estado com a dimensão e influência do Reino Unido, uma nova relação de forças, agora exclusivamente nas mãos de poderes continentais. O Brexit é uma péssima notícia, mas tudo indica que será uma realidade e, como se costuma dizer, o que tem de ser tem muita força.

Mas isto não esgota a agenda de preocupações que, no próximo ano, a Europa terá sobre a mesa. Diria que uma questão vital para a sobrevivência da zona euro, num eventual cenário de crise, continua por resolver em termos satisfatórios: refiro-me ao completamento da União Bancária onde, muito claramente, prevalecem divergências fruto de visões muito afastadas sobre os mecanismos de responsabilidade solidária. As iniciativas do presidente Macron nesse domínio, que iam no sentido de uma diferente arquitetura institucional para a zona euro, não colheram o acordo alemão – e nós sabemos o que isso significa para o futuro de qualquer proposta europeia.

A Europa que aí vem tem, como é sabido, muitos outros problemas. Mas, ao pé dos que referi, eles são de importância secundária, por muito relevantes que possam parecer, se vistos isoladamente. 

Talvez devamos terminar de forma tradicional: desejando muito simplesmente à Europa um feliz ano novo.  

quarta-feira, dezembro 26, 2018

Trump e os generais


O ano termina com uma nota sombria. A demissão do responsável ministerial pela Defesa, nos Estados Unidos, fez disparar alertas por todo o mundo. 

Jim Mattis, um prestigiado general que Obama afastara por atitudes demasiado “guerreiras”, e que Trump, seguramente por isso, cuidou em recuperar, escreveu uma carta ao presidente em que, basicamente, diz não concordar com a sua orientação e, em particular, com o desprezo e desconsideração que Trump mostra para com os aliados da América. Muitos leram nisto uma alusão à NATO, outros consideraram que a referência também se ligava aos grupos curdos que, na Síria, vinham a ser usados pelos EUA na luta contra o ISIS. É que um anúncio súbito de Trump, de que ia retirar o que resta de forças americanas em terreno sírio, deixa os grupos curdos à mercê da expectável agressividade turca contra o seu velho inimigo. Mattis não está de acordo com esta estratégia para a Síria, como igualmente não parece concordar com a aceleração da saída das tropas do Afeganistão.

Desde o primeiro dia, a América e o mundo assistiram, entre o divertido e o preocupado, às incessantes entradas e saídas de pessoal para a Casa Branca de Trump. Não há memória de uma administração ter alguma vez sofrido um tão elevado grau de instabilidade e, nos dias de hoje, é perfeitamente evidente que a única fonte dessa instabilidade é o próprio Trump. Considerando-se ungido de um poder supremo, que não admite contestação, sabe-se que ele reage com irritação a quaisquer observações que possam infirmar as suas certezas instintivas. Alguém que persista em contrariá-lo, por mais razoáveis que sejam os seus argumentos, tem os seus dias oficiais contados. Trump é superficial, amoral e imprevisível, parecendo confiar apenas na sua intuição.

Criou-se a noção de que Trump tinha um respeito especial pelos militares, setor que, nos EUA, beneficia de um estatuto de prestígio público muito forte. Porém, basta ler o que Bob Woodward escreve no seu livro “Medo” para se perceber que a paciência do presidente perante as Forças Armadas começava já a ter um prazo de validade. O modo como Trump foi, sucessivamente, afastando generais qualificados como McMaster, Kelly e agora Mattis, prova que nem sequer o peso institucional das fardas já o detém, na sua tentativa de reduzir a sua “entourage” a um mero círculo de fiéis, acríticos e prestimosos. Para aquela que é a maior potência militar do mundo, com imenso poder nuclear, a crescente dependência de uma figura da estirpe de Trump é dramática.

Sigmaringa Seixas


Um dia, num daqueles cruzamentos de pessoas em que as mesas do Piantella, o mais político restaurante de Brasília, eram férteis, o Toninho Drummond, um querido amigo desaparecido há meses e que, por décadas, foi a alma da Globo na capital federal, disse-me: "Francisco, você tem de conhecer aqui um seu primo!" Olhei para a pessoa que se tinha levantado para me cumprimentar e fiz uma cara interrogativa. Eu sabia que tinha, de facto, primos no Brasil, mas não estava à espera de encontrar algum por ali. A pessoa em causa também não. Era Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, um advogado, antigo deputado federal e militante do PT. Não era meu primo, apenas comungávamos o nome de família.

Voltámos a cruzar-nos por diversas vezes, sempre em ocasiões sociais e, claro!, passámos a tratar-nos por "primo", o que sempre deixava os circunstantes surpreendidos. Uma noite, em S. Paulo, no bar do Fasano, ambos fazendo horas para encontros, bebemos um vinho durante um bom quarto de hora de "papo". Ele era um homem muito cordial, bom conversador. Combinámos telefonar-nos, quando de regresso a Brasília. Isso nunca aconteceria.   

Sigmaringa Seixas morreu ontem, aos 74 anos. 

terça-feira, dezembro 25, 2018

O papel


Hoje, dia de Natal, quase não há jornais diários. (Verdade seja que, também nos outros dias, os diários nacionais não abundam). Com as tabacarias fechadas, aqui por Vila Real, os postos de combustível são a última esperança para um “viciado” de jornais como eu sou. Entrei num, comprei dois jornais e fiquei uns instantes a observar as capas de umas revistas “do social”. Nesse entretanto, surgiu um jovem, de vinte e poucos anos. Alguma coisa me levou a concluir que podia ser estudante. Vi-o pegar precisamente nos mesmos dois jornais. “Um jovem a comprar jornais em papel?”, questionei para comigo mesmo. Saí da loja quase ao mesmo tempo do que ele. Não resisti e comentei-lhe: “Lê sempre dois diários?”. O rapaz olhou para mim, também curioso pela minha observação, retorquindo, com um sorriso: “Estes jornais? Não, não são para mim, são para o meu avô”. Nesse instante, deve ter-se dado conta que eu devia ser da idade desse seu avô. E esclareceu, com um toque de humildade (ou seria disfarçada arrogância?): “Eu não leio jornais em papel”, acrescentando, “às vezes leio no online, mas, mesmo assim, muito pouco”. “Continuação de Boas Festas!”, lancei-lhe, à medida que ambos íamos para os nossos carros. Ele retribuiu e, intimamente, pode ter pensado que, no essencial, eram pessoas como o seu avô (e não falou no pai) aquelas que (ainda) liam jornais em papel. Será que também teve tempo para concluir que, quando as pessoas com a idade do seu avô desaparecerem, os jornais em papel deixarão também de existir? 

domingo, dezembro 23, 2018

Populares e pessoas


Atentem bem nas nossas televisões.

Quando ocorre qualquer “ajuntamento” em Borba ou em Famalicão ou no Fundão, a “Sónia Cristina” do direto reporta: “muitos populares juntaram-se hoje em protesto...”.

Mas, se o mesmo movimento ocorre no Terreiro do Paço, aí “fia mais fino” e o repórter diz “grande número de pessoas esteve hoje frente ao ministério...”.

Um “popular” necessita de migrar para Lisboa para passar a ser “pessoa”.

Natal na prisão


O Estado português procura proporcionar, pelos Natais, um apoio especial aos cidadãos portugueses que estão presos por esse mundo fora, cumprindo os mais diversos tipos de penas, infelizmente em condições de encarceramento nem sempre com um mínimo de dignidade.

Um dia de 2011, com o Conselheiro Social da embaixada em Paris, Victor Gil, acompanhados por uma freira portuguesa que se voluntariava para dar apoio aos nossos presos, decidi ir visitar o diretor da cadeia de alta segurança existente em Fresnes, perto de Paris, onde cumpriam longas penas alguns portugueses, acusados de crimes graves. O objetivo era tentar discutir a possível melhoria das suas condições de vida (acesso a televisões era, ao que me lembro, um dos problemas), assunto para o qual uma simpática freira portuguesa a viver em França, a Irmã Elisa, nos tinha sensibilizado.

Já não tenho presente o saldo útil da nossa conversa, para as questões que ali nos tinham levado, mas recordo bem uma coisa que o diretor de Fresnes me disse: “Tenho aqui portugueses a cumprir longas penas, alguns pela prática de crimes muito violentos, de vários assassinatos. Mas, em geral, tenho boa impressão desses homens”. Recordo-me que fiquei surpreendido com a aparente contradição. Mas ele explicou: “Esses homens chegam aqui e querem logo começar a trabalhar, em qualquer setor. Porque vêm habituados a fazê-lo, no seu anterior dia-a-dia. Na esmagadora maioria, trata-se de gente muito simples, sem cadastro anterior, não estando ligados a modelos de criminalidade organizada. Cometeram, quase sempre, crimes ”de honra”, tentando vingar o que entenderam como traições ou a sua dignidade ofendida, ou de familiares. Às vezes fizeram-no com uma extraordinária violência, o que levou a pesadas penas“.

Lembrei-me disto ontem, ao ver o secretário de Estado das Comunidades entregar algum apoio de Natal aos presos de Fresnes. Quem está a pagar o preço que deve à sociedade tem os seus direitos cerceados, mas a sua dignidade como seres humanos tem de ser respeitada.

sábado, dezembro 22, 2018

Cumué?


Foi, há pouco, no Cabo da “Bila” (é mesmo com um “b”). Dirigiu-se-me com simpatia, a desejar Boas Festas. ”Ainda trabalha lá?”, perguntei-lhe, referindo-me à loja comercial onde era empregado e sempre o conheci. “Não, doutor, reformei-me. O tempo passa para todos, não é?”. É verdade, às vezes esqueço-me disso.

Há quantos anos conheço este homem? Uma imensidão. Das muitas figuras do comércio de Vila Real, ele tinha, desde novo, uma caraterística interessante, que o meu pai um dia me fez notar: falava como se fosse o dono da loja. “Não, desse modelo não tenho. Mas, se quiser, posso pedir para o Porto e depois mando-lhe lá a casa”. Tudo sempre com uma grande gentileza, a mesma que o fazia sair detrás da montra, para me cumprimentar, sempre que me vislumbrava, nas minhas vindas à cidade. A loja por lá continua, ainda com o mesmo dono, mas agora já sem o nosso homem.

Depois deste encontro, continuei o meu passeio pela Rua Direita, aquela que foi a mais importante rua comercial de Vila Real e que hoje, sábado antes do Natal, era um quase deserto de gente e de lojas abertas. Nada de novo, afinal!

Cheguei à Capela Nova e olhei a loja que aparece na fotografia. Desde há muitos anos que passava por lá para dar um abraço ao Néné, o proprietário, amigo de infância lançando-lhe o bem vilareealense ”Cumué, Néné?”. Isso acabou. Disseram-me na Gomes (onde tudo se sabe) que o Néné se reformou. Se, agora pelo Natal, o vier a encontrar por aí, vai, com certeza, dizer-me: “O tempo passa para todos, não é?

sexta-feira, dezembro 21, 2018

O ano que passámos


Os “balanços” passaram de moda. Olha-se agora menos para o passado e mais para o que aí vem. Arriscarei sintetizar o modo como, nos últimos 12 meses, se comportaram aqueles que mais influenciam os equilíbrios globais.

A maior potência mundial, os Estados Unidos, dirigida por um líder atípico (e isto é um “understatment”), confirmou, em 2018, que o seu tropismo nacionalista, protecionista e subversor do ordenamento global, de que havia sido o principal mentor, está para durar. Trump agravou distâncias com os europeus com pretextos económicos, desligou-se do acordo com eles estabelecido para o controlo nuclear do Irão, introduzindo, na passada, novos fatores de tensão no Médio Oriente. Manteve o desprezo pelo sistema multilateral, nomeadamente na vital questão climática. Apanhou o mundo de surpresa, ao encontrar-se com o ditador norte-coreano, conseguindo aí uma singular trégua, na espiral de perigosas provocações que dele emergiam. Menos claras continuam a ser as suas relações com a Rússia: tanto mostrou uma quase subserviência face a Putin como, mais tarde, o vimos reforçar as sanções a Moscovo, no caso do antigo espião russo envenenado no Reino Unido. E, num jogo de sombras que só o futuro permitirá entender, EUA e Rússia parecem discretamente confortáveis em manter Assad no poder. 

A China surge ainda num segundo lugar na lista das prioridades globais. Entre picos de tensão e tréguas comerciais, está claro que ela é o adversário em cujo crescimento e projeção os EUA vão atentar. A Rússia pode constituir um problema para América, pelo potencial desestabilizador no seu “near abroad”, mas o qualificativo de “poder regional”, que Obama lhe deu, tem hoje todo o sentido. Assim, a atenção americana centra-se, na ordem externa, na ameaça chinesa, da economia à segurança. Mas é evidente que muito está para vir: é que, para concretizar as suas ambições globais, Beijing terá de voltar a dar um “grande salto em frente” de influência político-diplomática que, com certeza, não será recebido de braços abertos pelos restantes “major players”.

Em 2018, a União Europeia mostrou avanços e recuos na afirmação da sua vontade política coletiva. O espetro do Brexit foi, claramente, o pano de fundo e de teste da capacidade de agregação dos “vinte e sete”. A unidade conseguida face a Londres foi uma boa surpresa. A negociação com os britânicos está a correr tão bem como qualquer divórcio contencioso pode correr. Mas, se o Brexit se concluir sem acordo, os impactos devem ser muito consideráveis. Menos conseguidos são os passos para a consensualização de medidas para o reforço da governabilidade do euro: sérias diferenças permanecem, numa divisão entre Estados que parecem dificilmente ultrapassável. A Europa, para além de tudo isso, dá mostras de alguma tibieza ética, ao não ter coragem para se opor às derivas anti-democráticas e xenófobas de alguns dos seus Estados. A sua autoridade moral à escala global sairá forçosamente ferida desta ominosa omissão.

O mundo que entra em 2019 acarreta também consigo esse fantástico universo de oportunidades e riscos que é a globalização tecnológica, com impactos na circulação da informação e na qualidade da democracia que só agora começam a ser avaliados. O mundo está perigoso? Sejamos realistas: quase sempre esteve.

quinta-feira, dezembro 20, 2018

Algo


Por esta quadra, com a regularidade do Natal dos Hospitais, as televisões mostram o Ambrósio a desiludir os malandros que esperavam outra resposta ao pedido da bela senhora “à la fourrure” a quem apetece algo. O “algo” que o Ambrósio “tomou a liberdade” de providenciar são os chocolates Ferrero Rocher, que imagino que se devem vender bastante bem, para justificar uma publicidade tão intensa.

Um dia, quando vivia em Paris, tive direito a uma reportagem sobre o quotidiano do embaixador de Portugal que então era, para a revista de um jornal português. O jornalista autor da peça fazia-se acompanhar de uma fotógrafa local (sei que agora deve dizer-se fotojornalista, mas sou assim). Chamava-se Capucine, nome com inescapáveis ressonâncias para os cinéfilos de bom gosto.

Recordo-me que era uma mulher lindíssima, com uns olhos inesquecíveis, que andou connosco o dia inteiro, para obter imagens muito variadas, em diversos locais da cidade. O dia, ao que me lembro, passou a correr. O jornalista teve entretanto mais que fazer e o trabalho acabou no Trocadero, comigo e a Capucine a bebermos um “demi” no “Le Coq”. 

Foi aí que ela fez uma pergunta estranha: “Há muitos chocolates Ferrero-Rocher na sua embaixada?” Aquilo intrigou-me. Por que diabo teria de haver?

Explicou-me ela que, no imaginário francês corrente, aquela marca de chocolates é muito associada à vida diplomática, ao ambiente tido por glamoroso das embaixadas. Só mais tarde confirmei que, de facto, a nossa retratista não tinha inventado a história. O mito de que as representações diplomáticas vivem “obrigatoriamente” inundadas daquelas almôndegas doces existe mesmo em França.

Na ocasião, expliquei à nossa excelente fotógrafa que nunca tinha ouvido falar nessa curiosa ligação. E garanti-lhe que só por um acaso aquele chocolate existiria na residência da nossa embaixada. Não verifiquei.

Lembrei-me há pouco dela, da bela Capucine, ao rever, pela enésima vez, a senhora de chapéu classicamente elegante a dizer ao fardadíssimo Ambrósio que lhe apetecia algo, imagino que com este a pensar “o que tu queres sei eu!“ Ferrero-Rocher, claro!

quarta-feira, dezembro 19, 2018

Para onde vai a direita?


A direita portuguesa vive um momento complexo. O PSD de Rui Rio afunda-se nas sondagens e o CDS de Assunção Cristas não aproveita esses humores. A seu crédito só concorrem alguns “tiros no pé” que o governo vai dando e, claro, a onda grevista em época pré-eleitoral, que induz no imaginário público a ideia de que se vive uma imparável instabilidade social. Conta também com o tropismo tremendista de certa comunicação social, que dá prioridade absoluta ao que “corre mal”. E, em política, como dizia o outro, o que parece é.

E parece que Rui Rio tem a vida bastante difícil. O líder do PSD, com uma bancada parlamentar hostil, marcada por uma raiva saudosa da antiga liderança, segue o seu caminho das pedras. Rio, que é um homem sério, escolheu dizer o que verdadeiramente pensa, na convicção de que, a prazo, a autenticidade acabará por pagar. Não estou tão certo disso. A guerra que agora abriu com o Ministério Público, na minha opinião com imensa razão, não deixa de ser uma causa impopular nas suas hostes, sobretudo no mundo político a-preto-e-branco em que se vive. A menos que os astros se conjuguem, Rio vai perder as eleições por larga margem e, na enxurrada que a sua saída vai provocar, fará desaparecer o pouco que resta da ala social-democrata do PSD.

Do CDS, a direita espera pouco, isto é, aguarda o “share” habitual, no outono triste que vai ter. Cristas, que já se viu que não é Portas, a prazo terá à perna uns “jovens turcos” ultramontanos que estão à espera de vez, continuando ela por ora a hesitar entre o beatismo social e o caceteirismo verbal. A certos setores do partido foge já muito o pé para o populismo nacionalista, com a correspondente deriva eurocética. 

Descontado o epifenómeno unipessoal do Aliança, resta a direita inorgânica dos jornais informáticos e aquela que espalha adjetivos acres pelas redes sociais. Parte diz-se liberal, um rótulo anti-Estado que vai muito com “l’air du temps”. Outra, contudo, cujo “teste do algodão” é a sua recusa a usar no discurso a expressão “extrema-direita”, revela claramente que os seus escrúpulos democráticos não chegam para alienar o futuro apoio de um mundo que por aí borbulha, num magma radical entre a xenofobia, o racismo e algumas pulsões autoritárias.

Fica a sensação de que o setor mais conservador da sociedade política portuguesa atravessa um tempo de indefinição. Para a sanidade do sistema político, só podemos esperar que a resultante final seja solidamente democrática. Tal como se espera da esquerda, aliás.

terça-feira, dezembro 18, 2018

Mourinho


Não simpatizo nada com José Mourinho, que aliás não conheço pessoalmente. Mas ele é, “apenas”, um dos treinadores com mais sucessos na história mundial do futebol, obtidos em campeonatos vários. 

Aproveitar um seu mau momento para sobre ele derramar uma acrimónia depreciativa, como por aí se vê agora, só confirma a persistência de uma conhecida doença nacional: a inveja.

Serralves


São muito boas as notícias que nos chegam de Serralves. Passada que foi a pequena crise que, com uma ajuda mediática que ficou bem identificada, pretendeu envolver a Fundação, esta renovou agora, com grande serenidade, o seu quadro dirigente e prepara-se para continuar o excelente trabalho que, desde há décadas, tem vindo a fazer.

Mas ainda vale a pena perguntar: quem quis prejudicar Serralves? Quem pareceu pretender criar uma instabilidade, artificial e secundária, numa das instituições culturais de maior prestígio do país? Será que alguém ainda se sente incomodado com a autonomia de Serralves?

O que se viu nos dias que se sucederam à polémica sobre a exposição de Mapplethorp configurou uma reação quase histérica e que, no fim de contas, levanta a legítima suspeita de que alguém terá querido cavalgar o incidente para abalar a instituição. Isso agora, felizmente, ficou enterrado de vez, talvez para desagrado de alguns egos e de outras sensibilidades mais delicadas.

Devo dizer que, de há muito, tenho um imenso apreço pelo trabalho da Fundação de Serralves, muito bem prosseguido neste período de gestão de Ana Pinho.

Serralves foi das boas coisas que aconteceram ao Porto. 

segunda-feira, dezembro 17, 2018

Notas soltas


1. A cada dia que passa, gosto mais da nova ministra da Saúde. Tem pensamento político para o setor, sabe o que quer, di-lo com frontalidade (no entanto, às vezes, com palavras menos cuidadas). Ah! E um ministro tem todo o direito de só adotar o que entender de um estudo que foi encomendado a outrém.

2. Os partidos políticos não sentem um pingo de vergonha ao ouvirem deputados seus em comentários televisivos sectários sobre futebol? Não percebem que os seus potenciais votantes olham para essa gente como alguém que, já que é capaz de estar a mentir sobre um penalti, pode estar a mentir sobre tudo?

3. O DN anuncia que podemos comprar um facsimile da primeira página que publicou no dia em que nascemos. Ainda pensei comprar, mas, depois, refleti: a mim, o que me interessa é a do dia seguinte, porque é a que, na capa, traz essa importante notícia...

4. Face à especulação política - e nisso incluo certa “imprensa” - já criada em torno do acidente do INEM, quase fica a ideia de que foi esta a primeira vez que, no mundo, caiu um helicóptero de socorro. Uma coisa é investigar com serenidade, outra coisa é ser abutre da tragédia.

5. Há dias em que percebemos que a idade passa rápido: dei-me conta de que ainda sou do tempo em que Daniel Ortega lutava pela liberdade na Nicarágua. Agora, a Nicarágua luta para se libertar dele.

6. Convém ter alguma compreensão pela nervoseira (e, vá lá!, por alguma raiva) que atravessa certa rapaziada. O Marcelo saiu-lhe o que saiu, o Rio é o que é: acham que eles têm alguma razão para andar satisfeitos? E alguns ainda se arriscam a que, daqui a dias, lhes saia a fava no bolo-rei...

7. Gosto da sabedoria da fórmula de Martin Wolf, no FT, sobre as opções do Brexit: "None of these options looks better than highly improbable. As Sherlock Holmes said, once you eliminate the impossible, whatever remains, no matter how improbable, must be the truth".

8. Hoje colocou-se-me um magno problema semântico: não será de aplicar as regras da igualdade de género à velha fórmula “exploração do homem pelo homem”? Não estaremos, uma vez mais, num caso evidente de machismo-leninismo?

9. E, a propósito, teve graça ouvir o ministro do Interior francês dizer, em conferência de imprensa, de forma politicamente correta, “les manifestantes et les manifestants”. Mas, estranhamente, não cuidou em falar em “les agitatrices et les agitateurs”. É que ou há moralidade...

10. Há coisas que não rimam com minha aberta simpatia por este governo: acho francamente legítimo que a utilização excessiva do sistema das cativações seja lida como uma óbvia falta respeito pela vontade parlamentar que aprova, por lei, os OGE. Os meus amigos do PS vão ficar furiosos com isto? Paciência!

11. Há dias que me reconciliam com a grande imprensa. É reconfortante olhar um jornal e ler um título bem construido: “Assassino da banheira separou-se da amante”. Assim, simples, preciso.

12. Rui Rio foi honesto e frontal nas declarações qyue fez sobre o corporativismo existente na Justiça. Que nunca as mãos lhe doam! E honra lhe seja! Mas, a falar assim, talvez não chegue nunca ao poder. O PS tremeu logo e mostrou que receia abrir mais uma frente se apoiar o líder do PSD. Talvez ache que assim será mais fácil manter-se no poder.

13. A mais lamentável revelação de arrogância de um político é a afirmação de que aquilo que falhou foi a “comunicação”, isto é, que as políticas estavam certas e que o problema esteve no modo de as transmitir. Ou seja, não é preciso mudar as políticas, só explicá-las melhor. Estou farto de gente que pensa (pensa mesmo?) assim.

14. Eu não sou de intrigas, mas esta do “crowdfunding” para a greve dos enfermeiros cheira-me muito, mas mesmo muito, a esturro. Em teoria, está descoberta uma maneira de fazer financiamento político-sindical sem controlo, à luz de um conceito modernaço. Não há ninguém na PGR que pense nisto ou estão a pensar arranjar mecenato para a anunciada greve do Ministério Público?

15. Na minha rua, quase à porta de casa, houve, há dias, um acidente com um elétrico. Até o presidente da República tive aqui pela porta, de visita ao desastre. Felizmente, as consequências não foram tão graves como, à primeira vista, se supôs. Estranhei muito não ver ninguém lembrar que os elétricos de Lisboa são um meio de transporte bastante seguro, com uma taxa de acidentes muito baixa.

16. Cada vez mais adoro a expressão “cultura de balneário” aplicada à “filosofia” coletiva de um grupo de matulões, em trajes menores, que se exprime, muitas vezes, tendo como único léxico apresentável os textos dos jornais desportivos que os "aculturam".

17. O “fact-checking” surgiu na imprensa para tentar separar o trigo do jóio, a mentira da verdade. Mas isso pressupõe que quem escrutina o faça de forma isenta. Acabo de ler, num jornal informático que anda para aí a observar, um “fact-checking’ fortemente enviesado, bem ideológico. É o que se pode chamar um “fake-checking”.

18. A grande virtualidade de uma lista de pontos com esta dimensão é que só por milagre é que alguém concordará com todos os eles, o que torna um “like” geral bastante difícil. E alguns desses “likes” só surgirão mesmo por simpatia (que desde já agradeço), talvez porque muita gente não vai ler o post até ao fim. (E deixei esta provocação cá bem no fundo da lista apenas para os testar).

19. Tenham uma boa semana. O Natal está aí à bica, até porque já não é quando um homem quiser. A igualdade de género não admite isso...

domingo, dezembro 16, 2018

Os “gilets jaunes”


Acho estranha a condescendência que se instalou face ao movimento dos “gilet jaunes”, não o responsabilizando pela violência e pelos danos que, sob a sua cobertura, são regularmente praticados. 

Quem se manifesta - e está no seu pleníssimo direito de o fazer, porque faz emergir o mal-estar existente, o que é um sintoma democraticamente relevante - deve cuidar em que esse ato se processe nos termos ordeiros que são próprios de uma qualquer sociedade democrática. 

Se os “gilets jaunes” representam uma causa com um fundamento sério, e parece que assim é, deveriam ter estado sempre, e desde a primeira hora, na linha da frente de isolamento dos “casseurs” que, no seu seio e a seu coberto, acabaram por pilhar lojas, incendiaram viaturas e provocaram incomensuráveis destruições, muitas das quais irão ser pagas pelos contribuintes. 

É que, desta forma, fica instalada a ideia de que os “gilet jaunes” apenas se distanciam desses vândalos por habilidade tática mas, lá no fundo, não deixam de ser aproveitadores oportunistas da pressão que o receio crescente desses desacatos acaba por ter sobre a sociedade em geral e as autoridades em particular. 

Contrariamente aos que alguns inconscientes pensam, em política não vale tudo. Se quisermos viver em democracia, claro.

O regresso dos abutres

Face à especulação política - e nela incluo certa “imprensa” - que já está instalada em torno do acidente do INEM, quase fica a ideia de que foi esta a primeira vez que, em todo o mundo, caiu um helicóptero de socorro. 

Uma coisa é investigar com serenidade e rigor (e conm rapidez, por favor!), outra coisa é ser abutre de uma tragédia.

Sporting

Os sócios do Sporting votaram pelo afastamento do antigo presidente (cujo nome procuro esquecer) e de outros responsáveis por um tempo de tragédia que ia destruindo o clube. 

Podemos ter perdido (muoto por culpa dessa gente) William Carvalho ou Rui Patrício, mas parece que recuperámos o bom senso.

Coisas do tempo

Há dias em que percebemos como o tempo passa: dei-me conta de que ainda sou do tempo em que Daniel Ortega lutava pela liberdade na Nicarágua. 

Agora, é a Nicarágua que luta para se libertar dele.

Os anos do Nuno


O Nuno Brederode Santos teria feito 74 anos no dia 14. Mas a morte, essa velhaca, que até cuidou em se fazer anunciada, apanhou-o à má fila num dia de abril de 2017. O Nuno deixou-nos a todos nesse dia, mas, principalmente, deixou a Céu e a família.

Nos dias que correm, perante o circo do quotidiano político, dou às vezes comigo a pensar no modo como o Nuno comentaria alguns episódios que por aí emergem. Estou mesmo a vê-lo a ironizar sobre os deputados ubíquos, os touros da polémica (ele que até gostava de touros!), o politicamente correto semântico - do ”camarado” bloquista/o à ofensiva do PAN contra as Fábulas de La Fontaine. 

O Nuno não esteve connosco, mas, para o celebrarmos, a Céu juntou, ontem à tarde, um grupo de amigos, na “Barraca”. Falámos bastante dele, um seu texto foi lido e, em fundo, passaram fotos da sua vida. Foi um belo momento. Ele merecia-o.

Para o ano, a “Cotovia” vai publicar dois volumes das crónicas do Nuno, desde as que já haviam sido recolhidas no imperdível “Rumor Civil”, até muitas outras que andavam por aí dispersas - como o  "Ornitorrinco" (a crónica preferida do próprio Nuno) até ao celebrado “Cavaco faz-me falta!".

Parabéns, Nuno! Quem assim é lembrado morre um pouco menos.

sábado, dezembro 15, 2018

A fezada


Foi em finais de 2004. Eu estava a escassos meses de ir chefiar a nossa embaixada em Brasília. Numa noite, na minha casa em Viena, recebia um casal amigo - amigos de há muitos anos. Embora vivêssemos na mesma cidade, as nossas muito diferentes vidas faziam com que raramente nos encontrássemos.

Nesse jantar, pressenti, desde o início, que nos queriam dizer alguma coisa de especial. E assim foi. “Entre la poire et le fromage”, como dizem os franceses, naquele momento das refeições em que se abrem as “hostilidades” para os assuntos que as motivam, ele perguntou-me: “Diz-me lá uma coisa: tu ainda continuas a acreditar apenas naquilo que vês?” Dei uma gargalhada e disse-lhe: “Claro e, às vezes, nem mesmo no que vejo... Mas por que é que fazes essa pergunta?”

Notei que eles se entreolharam e ele prosseguiu: “Continuas então a não acreditar no sobrenatural, não é?”. Ele conhecia-me há mais de trinta anos e sabia que eu era, desde sempre e em absoluto, imune a crenças de qualquer natureza, sem nunca ter tido na vida a menor inquietação mística, nem a mais leve vocação para aceitar nada para além do óbvio. Comecei a intrigar-me com a questão mas ele deu-me, logo a seguir, uma excelente razão para ficar exultante: “Vou-me aposentar e vamos viver para o Brasil”.

Olhámo-los com surpresa, satisfeitíssimos com a notícia e ainda mais ficámos quando nos disseram que se iam instalar bastante perto de Brasília. Ia ser excelente! Talvez ali tivéssemos uma oportunidade de nos encontrar mais vezes, nós que, quase um quarto de século antes, havíamos sido as testemunhas do seu casamento civil.

Porém, dentro de mim, ficou instalada uma interrogação: por que diabo tinha surgido aquela questão religiosa? O que é que isso podia ter a ver com a ida para o Brasil? Tinha tudo, como logo se concluiu. Esses amigos tinham decidido vender tudo e ir abrir uma “pousada” (o que, no Brasil, significa uma espécie de pensão ou pequeno hotel) numa pequena vila a umas dezenas de quilómetros de Brasília. E isso estava, em absoluto, ligado ao “sobrenatural”.

Foi então que ele nos contou, fitando-me de frente, já antecipando o meu ceticismo, que ambos haviam tido uma experiência excecional. Perante um problema de saúde que ele tinha tido, fora aconselhado a deslocar-se à localidade de Abadiânia, para consultar uma figura que fazia curas extraordinárias. No seu caso, havia sido “operado ao coração”, sem qualquer incisão no corpo, apenas pelo trabalho exterior de mãos dessa figura. E ficara curado! Desde então, ambos haviam decidido mudar-se para lá, ligar-se profundamente a esse projeto.

Eu procurava, com o maior cuidado, nem ser hipócrita, fingindo que acreditava naquilo, nem ser jocoso, deixando fluir a minha total incredulidade, que ia muito para além daquilo que ele me contava. “Já sei que não acreditas em nada disto, não é? Deves achar-nos uns tontos...”. Pelo plural utilizado, concluí que ela também acreditava em pleno. Assim era. Eu fazia o meu melhor para descobrir o registo certo para me manter sério na conversa, que descambava para pormenores cada vez mais inverosímeis. Devo, entretanto, ter ido buscar mais gelo para o whisky ou coisa assim...

“To make a long story short”: eles tinham-se convertido em fãs incondicionais de João de Deus, a figura que transformou Abadiânia num conhecido local de romagem de milhares de pessoas à procura de curas milagrosas, com carrinhas diárias que saíam do aeroporto de Brasília, oriundas de todo o Brasil e cada vez mais dos Estados Unidos. E iam viver para junto dessa figura de “medium”, abrindo uma “pousada” como suporte de vida.

Partimos para o Brasil poucos meses depois daquele jantar. A curiosidade motivou-me a visitar Abadiânia, logo após a nossa instalação. Era um lugar sinistro, uma vilória sem a menor graça, no meio de um espaço árido e poeirento. Mas por lá pululavam, em direção ao endereço de João de Deus, imensas viaturas, com alojamentos em crescendo por todo o lado.

Lembro-me bem que telefonei, nesse momento, ao meu amigo, para a Áustria, de um “boteco” no meio da vila: “Estamos a passar em Abadiânia. Lembrámo-nos de vocês”. Não senti que tivesse ficado muito entusiasmado com o meu contacto, mas levei isso à conta de achar que eu poderia estar “a gozá-lo”.

Desde Viena que sabíamos que eles só iriam uns tempos mais tarde. Porém, um dia, recebi dele um telefonema a informar-me de que, afinal, haviam desistido de se mudar para o Brasil. Aparentemente, sem que mo explicitasse, algo se teria passado que os teria, entretanto, feito desiludir da figura de João de Deus. Nunca soube exatamente o quê. Voltámos a encontrar-nos anos mais tarde e o assunto nem sequer veio à baila da conversa. E eu achei melhor não o suscitar. Ele, entretanto, já morreu. Era um excelente amigo.

Ontem, li na comunicação social brasileira que João de Deus foi detido, acusado de algumas fortes patifarias. Aquele meu amigo podia ter perdido a “fezada” que nele tinha, mas, durante os anos em que vivi no Brasil, posso testemunhar que encontrei gente altamente qualificada - ministros, deputados, diplomatas, empresários - que me asseguraram, sem a menor sombra de dúvida, a sua admiração extrema pelo “medium” de Abadiânia, com uma confiança inabalável nas suas capacidades curadoras. Não me parece que a sua prisão reverta essa admiração.

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...