Como não será de estranhar, foi um francês, no século XVIII, quem crismou a Inglaterra como a “pérfida Albion”. Por cá, depois da humilhação do mapa cor-de-rosa, às loas ao “mais velho aliado”, que nos tinha poupado do “abraço do urso” de Castela e dos seus sucedâneos, a acidez face a Londres só podia crescer.
Muitos portugueses não sabem, mas quando berram, masoquistamente, “contra os canhões, marchar, marchar!”, estão a entoar uma patriótica corruptela. O texto original era “contra os bretões, marchar, marchar!”. Para os menos iniciados, esclareço que “bretões” não significava habitantes da Bretanha mas, simplesmente, os ingleses.
Não deve haver classe política mais “fria” e “pérfida” do que a britânica.
Thatcher foi arrumada numa noite de conspiração, substituída por um genérico que dava aos conservadores esse bem essencial que era a continuidade no poder.
Depois de todas as confusões e equívocos de Cameron, com Theresa May de instável permeio, Boris Johnson assegurou, em 2019, uma muito confortável maioria ao seu partido. Mesmo assim, algumas trapalhadas e poucos anos depois, esse mesmo partido pô-lo com dono.
Pela primeira vez na história dos conservadores, o sentimento maioritário no grupo parlamentar, que fora responsável por afastar Johnson, tido como uma “liability” para uma futura eleição geral, não ia coincidir com o dos militantes do partido.
Os primeiros queriam um “safe pair of hands” e, conservativamente, escolheram Rishi Sunak. Os militantes, dessa estirpe de onde saiu o Brexit, preferiram Liz Truss, uma figura que já se revelava patética mas que iria ter os seus quinze minutos de fama (“I guess under this government everybody gets to be prime-minister for 15 minutes”, disse ontem, ironicamente, o líder da oposição, Keir Starmer, citando inviamente Andy Warhol) para ter oportunidade de mostrar, em pleno, o descalabro político que representava.
Pensando ter descoberto a pólvora, com propostas de um radicalismo liberal suicida, Truss acabou por descobrir a porta de saída, em escassas semanas, nem sequer lhe tendo valido o facto de ter presidido a um funeral nacional que lhe poderia ter dado uma unção para a chefia do país.
Os mercados, essa mão visível dos poderes fáticos do mundo, mostraram quem, na realidade, manda nestas coisas e, em especial, explicaram, com a libra a cair e os juros a subir, que, em política, só permanece quem eles entenderem que deve ficar.
Sócrates, por cá, já tinha experimentado a receita, num outro contexto. Truss iria ter um curso acelerado sobre o significado da expressão bíblica “the powers that be”.
Ontem, depois de dias de “facas longas” e de uma demissão artificial de uma ministra, que conseguiu desafiar os limites da deslealdade, a crueldade, associada ao bom senso, puseram Liz Truss fora do jogo.
Agora, temerosos da convocação de uma eleição geral que, tudo o indica, os arrasaria, face a um Partido Trabalhista que sabe que vai ser governo “só não sabe é quando”, como alguém um dia disse por aí, e que se limita a esperar o esboroar do outro lado, os conservadores britânicos vão fazer a sua escolha - desta vez, no seio do grupo parlamentar, porque um regresso à longa consulta da vontade das bases seria a receita para novo desastre.
Quem será o “John Major” de turno? Rishi Sunak, para voltar à “square one” da sua vontade? Penny Mordaunt, para uma mulher com qualidades e algum apelo nas bases, embora muito divisiva entre os seus pares nos Comuns? A opção mais à mão, o atual primeiro-ministro “de facto”, Jeremy Hunt? Ou o ministro da Defesa, Ben Wallace, um nome que reune algum consenso mas com pouco carisma?
Ou, afinal, a “solução” pode ser bem mais simples: o regresso de Boris Johnson, querido das bases conservadoras e que, por vontade destas, nunca teria caído. Quando Johnson se despediu dos Comuns, deixou uma frase enigmática: “Hasta la vista, baby!”. A expressão era de um filme de Schwarzenegger. Poucos notaram que, na película, a ela se seguia outro dito: “I’ll be back!” Boris Johnson poderá querer testar o velho dito: “Atrás de mim virá quem de mim bom fará”.
Logo veremos. Uma grande frieza vai seguramente imperar, desta vez, na busca da melhor solução. Resta saber se quem aí vier terá ainda tempo para conseguir reverter a tendência, que todas as sondagens apontam, no sentido dos trabalhistas virem a mudar, daqui a tempos, para a bancada do governo na Câmara dos Comuns.