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quarta-feira, maio 03, 2017

Isabel Mota

(fotografia de João Paulo Dias)

Isabel Mota assume hoje as funções de presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. É a primeira mulher à frente dos destinos da Gulbenkian e isso não pode deixar de ser especialmente assinalado. 

Conheço Isabel Mota há muitos anos, desde que foi trabalhar para a Representação Permanente em Bruxelas, pouco após a nossa entrada para as então Comunidades Europeias, em 1986, ao tempo em que eu próprio integrava a estrutura central de coordenação da nossa integração europeia, em Lisboa. Depois, Isabel Mota foi secretária de Estado do Planeamento durante vários anos, durante os quais adquiriu uma vasta experiência nos dossiês comunitários.

Com o fim do "cavaquismo" (a Isabel não gosta muito da expressão...), Isabel Mota passou a assessorar o então líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, nas questões europeias. Eu era então o secretário de Estado dessa área. Um dia, no gabinete do então primeiro-ministro António Guterres, este combinou com Marcelo Rebelo de Sousa, na nossa presença, que seria criada uma "miniestrutura de relação permanente" entre o governo e o PSD, que "monitorizava o acompanhamento da política europeia passo-a-passo" (para utilizar as expressões usadas pelo agora presidente numa entrevista ao "Expresso", em dezembro de 2015). Essa "miniestrutura" era a Isabel e eu, que passámos a almoçar e a encontrarmo-nos com alguma regularidade. 

Embora com algumas "nuances", as posições dos dois principais partidos tinham largas similitudes no plano europeu e, muito em especial, ambas eram bem distintas, à direita, das do então muito eurocético CDS e, à esquerda, das do PCP (o Bloco estava ainda para nascer). Ficou claro que o PSD não teria um "droit de regard" sobre as posições do governo socialista mas, nas principais questões, este procuraria consensualizar com ele, na medida do possível, aquilo que viesse a apresentar em Bruxelas. E assim se fez, creio que com proveito para o país. Com a "oposicionista" Isabel Mota, que me recorde, só tive uma troca pública de argumentos, aliás bem civilizada, no "Expresso", em torno da questão da regionalização, tema que ela combatia e em que eu defendia a posição governamental, com toda a convicção pessoal que consegui mobilizar na altura para o assunto - e que, confesso, não era imensa... Às vezes, ainda nos rimos com essa polémica.

Os nossos encontros eram sempre com muito "boa onda", porque Isabel Mota é uma pessoa extremamente agradável e divertida. Julgo que conseguimos levar a bom porto aquilo de que os dois líderes políticos nos encarregaram. Anos mais tarde, em 2003, quando eu estava como embaixador na OSCE em Viena, viria a encontrar de novo Isabel Mota numa "task force" que o governo de Durão Barroso criou para acompanhar as negociações do malogrado Tratado Constitucional europeu.

Nos últimos anos, tendo eu passado a exercer as funções de presidente do Conselho Consultivo para a Delegação de Paris da Fundação, regressámos a um contacto mais regular. Sendo Isabel Mota a administradora responsável por aquela área, revelo aqui que passei a tratá-la por "chefe". Agora com a sua ascensão à presidência, vou ter de descobrir um qualificativo que possa representar um "upgrade" a esse título!

Só posso desejar à minha querida amiga Isabel Mota os maiores sucessos na presidência dessa notável instituição "do bem" que tem o nome de Fundação Calouste Gulbenkian. E aproveito também para, neste momento, deixar um abraço de grande amizade a Artur Santos Silva, que abandona a chefia da instituição, depois de um exigente mas muito bem sucedido mandato, num período que, como é sabido, não terá sido nada fácil para a gestão dos recursos que sustentam a atividade daquela casa.

quinta-feira, abril 27, 2017

Os dias de Orbán


Embora fria, lembro-me de que estava uma bela e límpida noite. À varanda central do majestoso parlamento húngaro, nesse mês de Março de 1999, os presidentes Jorge Sampaio e Árpád Göncz trocavam impressões sobre a paisagem frente ao Danúbio.

Horas antes, eu havia acompanhado Jorge Sampaio num encontro com o primeiro-ministro Viktor Orbán.

Os primeiros bombardeamentos da NATO sobre as tropas sérvias no Kosovo anunciavam-se iminentes. A guerra ia explodir, em breve, ali ao lado. Os aviões iriam sobrevoar a Hungria, que era candidata a integrar a organização. Orbán mostrava-se tenso, deixando clara a sua preocupação pelas populações de origem húngara da Vojvodina, uma região da Sérvia dotada de alguma autonomia. Quando reagi, politicamente, ao conceito de "futuras populações NATO", que o primeiro-ministro utilizou para caraterizar essas pessoas e a obrigatoriedade da sua proteção prioritária, pareceu-me ver acentuar-se o olhar duro e fechado que mostrou durante todo esse encontro. Não esqueci mais esse olhar.

Sabia-se que as relações entre o presidente Göncz e Orbán não eram nada fáceis, essencialmente por razões de política interna húngara, mas, igualmente, por diferenças notórias de personalidade e de história política.

Por contraste com Orbán, Göncz era uma figura suave, um homem cheio de bom senso, com uma vida difícil nos tempos comunistas, da qual, contudo, falava com a superioridade de quem já colocara uma distância entre os traumas e o presente, olhando esse passado apenas na linha do futuro do seu país. Resistente na II Guerra Mundial, havia estado preso durante seis anos, depois da invasão soviética de 1956. Homem de cultura, Göncz seduziu Jorge Sampaio, com quem falou longamente e estabeleceu uma relação pessoal fácil e calorosa.

A certa altura, o presidente húngaro voltou-se para mim e inquiriu:

- Está a ver aquela luz amarela, lá ao fundo, do outro lado do rio?

Ao meu assentimento, acrescentou, num tom algo que me pareceu sombrio e triste:

- Era uma prisão. Uma das piores de Budapeste. Estive lá alguns anos. Foram tempos muito duros. Espero que não voltem, nunca mais. A Europa tem de servir para isso. O seu governo tem de ajudar-nos.

Depois da conversa com Orbán, e de ter ouvido outros interlocutores húngaros, percebemos bem o que significava esse recado.

A Hungria, que entretanto entrou para a União Europeia. Göncz deixou a presidência há muito e morreu em 2015. Viktor Órban é, de novo, primeiro-ministro e o que se tem passado nos últimos anos na Hungria, em matéria de abusos que infringem as liberdades fundamentais, as regras do Estado de direito e o respeito pela separação de poderes, envergonha a Europa. Orbán, como ainda hoje se observou no Parlamento Europeu, continua a fazer caminhar o seu país para uma "democratura".

Felizmente para ele, tem assessores, até portugueses, à altura do seu prestígio.

terça-feira, abril 11, 2017

A zurrapa


Ontem, durante uma palestra que proferi no Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, referi um episódio diplomático ocorrido há duas décadas.
Por essa altura, defrontavam-nos com o facto da África do Sul produzir uma espécie de "vinho do Porto", que comercializava para os países vizinhos. No quadro da União Europeia, Portugal procurava proteger aquela sua denominação de origem e fazer pressão para que os sul-africanos descontinuassem a designação de "Porto" associada a esse vinho, conformando-se às regras internacionais. Por tática negocial, a Comissão Europeia propunha um "phasing-out" progressivo, com um certo calendário. Eu defendia uma aceleração desse periodo, que entendia mais consonante com os interesses dos nossos produtores e exportadores. Um dia, a questão subiu ao Conselho de Assuntos Gerais, como então se chamava a reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros. Portugal estava nela representada por Jaime Gama, acompanhado por mim. Expliquei ao ministro a política que, sobre o assunto, tinha vindo a seguir nos meses anteriores, no tratamento do assunto.
Sem pôr em causa essa orientação, mas talvez pela importância conjuntural de algum outro dossiê bilateral nosso com a RAS que eu desconhecia, observei que Jaime Gama se mostrava algo contemporizador face à posição sul-africana de calendário, com o qual, aliás, a Comissão concordava e que eu teimava em contestar.
Foi então que lhe ouvi este singular argumento: "Não é de todo mau que os sul-africanos e os seus vizinhos se habituem a beber essa "zurrapa", como você lhe chama. É que isso indu-los, a preços baixos, ao consumo de vinhos generosos, o que não deixa de ser um bom princípio. Assim, quando um dia vierem a ter o ensejo de provar o verdadeiro Vinho do Porto, eles logo perceberão a imensa diferença de qualidade com aquilo a que se tinham habituado, aceitando talvez pagar o verdadeiro Porto a outro preço...".
não me recordo como o assunto terminou, nem sei do eventual sucesso da pressão comunitária no quadro da Organização Mundial do Comércio, mas o argumento de Gama não deixava de ter algum sentido. E graça.

segunda-feira, setembro 03, 2012

O intruso

As reuniões semanais de secretários de Estado são exercícios de análise dos projetos legislativos, antes deles serem submetidos ao Conselho de ministros. Podem ser reuniões muito aborrecidas, quando as temáticas são extremamente técnicas e desinteressantes. Mas é um trabalho importante de "desbaste" da produção legislativa, onde o representante de cada Ministério procura avaliar da compatibilidade do projecto com os interesses sectoriais da sua área. Grande parte dessa legislação, desde que mereça acordo a nível dos secretários de Estado, só "sobe" aos ministros para simples "luz verde", sem debate nem leitura. Quando, os secretários de Estado não conseguem chegar a um acordo, e se o Ministério proponente não retirar o dilploma, os ministros, em Conselho, são chamados a "trancher".

Recordo-me bem que, logo nos primeiros meses de governo, tive uma "pega" homérica com um colega de um determinado ministério, por via das competências a que aquele departamento se arrogava, em matéria das instruções diretas a dar à nossa representação junto da União Europeia, em Bruxelas, as quais, na minha opinião, colocavam em causa a natural preeminência do MNE nesse domínio. O assunto não mereceu consenso ao nosso nível, pelo que teve de subir a Conselho de ministros, onde, com alguma dificuldade, o chefe do governo conseguiu arbitrar uma solução. Satisfatória para a posição que eu tinha sustentado, diga-se.

Esse era, e continua a ser, um tempo a que cada governo sempre se dedica com zeloso fervor inicial - o período de produção das "Leis orgânicas" dos ministérios. Através delas, alguns departamentos procuram ganhar faixas de competências que, no passado, pertenciam a outros. No que importava ao MNE, isso era feito através da inclusão de hábeis, e às vezes ambíguas, alíneas nas lista das tarefas que que cada ministério atribuía aos seus "gabinetes de relações internacionais" ou dos "assuntos europeus". Por essa razão, cabia-me passar "a pente fino" todas as propostas de Leis orgânicas de todos os departamentos do governo. Aqui está uma matéria em que a história é sempre a mesma, qualquer que seja a coloração política dos executivos...

Naquelas infindáveis reuniões dos secretários de Estado, numa sala austera da rua Gomes Teixeira, havia por vezes alguns momentos divertidos. A grande figura desses instantes era o secretário de Estado da Justiça, José Matos Fernandes, que era conhecido por fazer um minucioso escrutínio à produção legislativa, quer do ponto de vista substantivo, quer no tocante à correção linguística, uma tarefa a que eu e o Guilherme de Oliveira Martins muitas vezes nos associávamos, com sádico prazer, para desespero de alguns colegas. É que, de certos departamentos técnicos, chegavam, por vezes, projetos de legislação num português abaixo de qualquer classificação. Matos Fernandes, que era um pouco mais velho que todos nós, fazia então observações com uma imensa graça, dando verdadeiras lições de Direito, às vezes ilustradas com histórias divertidas. Confesso que essas suas intervenções fazem parte do pouco de que tenho memória positiva dessas longas horas, nos dias em que "ia a conselho", com as pastas a chegarem às nossas casas, muitas vezes, bem tarde na noite da véspera, obrigando a leitura de diplomas até de madrugada. Não sei se as coisas ainda hoje assim se passam.

Um dia, a poucos meses da minha programa saída do governo, para regressar à "carreira", já quase no termo dos quase cinco anos e meio em que exerci aquelas funções, olhei para o outro lado da mesa e deparei com alguém que não conhecia. Os governos têm umas escassas dezenas de pessoas e, naturalmente, todos se conhecem uns aos outros, melhor ou pior. Aquela cara, porém, não me dizia rigorosamente nada. É claro que tinha havido uma recente remodelação e era natural que fosse um novo secretário de Estado. Mas - c'os diabos! -, embora eu não tivesse estado na posse, tinha visto a fotografia dos novos secretários de Estado e eu ia jurar que aquela pessoa não entrara no governo. 

O homem estava silencioso e olhava em volta, como se observasse um ambiente que lhe era estranho. Tomava algumas notas, mas não pedia a palavra. Ao meu lado esquerdo, estava o Luis Parreirão, a quem perguntei se sabia de quem se tratava. Disse que não fazia a mínima ideia e que também achara estranha a personagem. Ele também não tinha estado presente na tomada de posse. E o mesmo acontecia com o colega que estava à esquerda do Luis Parreirão. Todos nos tínhamos "baldado" da cerimónia em Belém. Pela posição na mesa, tentámos perceber a que ministério pertenceria. Mas, por uma qualquer razão, não chegámos a nenhuma conclusão.

"Será um jornalista?", lancei, baixo, para o Luís Parreirão, que arregalou os olhos com a ideia. "Às tantas!..." Sabíamos que já tinha havido falsos "deputados" do "Tal & Qual" no plenário da Assembleia da República e podia dar-se o caso de se tratar de um "golpe" similiar, desta vez na reunião de secretários de Estado. Seria preciso ter muita lata, mas tudo é possível.

Eu estava cada vez mais intrigado. À minha direita sentava-se o Guilherme de Oliveira Martins, que dirigia a reunião, como ministro da Presidência. Discretamente, perguntei-lhe se tinha alguma ideia de quem seria o fabiano sentado do outro lado da mesa, que nenhum de nós identificava. O Guilherme sabe sempre tudo! E, com a maior das calmas, disse-me o nome do homem, explicando tratar-se de um novo recruta, num determinado ministério. E, com um sorriso, acrescentou, já crítico: "se você tivesse ido à tomada de posse dos novos membros do governo, tinha-o conhecido..." É que o Guilherme tinha também tomado posse, como ministro da Presidência. E não nos tinha visto por lá...

sexta-feira, agosto 17, 2012

Sinai

Muito se tem falado do deserto do Sinai, por estes dias. Zona de alto risco em matéria de segurança, atravessá-lo passou a ser uma aventura insensata e, ao que a imprensa reporta, já quase impossível para viaturas civis. Mas não era assim, até há pouco tempo. A história que aqui conto, tem já uns bons anos.

O assassinato do primeiro-ministro israelita, Itzak Rabin, havia interrompido subitamente a visita oficial que o então presidente português, Mário Soares, fazia a Gaza, que se sucedia a uma estada em Israel. Nessa manhã de 6 de novembro de 1995, saíramos da Faixa de Gaza para o Egito, pela "pesada" fronteira de Rafah, onde Israel mantinha então um controlo, politicamente muito sensível para os palestinianos. Um avião posto à disposição pelo governo egípcio iria buscar-nos à cidade de El-Arish, umas dezenas de quilómetros adiante, onde era suposto almoçarmos, num hotel de praia sobre o Mediterrânico. Mário Soares, insistiu em tomar um banho e alguns o acompanhámos. Ainda hoje guardo umas belas fotos do Rui Ochoa, com Mário Soares, Alfredo Duarte Costa e eu, vestidos com uns longos calções emprestados.

À época, era nosso embaixador no Cairo, Eduardo Nunes de Carvalho, uma simpática figura da nossa "carreira", onde é crismado pelos amigos com o "nickname" de "Iá", pessoa por quem tenho uma grande estima. É um homem de sorriso permanente, de uma agudeza fina de espírito, muito culto e educado, uma das boas "cabeças" que serviu a nossa diplomacia. Tinha, porém, como todo o ministério sempre soube, uma relação algo desligada com as coisas e, em especial, com o tempo, com distrações e atrasos que se tornaram lendários. Nessa manhã, tinha vindo ter conosco, de carro, do Cairo, depois de uma jornada de várias horas, através do Sinai. E chegou a tempo do almoço, depois do nosso banho. 

Na nossa viagem de avião para a capital egípcia, o embaixador acompanhou-nos, naturalmente. O seu carro, com o motorista, regressaria pelo mesmo caminho, atravessando o deserto do Sinai. Chegámos ao Cairo a meio da tarde. Mário Soares, a senhora e o ajudante de campo foram para uma "guest house", posta à sua disposição pelo presidente egípcio. O resto da delegação, de que faziam parte deputados e algumas figuras da vida pública portuguesa, foi instalar-se num hotel. Depois de acomodar o presidente, o embaixador juntou-se-nos e por ali foi ficando, à conversa.

A certo ponto, vi que Nunes de Carvalho era chamado a um telefone, na esplanada onde estávamos. Era Mário Soares. Estaria "farto" do isolamento da "guest house" e queria juntar-se-nos, para jantar. Sugeria ir ter conosco ao hotel e que, ainda antes do jantar, todo o grupo português fosse conhecer a residência oficial, situada umas centenas de metros adiante, um andar bem simpático, com uma varanda sobre o Nilo, na ilha de Zamalek.

Notei que o embaixador começou a titubear na conversa, resistindo à ideia, dizendo que já não havia muito tempo, explicando que tinha a sua mulher fora do Cairo, para além de outros pretextos de ocasião, que me pareceram pouco convincentes. Ora a sua casa era a residência oficial do Estado e nada mais natural seria que acolher, ainda que para uma simples bebida antes do jantar, o chefe do Estado e os seus convidados. A minha estranheza era tanto maior quanto Nunes de Carvalho era um "homem com mundo", que gostava de receber e recebia bem, como eu próprio tivera oportunidade de testemunhar noutros lugares.

A conversa entre o embaixador e o presidente, com o último a fazer aquilo que eu presumia ser uma contínua pressão para a aceitação da ideia que tivera, foi-se prolongando, com Nunes de Carvalho, entre risadas nervosas e frases incompletas, tentando dissuadir Mário Soares. Até que, finalmente, o ouvi retorquir: "Ó senhor presidente! É que temos um problema, que nos impede, em absoluto, de ir lá a casa". Fiquei curioso. E, depois de mais uma gargalhada, sempre muito mais de nervos do que de graça, gaguejando de embaraço, esclareceu: "É que eu - desculpe ter de dizer-lhe! - deixei as chaves de casa no meu carro, que está a atravessar o deserto do Sinai, e que só chega daqui a umas horas..."

A verdade é que o embaixador, não sonhando com a hipótese da sua residência ter de ser "mobilizada" na ocasião, e na ausência da sua família, havia dispensado o pessoal. Sendo já tarde e, para mais, estando sem motorista, num tempo em que pouca gente tinha telemóvel, seria impossível andar à procura, pelo dédalo do Cairo, das segundas chaves da casa. E lá jantámos nós, com o nosso embaixador como convidado, no antigo Gezirah Palace, hoje um Marriott, construído para a inauguração do canal do Suez, em 1869, um evento que, à época, foi testemunhado localmente por um viajante português que muita graça achava aos episódios da diplomacia que serviu - José Maria Eça de Queiroz.

quinta-feira, agosto 16, 2012

Ciganos

A questão do tratamento dado aos ciganos em França está na ordem do dia. Hoje como ontem. O assunto já foi aqui abordado neste texto, escrito precisamente há dois anos, pelo que não tenho mais a dizer. A não ser contar agora uma pequena história.

Lembro-me que era um fim de semana, aí por 1997. Eu estava parado, a guiar o meu carro, no semáforo da rua Barata Salgueiro com a avenida da Liberdade. Aproximou-se uma mulher cigana, de saias longas, com uma criança desgrenhada ao colo, de mão estendida. Abri o vidro para lhe dar alguma coisa e ouvi da sua boca uma expressão que, no início não entendi, mas que ela repetiu: "Bósnia-Herzegovina".

Eu era responsável pelos Assuntos europeus, no governo da altura. Mas - devo confessar, com toda a honestidade e sem esconder esta fragilidade - estava muito longe de supor que, naquela época, as migrações ciganas do centro da Europa tivessem já chegado às ruas de Lisboa. O encontro com aquela pobre mulher, saída de tão longe para tentar atenuar a sua pobreza em Portugal, foi, para mim, uma imensa surpresa, que nunca mais me saiu da cabeça. Desde logo, aprendi que estar no governo nem sempre é sinónimo de estar atento a todas as coisas.  

terça-feira, julho 31, 2012

O convidado surpresa

O nosso embaixador havia-me dado me conta de que a sugestão que eu fizera fora vista com alguma perplexidade. Estava numa visita oficial ao Chile, a convite do respetivo governo, naquele final de 2000. No belo edifício que acolhe o Ministério das relações exteriores, o meu homólogo oferecia-me um simpático almoço. Com antecedência, perguntaram-me se eu queria convidar alguém, em especial. Eu disse que sim e indiquei um diplomata chileno, de quem era amigo pessoal.

A questão, para quem a entendesse como tal, é que esse diplomata era um antigo militar do exército de Pinochet, que havia acedido à diplomacia por essa via. O seu percurso na carreira diplomática chilena, no lento regresso da democracia ao país, embora com Pinochet ainda vivo, não estaria a ser muito fácil. Por essa razão, a minha sugestão, se bem que acatada com prontidão, terá sido vista com uma certa estranheza.

Para mim, tudo era muito simples: tratava-se de um amigo, com quem coincidira num posto no estrangeiro e com o qual, ao longo desses anos e nos posteriores contactos, nunca perdera um segundo a discutir política - talvez porque ambos sabíamos que, dadas as nossas opostas posições de partida, esse era, como foi, o segredo para deixar frutificar a nossa amizade.

Na minha intervenção durante o almoço, cuidei em saudar e agradecer a presença do meu amigo. A certo passo, veio à baila da conversa o meu programa de visita em Santiago. Na parte oficial, entre vários outros pontos, incluia-se uma deslocação ao palácio de La Moneda, para apresentar cumprimentos ao presidente da República em exercício. Ao falar-se da parte não oficial, dei conta de, nessa própria manhã, ter ido colocar um ramo de cravos vermelhos na campa de Salvador Allende.

Nesse instante, alguns olhares na mesa cruzaram-se, como que interrogando-se sobre o eventual antagonismo entre o simbolismo dessa homenagem e a escolha que eu fizera como meu convidado pessoal. Estou certo que este último, conhecendo-me bem, foi, seguramente, o menos surpreendido de todos os convivas, em face daquela minha revelação.  

quarta-feira, julho 25, 2012

Krivine

"Sabes quem é aquele tipo, ali na mesa do canto? É o Alain Krivine". A revelação do meu amigo, feita no Café de Flore, há algumas semanas, trouxe-me à memória um outro tempo.

As tardes no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, respondendo aos deputados, durante a presidência portuguesa da União Europeia de 2000, tinham alguma graça. O secretariado-geral do Conselho preparava-nos umas respostas em "langue de bois", para as perguntas enviadas por escrito pelos deputados, com antecedência. A "emoção" estava, assim, nas réplicas a que os parlamentares perguntadores têm direito, feitas de improviso, muito mais "livres" e, às vezes, fugindo claramente  ao tema da pergunta. Devo confessar que me dava um certo gozo exercitar a minha criatividade discursiva nas respostas a essa segunda parte de cada intervenção. Quase tanto como olhar, de viés, para as caras ansiosas dos funcionários do Conselho, que tão ciosamente haviam preparado as respostas "by the book" e que viviam esses momentos de liberdade do representante da presidência com clara expetativa e burocrática angústia.

Entre os deputados eleitos para o PE houve e há figuras gradas da política passada de vários países, muito ministros e até primeiros ministros. Mas aqueles que me "saíram em rifa", nesse semestre de 2000, foram quase sempre obscuros parlamentares, com nomes algumas vezes muito estranhos, de sonoridades gregas, eslavas ou nórdicas. É que esse tempo é utilizado, quase sempre, para afirmação da devoção desses deputados a causas muito específicas, o que lhes permite uma saliência mediática de que os seus colegas mais conhecidos já não necessitam.

Numa dessas longas tardes de Estrasburgo, ouço o presidente do parlamento anunciar: "Dou a palavra ao deputado Alain Krivine". Acordei do marasmo com aquela menção e, de imediato, procurei, no imenso areópago quase vazio, colocar um retrato no nome acabado de anunciar. O nome de Alain Krivine dizia-me alguma coisa. Figura histórica do trotskismo francês, havia sido candidato à presidência da República, não me passando a mim pela cabeça que fosse então deputado europeu.

Anos antes, no início da década de 70, numa visita a Paris, eu fora arrastado por uns amigos para assistir a um comício da "Ligue Comuniste Revolutionnaire", que teve lugar na "Mutualité", perto da Sorbonne. A LCR era um grupo trotskista com certa expressão na esquerda francesa e, embora as teorias de Trotsky pouco me dissessem, achei graça assistir a um comício dessa extrema-esquerda - num tempo em que, em Portugal, apenas a União Nacional e a sua sucessora Ação Nacional Popular reuniam em público sem medo de vigilância policial.

A pergunta que Krivine fez à presidência portuguesa foi, como era de esperar, violenta e agressiva, sobre uma temática que já não recordo. Devo confessar que tenho ideia de que a  minha resposta foi mais "soft", nostalgicamente atenuada pela memória de um passado no qual, embora de forma menos radical, eu também acreditava em que os "amanhãs" poderiam vir a cantar. Depois, foi o que se viu...

Naquele final de tarde no Flore, perguntei ao Francis, que vagueava patronalmente entre as mesas, o que é que Alain Krivine estava a beber. Era um Chablis. Pedi outro para mim. Afinal, como dizia Voltaire, "les beaux esprits se rencontrent".

terça-feira, julho 17, 2012

Governantes e governantes

Um dia, bem à minha custa, aprendi que, em Portugal, há dois tipos de membros do governo: os que já foram deputados e os que, emergindo da sociedade civil, sendo ou não militantes de partidos, nunca antes se sentaram nas cadeiras parlamentares. E há um mundo de diferenças entre eles.

Embora o não digam alto, os partidos políticos veem com maus olhos a escolha, pelos primeiros-ministros, de personalidades oriundas da "sociedade civil" que, por virtude de alguma especialização temática, são alcandoradas a postos governamentais.

Pode haver alguma razão nesta atitude: quem se dedica à política tem a legítima expetativa de, subindo o seu partido ao poder, poder ter direito a ocupar lugares no executivo. Ver uns "paraquedistas" ultrapassarem-nos, não deve agradar a quem se considera ungido pelo voto popular e, por essa razão, tem muito mais legitimidade para governar. Só que os partidos não desconhecem que a inclusão desse tipo de personalidades acaba por credibilizar os próprios governos, porque lhes garante uma componente técnica valiosa, com reflexos na sua imagem junto da opinião pública. No outro prato da balança, verifica-se que a falta de "calo" político faz com que, muitas vezes, essas figuras de perfil demasiado técnico, quando sujeitas às tensões da vida política e, muito em particular, às exigências da vida parlamentar, possam derrapar. Foi o que me aconteceu, um dia, em 1996.

Eu tinha ido à Assembleia da República para defender já não sei bem o quê, na minha qualidade de secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Ao meu lado, na bancada do governo, estava o então secretário de Estado dos Assuntos parlamentares, António Costa.

Fiz a apresentação que tinha preparado e, como é de regra, preparei-me para a chuva de perguntas que se seguiria. Fui tomando notas, para lhes responder em conjunto, no final. 

Uma das intervenções, de um deputado da oposição, tinha apenas uma questão irrelevante, que era um evidente pretexto para um discurso doutrinário de oposição geral, e a meu ver gratuita, à política europeia do governo. Logo que acabou de falar, saiu da sala, sem sequer aguardar pela minha resposta. Fiquei furioso.

No meu período de respostas, deixei para o fim a resposta a esse deputado, que tinha muito baixa estatura. Fazendo-me surpreendido, disse: "Relativamente à questão colocada pelo senhor deputado Fulano - que eu não consigo vislumbrar atrás da sua bancada... - devo dizer que fiquei perplexo, porque não me ficou claro o que pretendia com a sua intervenção. Por isso, e porque considero que não há nada de concreto a que eu possa responder, talvez seja legítimo concluir que o que disse se insere na preparação de curriculum para aquilo que consta serem as suas ambições a futuro líder parlamentar do seu partido".

Mal eu tinha acabado a frase e logo o António Costa, ao meu lado, me disse, alarmado: "No que você se foi meter! Agora, isto vai ser bonito". E foi. Ouvi logo um bruá vindo do lado do grupo parlamentar do partido do tal orador, um evidente mal-estar nas caras dos deputados do partido que apoiava o governo e, de imediato, um pedido urgente de palavra de um deputado ao presidente da Assembleia para "defesa da honra da bancada".

Fui "desancado" pelo deputado interpelante, que considerou que só podia levar à conta da minha "falta de experiência política" o que acabara de passar-se e que exigia um pedido de desculpas da minha parte. O António Costa perguntou-me o que eu queria fazer. Respondi-lhe que desculpa não pedia, porque considerava que a saída da sala do deputado que eu criticara era um gesto deselegante e que a minha reação fora motivada por isso mesmo. Com a sua maior experiência, o António Costa levantou-se, tomou a palavra e deu, com grande habilidade, a volta à situação, deitando "água na fervura", para meu grande sossego.

Na realidade, eu cometera uma grande imprudência e fora vítima do meu estatuto. A imprudência foi, desde logo, ter-me imiscuído na vida interna de um outro partido, o que fiquei a saber não ser aceitável pelas regras parlamentares consuetudinárias. Mas também aprendi que o facto de nunca antes ter sido deputado me criava uma posição "diminuída" perante os eleitos presentes na sala. Eu não era "um deles", pelo que estava longe de poder ter um estatuto para poder enveredar por graçolas que, se porventura fossem ditas por antigos colegas, teriam sido muito melhor toleradas.

segunda-feira, julho 09, 2012

O poder dos intérpretes

É uma rua "paralela" à Étoile: rue de Presbourg. Passei por lá há pouco. O tempo de um semáforo deu-me oportunidade de atentar na explicação de ser o antigo nome de Bratislava, hoje capital da Eslováquia.

Fui a Bratislava, pela primeira vez, como turista, ainda no tempo da Checoslováquia. Em termos de beleza, não se compara com Praga, sendo embora uma cidade bastante agradável para viver, ao que me dizem. Um choque de modernidade provocado no tempo do "socialismo real" construiu-lhe, no centro, uma sinistra ponte sobre o Danúbio, que rasgou o coração histórico da cidade, arrasando um bairro judaico, destruindo uma zona que deve ter tido uma apreciável unidade arquitetónica. Agora que ando pela UNESCO, refletindo nos atentados ao património, tenho pensado nisso com alguma frequência.

Desde então, fui várias vezes a Bratislava, em especial quando vivi em Viena. Em fins de semana, ia por lá à ópera, para simples passeio ou para a feira de antiguidades. E tenho hoje por lá amigos eslovacos.

Um dia, creio que 1997, recebi em Lisboa o presidente do parlamento eslovaco, Ivan Gašparovič. O país era então candidato à União Europeia, mas o governo autoritário eslovaco, chefiado por Vladimir Mečiar, era execrado pelos países comunitários, sensíveis aos justos protestos da oposição sobre as limitações colocadas à liberdade da comunicação social, às inaceitáveis pressões sobre a vida política e aos métodos brutais da sua polícia. 

No encontro que tive com o meu interlocutor eslovaco, para além de expressar a simpatia de princípio de Portugal pelas aspirações europeias do país, repeti, com a necessária delicadeza de termos que a ocasião e o seu elevado estatuto impunham, as preocupações que o estado de coisas que se vivia no país a todos criavam - e neste "todos" incluía outros países candidatos à adesão, que viam o seu processo sofrer atrasos pela singularidade negativa do exemplo eslovaco.

A conversa foi feita por intermédio de um intérprete eslovaco, que insistiu em que eu falasse português. À medida que ia ouvindo a versão que lhe era dada das minhas palavras, notei que o meu interlocutor ia ficando nervoso, crispado e muito tenso. O que eu dizia, porém, bem como a forma que eu utilizava para o dizer, não justificava minimamente esse estado de espírito. Na resposta que deu à minha intervenção, contestou, com alguma rudeza, o que acabara de ouvir. E, de forma um tanto inopinada, apressou o fim da reunião. Fiquei algo perplexo, mas não liguei muito ao assunto.

Dias mais tarde, ao nosso embaixador em Viena, acreditado em Bratislava, chegou um protesto informal das autoridades eslovacas, reclamando pelo modo, tido por menos cordial, como eu tinha interpelado a segunda figura da hierarquia do país. Lembro-me de ter reagido e, já não sei bem como, fiz chegar a minha maior estranheza pela ocorrência ao meu contraparte no governo eslovaco, que conhecera brevemente numa reunião em Bruxelas. Se há tradição que a diplomacia portuguesa tem é a preservação do diálogo e uma constante prática de cordialidade, mesmo em momentos mais tensos, onde a firmeza se impõe. Eu sabia muito bem o que tinha dito, e que diria de novo, e se havia alguém que era culpado de qualquer "misunderstanding" essa pessoa era o intérprete eslovaco. Mas como me era possível provar isto?

Pouco tempo depois, percebi que algo tinha mudado: recebi um convite oficial para me deslocar à Eslováquia. Era uma visita com algum risco, porque não se podia permitir que fosse aproveitada pelo regime como traduzindo um gesto que indiciasse qualquer fragilização da atitude crítica que prevalecia na Europa sobre o comportamento do regime. Insisti, por isso, em encontrar os principais partidos políticos de oposição, tendo visitado a sede de um deles e recebido dois outros responsáveis oposicionistas no hotel. Esta é uma prática que nunca agrada aos nossos anfitriões oficiais, mas coloquei-a como condição sine qua non para a realização da visita. E, para evitar declarações isoladas à imprensa, proferi uma conferência sobre o processo de integração num instituto dedicado aos estudos europeus, com uma surpreendente enchente e um animado debate.

Apenas um pormenor mais. No programa da visita, pedi que fosse incluído um encontro com o interlocutor que encontrara em Lisboa, para lhe apresentar cumprimentos. Não tinha disponibilidade, como eu imaginava. Ivan Gašparovič é hoje presidente da República da Eslováquia.

Várias vezes me tenho interrogado sobre a quantidade de confusões políticas que os intérpretes já devem ter provocado por esse mundo fora.

sábado, julho 07, 2012

Imprensa de referência

Vi, há pouco, na televisão, um velho amigo de Portugal e dos portugueses, Xanana Gusmão, por ocasião de um ato eleitoral em Timor-Leste.

Recordei-me que, outubro de 1999, Xanana fez uma triunfal visita a Portugal. Com o país ainda a viver a ressaca da emoção que o mobilizara pela causa timorense, a chegada do líder histórico da Fretilin provocou uma onda de grande mobilização. A simpatia e a genuinidade de Xanana Gusmão fizeram o resto.

Nessa ocasião, foi-me pedido que, em representação do governo, me fosse despedir dele ao aeroporto militar de Figo Maduro, de onde partiria para um qualquer destino europeu, num Falcon na nossa Força Aérea. Vi que estava exausto, embora feliz, com o fraternal acolhimento que Portugal lhe proporcionara, em que pudera testemunhar a profunda sensibilização do povo português para com a questão timorense.

Saímos a pé do edifício da base aérea para o avião, situado a umas escassas centenas de metros. Ao longe, dei-me conta que um grupo de jornalistas, colocados junto a uma barreira, fazia sinais e gritava "Xanana", desejosos de poder obter as últimas palavras do visitante.

O avião estava já atrasado, o "slot" para a descolagem podia perder-se, como nos tinha dito o comandante da base. A primeira reação de Xanana foi dizer: "Vou já para o avião". Olhei os jornalistas e, apontando-os ao líder timorense, fui de opinião contrária: "Eu acho que devia dar-lhes umas curtas palavras. A imprensa portuguesa tem sido fantástica consigo". Xanana hesitou um segundo, mas acabou por seguir a minha sugestão, com os militares das Força Aérea, junto dos quais eu ficara, pouco contentes com o meu alvitre.

No dia seguinte, um bem informado jornal escrevia mais ou menos isto: "Contrariando abertamente a vontade do secretário de Estado português que o acompanhava, que procurou, sem êxito, dissuadi-lo de ir falar com os jornalistas, Xanana fez questão de prestar declarações à imprensa portuguesa".

Enfim, é o que se chama imprensa "de referência".

sexta-feira, julho 06, 2012

Os tempos e os poderes

Não há poder sem simbologia. E alguns sinais são, eles mesmos, a própria e deliberada expressão desse mesmo poder. 

Há uns anos, em fins de julho de 1999, teve lugar em Serajevo, na Bósnia-Herzegovina, a reunião de lançamento do Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu. Com as delegações instaladas, o presidente finlandês, Martti Ahtisaari, que dirigia a sessão, iniciava o seu discurso de introdução quando a sala foi surpreendida pela entrada isolada do presidente Bill Clinton. O líder americano dirigia-se, pausadamente, para o lugar que, na grande mesa quadrada, estava destinado aos EUA. Pelo caminho, foi-se entretendo a parar junto de alguns dentre os 50 presidentes e chefes de governos, saudando-os, deixando-lhes uma breve palavra e, com a acumulação desses gestos, foi provocando um movimento de imparável agitação, que concentrou as atenções coletivas. A face de Ahtisaari mostrava um evidente e compreensível desagrado com a estudada coreografia de Clinton, a ponto de se ver obrigado a suspender o seu discurso, até que o presidente americano finalmente sossegasse na sua cadeira. Ao nosso lado, o presidente francês, Jacques Chirac, assistia à cena e rumorava onomatopeias de óbvio incómodo pelo comportamento de alguém que habilmente "roubara a cena" aos poderes europeus presentes. 

Lembrei-me disto, esta manhã, durante a reunião dos "Amigos do Povo Sírio", que decorreu aqui em Paris. O presidente François Hollande, que abriu a reunião, iniciara já o seu discurso perante delegações de 102 países quando surgiu, mas neste caso num passo mais natural e sem quaisquer pausas, uma figura que se dirigiu ao centro de uma sala onde já não havia ninguém de pé, salvo o chefe de Estado francês, no seu podium. O discurso não foi interrompido, mas todos os olhares divergiram, por instantes, para a secretária de Estado Hillary Clinton, que logo se sentou, sem gestos dilatórios. A entrada da representante dos EUA ficou bem registada. E gravada ficou também, no subconsciente coletivo, esta evidente coreografia temporal dos poderes de facto neste mundo.

terça-feira, julho 03, 2012

A palavra

Portugal esteve hoje presente naquele que é o "exame" anual a que a sua economia é sujeita no âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), uma instituição multilateral sedeada em Paris, que acolhe 34 Estados democráticos e economias de mercado. Portugal foi um dos países fundadores da OCDE, em 1948, embora o seu regime estivesse então longe de ser democrático, mas a realpolitik da "guerra fria" a isso ajudou. Pode dizer-se, com algum rigor, que foi no âmbito da OCDE que algumas elites político-diplomáticas portugueses iniciaram a sua aculturação àquilo que viria, muitos anos mais tarde, a abrir o nosso caminho a uma integração plena nas instituições europeias.

Por alguns anos, estive ligado à representação governamental portuguesa nas reuniões da OCDE. Foi numa dessas presenças que aconteceu a historieta seguinte.

Naquele mês de abril de 1998, Portugal presidia à reunião ministerial anual da organização. No primeiro dia, o ministro das Finanças, Sousa Franco, dirigira a sessão plenária. Eu ainda lhe "dei uma mão" na respetiva sessão, chegado a meio do dia de Estrasburgo, onde estivera retido por uma qualquer razão.

No dia seguinte, coube a Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, para além de conduzir a sessão, orientar o almoço de trabalho, o qual é sempre é feito em torno de um determinado tema. Dessa vez, tratava-se do AMI (Acordo Multilateral de Investimentos), uma questão muito controversa, tão divisiva que o acordo nunca chegou a passar do papel. Sobre o assunto, eu havia mantido uma polémica, nas páginas do "Diário Económico", com o saudoso deputado do PCP, João Amaral. Creio que nunca lhe cheguei a dizer que vim a concluir que, afinal, era ele, e não eu, quem tinha razão sobre o assunto.

O ministro português dos Negócios Estrangeiros assumiu o seu lugar na presidência dos trabalhos, no topo da grande mesa quadrada, tendo ao seu lado o secretário-geral da organização e, à sua frente, a sofrível refeição que os integrantes têm direito a digerir durante essa hora e meia de exercício declaratório. Como me competia, como secretário de Estado, sentei-me na cadeira da nossa delegação, por detrás da placa onde se lia o nome de Portugal. Claro está que, com o ministro português a assumir a presidência da sessão, eu me preparei para um almoço bem calmo.

Jaime Gama abriu a sessão, fazendo uma intervenção inicial, aí com uns cinco minutos, com que introduziu o debate. Conhecendo antecipadamente o texto, devo confessar que quase me não dei ao cuidado de atentar no que dizia o meu ministro. Só quando, em certo momento, "ouvi" um silêncio, é que percebi que terminara.

O presidente português da sessão convidou então os representantes dos Estados membros da OCDE a intervirem sobre o tema. Como muitas vezes acontece neste tipo de reuniões, nomeadamente em questões muito polémicas, há uma certa inércia em "abrir as hostilidades", com uma retração em fazer a primeira intervenção. E foi isso que aconteceu: ninguém se inscreveu para falar - o que é feito colocando, ao alto, a placa com o nome do respetivo país. Jaime Gama insistiu e voltou a anunciar que estavam abertas as inscrições. O silêncio manteve-se.

Foi então que o presidente da sessão olhou para mim, sentado num lugar bem distante do seu e disse, com a maior naturalidade do mundo: "Dou a palavra a Portugal". 

Julguei ter ouvido mal, mas, ao detetar um leve sorriso na cara de Jaime Gama, percebi que ele me "passara a bola", como forma de resolver o súbito impasse. E, um tanto atrapalhado, lá avancei com um: "Thank you, mr. chairman. Mr. chairman, the Portuguese delegation considers that..." - e já nem sei bem o que disse, durante três ou quatro minutos, em que procurei debitar a doutrina que à época tínhamos sobre o AMI. No final da minha improvisada intervenção, já se viam diversas placas com nomes de países colocadas na vertical. E o debate lá avançou.

À saída, comentei para o ministro: "Pregou-me uma bela partida...". Jaime Gama, irónico, retorquiu: "Mas eu achei que você tinha tinha pedido a palavra...!"

sábado, junho 23, 2012

A política interna e a Europa

Acaba de ser anunciado que, entre os dois maiores partidos políticos portugueses, não foi possível chegar a um consenso sobre temáticas europeias, com vista às grandes decisões que pode vir a ser necessário tomar, em nome do país, nesse plano, nos próximos dias. Não conheço o assunto em pormenor, mas posso imaginar a imensa complexidade desse esforço comum.

No passado, estive ligado a exercícios similares, alguns com êxito, outros com desfecho menos feliz. Convém dizer que, nas últimas décadas, as relações entre as duas maiores formações políticas portuguesas - ou melhor, entre os governos e o principal partido da oposição - raramente dispensaram a existência de canais discretos de comunicação, como é próprio dos regimes democráticos com maturidade. Às vezes, as tensões políticas internas tornaram esse diálogo mais difícil e menos constante, mas, que eu saiba, nunca foram quebrados, por completo, tais contactos. E isso tem todo o sentido: há mais país, nomeadamente na ordem internacional, para além da inevitável guerrilha política interna.

Em tempos em que tive algumas responsabilidades governativas nessa área, e por instruções expressas do primeiro-ministro e do ministro dos Negócios Estrangeiros de então, esses canais de comunicação estiveram sempre abertos. Mas a vida política faz-se de altos-e-baixos, como a historieta que vou contar demonstra. 

Um dia, a propósito de uma negociação europeia de grande importância, o primeiro-ministro e o líder da oposição reuniram, acolitados por mim e pela minha "sombra" nesse partido da oposição. Tratava-se de tentar apresentar, a público, uma posição comum, a montante de um Conselho europeu. Isso reforçaria o governo no plano dessa negociação e daria ao principal partido da oposição uma imagem de responsabilidade de Estado, naquele que era então um grande dossiê externo. 

A reunião em S. Bento correu bem. Tínhamo-la preparado antes com algum cuidado e, depois de algum tempo de debate, assentou-se num conjunto de pontos comuns. As questões na agenda europeia eram então relativamente consensuais e os interesses portugueses a defender eram claros. Fiquei encarregado de escrever um projeto do texto que se pretendia divulgar, que teria cerca de duas páginas. Pelo que conhecia das preocupações da oposição, não tinha a menor dúvida de que seria capaz de elaborar um documento suscetível de ser assinado pelos dois lados. Em diplomacia, as palavras, se bem usadas, podem servir, simultaneamente, para destacar as convergências e para esconder, de forma elegante, as inevitáveis divergências. 

Escrevi o texto num avião em que fui, nessa tarde, para Bruxelas, onde tinha uma reunião na manhã do dia seguinte. Chegado ao hotel, enviei-o por fax à pessoa que era minha contraparte na oposição. Cerca da meia-noite, ela confirmou-me, como eu esperava, que, por si, não tinha objeções. Restava passá-lo ao seu "chefe".  No dia seguinte, a meio da manhã, ainda antes do meu regresso a Lisboa, recebi a indicação de que o texto podia merecer o acordo da oposição, "em termos gerais". Alguma experiência alertou-me logo para esta reticência.

Entretanto, pela parte do governo, as coisas avançaram rapidamente. Dois ministros leram o texto, por indicação do primeiro-ministro, e mostraram-se positivos face ao respetivo conteúdo. O chefe do executivo considerava, no entanto, essencial obter a concordância prévia do ministro dos Negócios Estrangeiros, que andava algures pelo mundo. Horas depois, veio também a luz verde deste. Marcou-se um encontro com a oposição, no formato do dia anterior, em S. Bento, para cerca da meia-noite.

Na política interna, durante esse mesmo dia, as coisas haviam estado muito agitadas. Por virtude de um facto político de grande expressão mediática, um membro do governo viu-se envolvido numa imensa polémica, com o pedido da generalidade da oposição para a sua demissão. A tarde, na Assembleia da República, fora um "inferno". As declarações do líder da oposição contra o governo subiam de tom. Os telejornais da noite, que antecederam a reunião em S. Bento, foram palco de tomadas de posição muito fortes, de ambos os lados. A crispação política estava no auge.

Quando cheguei a S. Bento, não tive tempo para falar com o primeiro-ministro, antes da reunião com a oposição. À entrada do edifício, a expressão facial da pessoa que era minha contraparte do outro lado do espelho político não prenunciava nada de bom. Vi que alguma coisa tinha mudado, relativamente ao ambiente do dia anterior.

O líder da oposição também entrou tenso. Sentámo-nos. Começou por dizer que tinha lido o texto, que "genericamente" lhe parecia bem, mas que, depois de ponderar, tinha várias alterações a propor. Mesmo à distância, pude ver que havia, no papel que tinha na mão, uma imensidão de anotações manuscritas. Ia ser bonito...

Na cara do primeiro-ministro, notei uma grande serenidade. E logo perguntou: "Se não quiser, não fazemos texto nenhum. Desta conversa pode resultar um compromisso sobre certos pontos, que não precisa de ser anunciado. Basta-me a sua palavra". Pareceu-me que o líder da oposição deu um suspiro de alívio. E, desde logo, apressou-se a concordar. "Então, esquecemos o documento e passemos adiante", disse o primeiro ministro. E o resto da reunião foi rápido, relembrando os pontos comuns que tinham sido abordados no dia anterior. Para quem, como eu, tinha perdido horas a tratar do texto e da sua afinação, era uma desilusão, mas, como costumava dizer esse primeiro-ministro, "é a vida!". Espantou-me, contudo, a rápida cedência do chefe do governo, sem sequer se ter dado ao trabalho de ouvir as divergências que a oposição teria para sublinhar e sobre as quais, até hoje, sempre fiquei curioso.

Quando as duas figuras da oposição saíram da sala, não me contive e perguntei ao primeiro-ministro a razão por que tinha dispensado o documento com tanta prestreza. A sua resposta foi clara: "Você acha que, depois do governo ter sido insultado durante todo o dia, em tudo quanto foi rádio e televisão, o meu partido me perdoaria que, ao fim da noite, eu anunciasse um entendimento, fosse sobre o que fosse, com o líder da oposição?". Fiquei a pensar que, de forma simétrica, deveria ter sido esse também o pensamento deste último. A vida política é assim mesmo.  

sexta-feira, fevereiro 17, 2012

Francês

Numa conversa, há dias, uma figura do mundo económico francês comentava, com agrado, o facto de Portugal ser um país francófilo e francófono, elogiando a circunstância dos nossos diplomatas e outras figuras portuguesas com quem se cruzava falarem, quase sempre, "um ótimo francês".

Retorqui-lhe que a realidade não será tão rósea quanto ele julga. Com efeito, se é normal que aos diplomatas seja exigido um conhecimento razoável da língua francesa, já esse atributo começa a rarear muito no resto da sociedade portuguesa, fruto da avassaladora presença do inglês. E lembrei-me de uma pequena história.

Um dia, nas funções executivas que ocupei, convidei um contraparte francês para se deslocar a Portugal. Num almoço de trabalho que organizei no palácio das Necessidades, reuni alguns colegas e altos funcionários. Um dos responsáveis políticos, um jovem secretário de Estado, dez anos mais novo do que eu, brilhante e promissora figura desse governo, logo após ser apresentado ao convidado francês, perguntou-me se ele falava inglês.

Tomei a pergunta como uma mera curiosidade, sabida que é a escassa propensão de muitos políticos franceses para línguas estrangeiras. E respondi que, de facto, já tinha ouvido o nosso convidado falar inglês. Acrescentei, curioso: "porque é que você pergunta isso?". A resposta foi cristalina: "Porque eu não falo 'uma palavra' de francês..."

Nesse preciso instante, dei-me melhor conta da realidade de haver hoje uma nova geração (também) de políticos, em Portugal, que foi educada tendo o inglês como língua central da sua formação e que estão hoje já muito distantes dessa grande língua de cultura que é o francês, infelizmente, e de facto, em forte regressão entre nós. No meu caso, não tenho dúvidas: muito do que sou o fiquei a dever à língua francesa e ao mundo que ela me abriu.

quinta-feira, fevereiro 09, 2012

Chipre

Ontem, ao receber a visita do meu novo colega cipriota, recordei-me de uma história passada em 1999, que se liga à existência das duas entidades que dividem, de facto, a ilha de Chipre. 

A República de Chipre é hoje um Estado membro da União Europeia. Cerca de 40% do seu território está sob controlo da chamada "República Turca de Chipre Norte", uma entidade criada em 1983, que só é reconhecida pela Turquia e que resultou de um conflito armado, em 1974, que opôs as comunidades cipriotas grega e turca. Nesse ano, uma invasão por tropas da Turquia, após uma tentativa de golpe de Estado para forçar uma anexação à Grécia, provocou a divisão forçada da ilha. Um complexo e não conclusivo diálogo entre as duas partes tem vindo a prolongar-se, desde então. A "linha verde" que divide ambos os espaços tem uma "buffer zone" controlada pela ONU, o que justifica a presença no terreno da sua mais antiga operação de manutenção de paz.

Nesse ano de 1999, fiz uma visita de trabalho a Nicósia, a fim de preparar a nossa presidência da União Europeia, no primeiro semestre do ano seguinte. Lembro-me de ter falado longamente com o então presidente da República, Glafcos Clerides, e com ministro dos Negócios Estrangeiros, George Kasoulides, sobre o processo de adesão do país à UE, muito apoiado pela Grécia, mas que, à época, tinha à sua frente alguns sérios escolhos, colocados por alguns parceiros. Desses interlocutores recolhi também a sua perspetiva sobre os problemas intra-comunidades na ilha.

Meses mais tarde, já no exercício da nossa presidência da União Europeia, visitei Ancara. Os turcos são a verdadeira e indisfarçada tutela de "Chipre Norte", pelo que o assunto faz parte integrante de qualquer diálogo seu com a UE. Para além da questão da sua própria adesão à UE, a Turquia deu sempre uma grande importância à questão cipriota e eu não me pude nem quis furtar-me a debater o assunto, quer com o meu homólogo, Mehmet İrtemçelik, quer com İsmail Cem, o ministro dos Negócios Estrangeiros. Cem, que já desapareceu, era um homem muito simpático e bem preparado, e conservo um livro com fotografias suas que então me ofereceu, várias da quais tiradas nos bairros populares de Lisboa. A visão de ambos esses políticos turcos era, como é óbvio, oposta à que eu recolhera em Nicósia.

Mas eu iria ter uma surpresa, nesta minha visita a Ancara. O primeiro-ministro turco, Bülent Ecevit, teve a a simpatia de me receber em audiência. Ecevit era um homem pequeno, com um ar antigo e um bigode proeminente. Era uma figura histórica da política turca, que alternou no poder executivo de Ancara com o seu grande rival conservador, Süleyman Demirel. Após as amabilidades introdutórias da praxe, colocou-me a seguinte questão: "Soube que esteve em Chipre há alguns meses. Por que razão não atravessou a "linha verde"?" Dito isto, ficou a olhar-me nos olhos, com um ar inquisitivo e profundo. Pelos vistos, estava bem informado sobre os passos dados em Chipre por alguém que mais não era do que um mero secretário de Estado de um país algo distante - um país que, no entanto, então como agora, defendia a presença plena da Turquia e de Chipre nas instituições europeias, sem que, contudo, deixasse de recusar abertamente o reconhecimento de "Chipre Norte". 

"Decidi não atravessar a "linha verde", senhor primeiro-ministro, porque estava em Nicósia a convite do governo da República de Chipre. Naturalmente, só visitei a parte da ilha que está sob o seu controlo".

Ecevit tinha, porém, uma hábil réplica preparada: "Mas o seu homólogo espanhol, poucas semanas depois da sua ida a Chipre, atravessou a "linha verde" e falou com as autoridades de "Chipre Norte"! Porque não fez o mesmo?"

Por um segundo, hesitei, mas respondi-lhe: "É verdade, mas o meu colega espanhol estava na ilha na sua capacidade de representante da presidência da União Europeia e, por essa razão, era natural que procurasse falar com todas as partes. No meu caso, estava numa visita de natureza bilateral à República de Chipre, com a qual assinei mesmo um acordo em Nicósia, pelo que não considerei que fosse esse o contexto adequado para atravessar a "linha verde"".

Ecevit não deu mostras de ter ficado muito convencido da racionalidade imbatível da minha resposta. E eu, confesso hoje, também não...

As contas

Um dia, no auge da negociação do tratado de Amesterdão, em 1997, o atual comissário europeu Michel Barnier, que ao tempo era ministro francês dos Assuntos Europeus, trouxe para a mesa um tema então quase "tabu": as diferentes contribuições financeiras dos países para o orçamento comunitário e o modo como isso poderia, um dia, vir a refletir-se na força de relativa dos países no processo decisório.

O assunto surgiu porque os países mais pequenos, como era o caso de Portugal, resistiam então a alterar, sob pressão dos grandes Estados, o poder de voto que tinham negociado aquando da sua respetiva entrada para as instituições comunitárias. Por essa altura, a opção que se discutia era a combinação do poder de voto com uma relativa ponderação do peso populacional de cada Estado. A França não gostava da ideia, porque isso abalava o equilíbrio formal de poder que mantinha com a Alemanha, desde a criação da CEE. E Michel Barnier notou, num tom que se pretendia de aviso aos Estados mais pobres, que se fôssemos por caminhos de fatores de diferenciação objetiva, então, mais cedo ou mais tarde, acabaríamos por ter também de considerar a desigual contribuição financeira dos Estados para o orçamento comunitário.

Confesso que a fria invocação do argumento me chocou, porque era a primeira vez que via fontalmente expostos por um responsável político, embora num quadro de discussão não pública, os limites da solidariedade intracomunitária. O argumento era rebatível em termos políticos e económicos, nomeadamente com as vantagens diferenciadas que os grandes países retiram do mercado interno, bem como de outros fatores, que não deixei de mencionar, de imediato, à mesa do debate. Mas a conversa parou por aí.

Nos últimos meses, ao observar o modo como alguns Estados tomaram conta, na prática, da gestão das contas da União, tenho vindo a pensar um pouco mais na premonição de Michel Barnier. Que acabou por se concretizar, mesmo sem uma mudança formal dos tratados.

quinta-feira, novembro 17, 2011

François Bayrou

François Bayrou é um dos mais experientes políticos franceses. Antigo ministro e presidente do partido centrista MoDem, obteve mais de 19% dos votos nas eleições presidenciais de 2007. Em 2012, irá de novo a votos. Entretanto, vai publicando, pelo seu punho, alguns livros que são tão polémicos como admiravelmente bem escritos.

Ontem, Bayrou almoçou com os embaixadores da União Europeia e, num tom solto e bem humorado, disse-nos o que pensa da situação política interna francesa, explicando também a sua visão sobre as mais importantes temáticas europeias. Fê-lo num tom franco e "sem papas na língua", o que me levou a dizer-lhe, em jeito de elogio, numa questão que lhe coloquei, que, ouvindo-o, ninguém diria que a expressão "langue de bois" era francesa...

Aproveitei este encontro com François Bayrou para pôr com ele algumas contas em dia.

Alguns se lembrarão que, em 2000, no início da presidência portuguesa da União Europeia, ocorreu o chamado "caso austríaco". 14 dos 15 países da então União, descontentes com o facto de estar iminente a entrada no governo austríaco de um partido tido como de extrema direita, resolveram impor algumas "sanções" às autoridades de Viena.  Tratava-se de medidas de natureza bilateral, que não afetavam os direitos austríacos como país membro da União, mas que significavam o descontentamento dos parceiros europeus da Áustria pelo facto do paradigma governamental do país poder conflituar com a ordem de valores pelo qual a Europa comunitária se deveria pautar. Mal sabíamos nós, à época, o que o futuro nos traria noutras paragens do continente...

O tema era muito polémico, por toda a Europa. Como polémica foi a necessidade de Portugal ter sido colocado, pela generalidade dos seus parceiros europeus, no centro do problema, como "coordenador" da posição dos 14. O Parlamento Europeu também não escapou a ele e, numa tarde de fevereiro, em Bruxelas, com o areópago a abarrotar, a presidência portuguesa, que tivera de assumir as "dores" dos 14, esteve no centro de um longo debate. Coube-me assegurar as nossas "cores" e defrontar um ambiente muito tenso, com centenas de deputados a vaiar a posição que nos competia defender, lado a lado com outros que hostilizavam a opção austríaca.

A base de argumentário de que eu dispunha para o debate era muito escassa: um mero comunicado de alguns parágrafos, laboriosamente acordado entre os 14, com aquela linguagem ambígua que esse tipo de textos fortemente negociados sempre tem. Era muito pouco, para cerca de duas horas de debate, mas era essa a minha margem, pelo que tive de improvisar em torno do texto comum, cuidando em o interpretar criativamente, correndo o risco de alguém me poder dizer que estava a ir longe demais. 

Acresce que a Comissão europeia, na bancada em frente, escudada na prudência, havia decidido tomar um caminho de retração opinativa num tema em torno dos valores, aguardando talvez que o vento soprasse de forma clara num qualquer sentido. Pela voz do presidente Romano Prodi, assumiu uma posição equívoca, a qual, a partir de certo momento, me deixou numa situação algo embaraçosa. Nem uma intervenção mais "assertive" do comissário Neil Kinnock em nosso apoio, a quem eu fizera entretanto chegar uma nota do desagrado por essa tibieza inicial, foi suficiente para reverter o ambiente de isolamento em que a presidência portuguesa se encontrava.

No plenário, o "ping-pong" entre a esquerda e a direita foi-se processando, com a presidência a ser considerada, ora tímida e complacente, ora demasiado agressiva com Viena, sendo raros os que se reviam na "craftly worded" linguagem do comunicado dos 14. 

Por razões que só a "petite histoire" acolherá um dia, a maioria dos deputados portugueses dispensou-se de intervir em defesa a posição da "sua" presidência, pelo que, sozinho, tive de fazer as "despesas da conversa". Nada que fosse impossível, mas era uma posição bastante difícil de ir sustentando sem apoios claros no plenário. Mas estes eram raros. Contra nós, por exemplo, falaram figuras como Jean-Marie Le Pen, que vociferou graves coisas denunciando a atitude que titulávamos - repito, não em nome de Portugal, mas de 14 dos 15 países da União cuja posição e razões nós ali tentávamos sustentar.

Foi então que uma voz do centro do espetro político europeu se ergueu, com grande vigor e determinação, apoiando as razões assumidas pela presidência portuguesa, destacando que ela estava a representar os princípios de ética democrática da União e uma linha justa de abordagem do problema: essa voz era a de François Bayrou. Com as suas reconhecidas qualidades de tribuno, colou-se às nossas posições e foi uma preciosa ajuda para equilibrar o ambiente.

Ontem, tendo com ele coincidido numa das mesas do almoço organizado pelo meu colega polaco, tive o ensejo de lhe relembrar a ocasião e o seu gesto. Ainda que com mais de uma década de atraso, foi-me grato poder expressar esse agradecimento que estava a dever a François Bayrou.

sexta-feira, agosto 19, 2011

Feiras

Num debate na Assembleia da República, o líder do CDS/PP tinha feito uma crítica a alguns aspetos da presidência portuguesa da União Europeia que então decorria, nesse início do ano de 2000, em que eu tinha alguma responsabilidade na matéria. Não era nada de muito radical, mas apenas o tom habitual dos partidos de oposição, que sempre procuram certos "nichos" de divergência pontual, mesmo quando subscrevem, por razões de Estado, o essencial da ação do governo na área externa. Como era o caso.

Nesse seu discurso, a que o primeiro-ministro estava a dar resposta aos temas substantivos, o líder oposicionista tocara, em moldes que recordo críticos, a questão da distribuição geográfica das reuniões europeias que a presidência portuguesa estava a realizar pelo país, como era habitual nesses longínquos tempos em que os Estados membros ainda pesavam alguma coisa no exercício das presidências semestrais. Já não recordo bem, mas talvez porque Aveiro não estivesse nesse mapa...

Da bancada do governo, fiz então chegar, discretamente, àquele lider partidário uma pequena nota manuscrita, que dizia basicamente o seguinte: "Achei muito injusta a sua crítica ao mapa de reuniões comunitárias no território português. Com efeito, deve ter notado que a cimeira final da presidência portuguesa está marcada para uma determinada cidade, num gesto que pretende ir ao encontro daquilo que se sabe ser objeto de um carinho especial da sua parte. Não foi por acaso que escolhemos Santa Maria da ... Feira!".

Não deixarei de perguntar ao meu atual ministro se se lembra da gargalhada sonora que deu ao ler a minha nota, para imensa perplexidade de deputados de várias bancadas e dos meus colegas de governo.

segunda-feira, agosto 15, 2011

Cosmopolitismo

Não é a primeira vez que, em alguns comentários a este blogue, recebo remoques pelo facto de utilizar palavras ou expressões estrangeiras, que vulgarmente identifico entre aspas. Devo dizer, desde já, que eu próprio me não sinto muito confortável com o recurso regular a esses termos. A realidade, porém, é que há determinados conceitos que me parecem tão bem sintetizados e tipificados em algumas línguas estrangeiras que reconheço que me dou frequentemente ao luxo de não ter de procurar, para eles, um equivalente em português. Aceito ser esta uma óbvia fragilidade, mas é também o preço de ter de optar por uma escrita rápida, imediata, que permite um ritmo diário de posts, sem grande burilamento ou beleza estilística.

Na vida diplomática, o recurso a expressões estrangeiras - principalmente inglesas, mas também francesas - faz parte do nosso dia-a-dia, o que, naturalmente, marca o discurso corrente e acaba por aparecer, de forma quase abusiva, em todas as apresentações que fazemos. Acredito que este meu "defeito" venha daí.

A este respeito, recordo-me de uma história, de que hoje não me orgulho muito, não tanto pelo facto em si, que até foi divertido, mas principalmente pela circunstância do meu interlocutor ter já, infelizmente, desaparecido.

A cena passou-se na comissão de Assuntos Europeus da Assembleia da República, creio que logo no final de 1995. Como responsável governamental pelo setor, eu estava a ser interpelado sobre dossiês que estavam em discussão em Bruxelas. Tinha feito uma intervenção inicial de, creio, cerca de meia-hora e ouvia as questões que, de seguida, me estavam a ser colocadas pelos deputados.

O deputado do PCP, Lino de Carvalho, para além das normais críticas oposicionistas à política do governo que eu ali simbolizava, disse algo parecido com isto: "O senhor secretário de Estado, nesta sua intervenção, mostrou alguns desagradáveis vícios de cosmopolitismo, recorrendo, com frequência, a expressões estrangeiras. Em poucos minutos, contei uma boa dezena delas, como "phasing-out", "leftovers", "acquis", "leverage" e outras do género. Eu sei que a profissão de V. Exa. conduz a um convívio intenso com o estrangeiro, mas devo dizer-lhe que acho lamentável estes excessos de cosmopolitismo. A meu ver, um representante governamental português tem a obrigação de vir para aqui falar exclusivamente a sua língua aos seus deputados".

Eu era um novato nas lides parlamentares e achei que, no contexto de um debate em "petit comité" (lá estou eu a usar expressões estrangeiras...), que decorria de forma solta e descontraída, me poderia permitir uma graçola política. Só que, como irão ver, o tiro saiu-me pela culatra.

Assim, interrompi o deputado, cuja intervenção ainda não tinha terminado e, pedindo autorização ao presidente da comissão, que creio que era o José Medeiros Ferreira, disse: "Eu quero pedir perdão ao senhor deputado pelo uso excessivo que fiz de expressões estrangeiras. Com efeito, reconheço que incorri num condenável vício de cosmopolitismo. E sei que isso toca fundo no património de memória do partido que V. Exa. aqui representa, o PCP. Com efeito, todos recordamos bem que, nos "processos de Moscovo", Estaline fez condenar à morte, por crimes de cosmopolitismo, muitas pessoas. Vou, assim, tentar conter-me, futuramente, na utilização de expressões estrangeiras".

O que eu fui dizer! Lino de Carvalho, com o ar grave que a sua barbicha leninista lhe conferia, sentiu-se ofendido com a minha intervenção, considerou-a "provocatória", "arrogante" e "insultuosa". E o agravamento do ambiente que o incidente projetou sobre a sessão, que até aí decorrera morna e sem polémicas, fez com que os sorrisos que a minha graçola inicialmente provocara se transformassem numa sólida, se bem que silenciosa, solidariedade parlamentar, em apoio à honra ofendida do colega deputado, como era patente na expressão facial coletiva à volta da mesa. Mesmo nos deputados que apoiavam o governo que eu ali representava denotei um visível incómodo com o insólito da situação criada.

Não me recordo como tudo acabou, mas tenho claro que falei, mais tarde, com Lino de Carvalho, junto de quem procurei justificar-me. A partir de então, e com o tempo, as nossas relações acabaram por normalizar-se e, nos anos que se seguiram, tive-o por um interlocutor muito sério e sabedor sobre questões de agricultura europeia. A sua morte deixou saudades no nosso parlamento e o nosso bate-boca fez-me aprender uma bela lição. 

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