No dia 11 de setembro de 2001, cerca de oito meses decorridos desde a sua entrada em funções como presidente, George W. Bush ainda não se dignara nomear um embaixador para a ONU - mas sabia-se que, quando o fizesse, essa pessoa não iria ter um estatuto de membro do Gabinete, o que é sempre um sinal claro da falta de interesse de uma administração dos EUA pela instituição central do mundo multilateral. Numa ciclotimia comum na América, a um presidente atento ao diálogo com os parceiros, sucedia-se um outro mais propenso ao autismo na afirmação do poder.
Nos corredores do palácio de vidro de Nova Iorque, por onde andava nesse tempo de 2001, como embaixador português, a vontade americana era ainda pouco visível e explícita. Os meus colaboradores, que frequentavam as várias comissões, diziam-me que os seus contrapartes americanos viviam de ordens pontuais vindas diretamente de Washington, sem a menor autonomia e sentido de coerência dado pela Missão ali presente.
Recordo-me que, no tocante às questões da paz em Angola e em Timor, que nos preocupavam, estávamos a ter grande dificuldade para perceber se haveria algum novo rumo em Washington e de que modo ele se objetivaria em decisões concretas. Esperava-se, claro, uma agenda muito mais conservadora, mas era imperativo saber quanto ela o seria e qual acabaria por ser o papel da ONU nesse contexto. No fundo, todos aguardávamos, com grande curiosidade, o discurso que George W. Bush iria fazer na Assembleia Geral da ONU, que teria o seu início no dia 12 de setembro.
Mas ainda estávamos a 11.
Eu tinha saído de casa a tempo da reunião semanal de coordenação que os embaixadores da UE tinham todas as terças-feiras, num prédio em frente da ONU.
À entrada, Jean-David Levitte, o meu colega francês, disse-me saber que havia um incêndio numa das torres do World Trade Center. Isso explicava uma nuvem escura comprida, que ia muito alta e que eu observara, do carro, no caminho para ali. Segurámos a porta do elevador para o colega britânico, Jeremy Greenstock, que se aproximava e que sabia um pouco mais: um avião fora contra uma da torres.
Não me ocorreu então, com toda a certeza, que quase trinta anos antes, em dezembro de 1972, tinha visitado, como turista, uma das Torres Gémeas, com a segunda ainda em construção. E, seguramente, também não me passou no momento pela cabeça que, três meses antes daquela manhã, com o meu pai, então com 91 anos, estivera no topo de uma dessas torres. O que me veio à memória, disso tenho lembrança, é que, não muito tempo antes, uma avioneta fora de encontro, por acidente, a um edifício, algures em Itália. Poderia tratar-se de um caso idêntico.
Não era. Minutos depois, connosco já dentro da sala de reuniões, fomos chamados para ver novas imagens televisivas, que revelavam que a segunda torre tinha sido atingida por outro avião. Eram atentados, claro. Já não sei quanto tempo depois, surgiu a notícia de um outro avião despenhado no Pentágono. Que mais estaria para acontecer?
Entretanto, Nova Iorque foi mudando. As Nações Unidas foram evacuadas, a cidade foi encerrando, os sons das ambulâncias e os carros de bombeiros, que sempre fizeram parte do cenário sonoro da cidade, foram-se tornando mais angustiantes. As torres, uma após a outra, colapsaram. Nesses momentos, em que se formou a nuvem de pó que iria pairar por muito tempo pelo sul de Manhattan, espalhando mais tarde um cheiro ácido pela cidade, a dimensão real da tragédia abriu-se definitivamente para nós.
Por uma cidade em estado de sítio, fui, a pé, para a nossa Missão, ali perto. As pessoas, apressadas, olhavam-se, caras aturdidas. Mandei o pessoal para casa. As escolas estavam a fechar, as pontes de acesso à ilha de Manhattan iam ser encerradas.
De Lisboa, telefonou-me Jorge Sampaio, presidente da República. Para saber como estávamos. E o secretário-geral do MNE, João Salgueiro. A queda das torres afetara um centro vital de comunicações. Recebíamos chamadas, mas não conseguíamos ligar para o estrangeiro. Aproveitei um telefonema de uma jornalista do “Expresso”, cujo nome não anotei, para lhe pedir que ligasse ao meu pai, em Vila Real, para o sossegar. Fê-lo, ainda hoje não sei quem foi, mas agradeço-lhe muito, vinte anos depois.
Quem fizera tudo aquilo? Ainda antes dos atentados serem reivindicados, quase ninguém tinha dúvidas de que mão radical islâmica estava por detrás da barbárie. O ódio à América era imenso e só um fanatismo sem limites podia ter causado aquela aventura. De uma coisa havia a certeza: nada seria igual, a partir daí. A raiva, o desespero, o desejo de vingança, perante aquela infâmia, viriam ao de cima, com toda a força.
Quando, dias depois, Bush foi falar às Nações Unidas, ao olhar para ele, sentado no meu lugar, por detrás da placa de Portugal, não fiquei com a menor dúvida. Era uma outra América que aí vinha. O mundo do “não vale tudo” tinha sido posto definitivamente de lado. Valeu tudo: liberdades públicas, discriminação étnica, Abu Ghraib, torturas, Guantanamo, Iraque, centenas de milhares de mortos. Foi tudo em vão? Não foi, mas não me consta que os ódios se tenham atenuado, a “rua árabe” não sossegou, as suas “primaveras” invernaram de vez, no Afeganistão as coisas são hoje o que são.
Se o 11 de setembro foi o “dia zero” para um outro mundo, estaremos assim tão longe dele, vinte anos e milhões de gastos e de sofrimentos depois? A História anda devagar, olhando para Cabul, parece mesmo estar sem grande pressa.