quarta-feira, março 31, 2021

Cabo Delgado

Quero crer, com toda a franqueza, que o Estado português continuará a ter como muito claras as linhas limite que o envolvimento bilateral de Portugal na situação securitária em Moçambique deve continuar a observar.

Não havia necessidade!

O presidente da República deve estar arrependido do artifício jurídico que congeminou. Concitou a seu favor todas as opiniões demagógicas, mobilizou contra si muitas vozes sensatas e ofereceu uma bela medalha de responsabilidade ao governo. Não havia necessidade, caro presidente!

“A Arte da Guerra”


Com o jornalista António Freitas de Sousa, num ”podcast” do Económico TV, falo da grave situação que se vive no norte de Moçambique, dos seis meses da Presidência Portuguesa da União Europeia e da relação da Turquia com a Europa.

Pode ver aqui.

Carlos Moedas

Carlos Moedas tem plena razão quando diz que a sua convocatória ao parlamento, para ser ouvido sobre o caso Novo Banco, é uma decisão politicamente motivada, com algum oportunismo eleitoral autárquico à mistura. Mas ele também sabe, sem a menor sombra de dúvida, que se acaso o PSD estivesse na posição em que está hoje o PS, tudo se passaria de forma simetricamente igual. É assim ou não é? Costuma dizer-se que quem anda à chuva molha-se. Poderia também afirmar-se que quem anda na política se salpica! É assim a vida, Carlos!

Ronaldo

Tenho um imenso respeito pelo profissional de exceção que é Cristiano Ronaldo. Tenho uma forte consideração por ele, como pessoa, como personalidade solidária, ligada à família e aos seus amigos. E nunca esquecerei o modo como “abanou” Fernando Santos, na final do Europeu, a sua devoção pela camisola de Portugal.

Dito isto, detesto a obsessão diária que se vive com os seus “records”, as ridículas e permanentes comparações que se procuram fazer com Messi, Pélé e Maradona, com que a imprensa passa o tempo a “encher chouriços”.

Cristiano Ronaldo é ele próprio, com certeza o maior atleta português de todos os tempos. E isso chega.

“A Arte da Guerra”


Às 19 horas, hoje, no site do Económico TV, com possibilidade de posterior visualização.

Os livros ou Samuel Wainer, escolham!



Ontem, senti-me como uma criança numa casa de doces! Ia a passar, de carro, na rua da Escola Politécnica e, num instante, vi que a “Livraria da Travessa” estava aberta. Fiz uma guinada tal com o meu Smart, para estacionar junto à Faculdade de Ciências, que ia quase provocando um acidente com um Uber Eats.

Nem podem imaginar como me fez bem entrar naquela “catedral” do livro brasileiro, “cheirar” o extraordinário mundo editorial do Brasil. Só por vergonha não listo aqui o que me apeteceu comprar!

A “Livraria da Travessa” e, em especial, as “Cultura”, eram a minha perdição, quando vivia no Brasil. Entrava por ali, no Rio ou Brasília ou São Paulo ou Recife, e começava a angustiar-me, pensando: “não vou ter tempo para ler tudo o que me apetece comprar”!

É este sentimento que continua a atravessar-me, e cada vez mais (porque o tempo é cada vez menos), quando entro em livrarias. Como já não se vendem discos e eu, à parte livros, não gosto de adquirir nem roupa nem “gadgets”, constato que não sei comprar mais nada. Com uma exceção: compro “stationary” (blocos, marcadores), que depois não gasto.

Andei ontem, assim, por aquelas mesas da “Travessa”, nos escassos minutos que tinha, antes da casa fechar, deliciado.

E dei com um livro que sabia que tinha sido publicado, há poucos meses: uma biografia de Samuel Wainer. A maioria dos leitores deste espaço perguntarão: mas quem diabo é Samuel Wainer?

Há muitos anos, mais de trinta, eu ouvira falar, pela primeira vez, de Samuel Wainer. Foi num jantar na residência do Cônsul-Geral português no Rio, que era então José Stichini Vilela. Eu estava por ali de férias. A pessoa que, nessa noite, nos (me) falou de Wainer, um brasileiro amigo do nosso cônsul, cujo nome esqueci. Descreveu-mo como um jornalista hiper-talentoso, mas, essencialmente, como sendo uma figura marcante da vida política do Rio, que tinha sido combatido ferozmente por Carlos Lacerda (o que, para mim, era uma medalha), que tinha estado ao lado de Vargas, de Kubitchek, de Jango. Fiquei curioso e guardei o nome.

O Brasil é um país que tem uma extraordinária história de imprensa, jornais e revistas magníficos, mesmo numa comparação internacional. E, com os anos, vim a constatar que o jornal “Última Hora”, de Wainer, tinha um capítulo muito importante nessa mesma história.

Weiner não era um santo, longe disso. O seu talento tinha um “outro lado da moeda”. Subiu alto, desceu baixo e, há alguns anos, li umas memórias suas em que ajustava algumas contas - e os livros de ajustes de contas, se têm a sua graça, são, quase sempre, retratos não muito favoráveis de caráter.

Conta-se que, no fim da vida, num jornal de São Paulo onde Weiner terminou a profissão, um jovem repórter terá dito que não sabia quem ele era, ou melhor, que só sabia que ele tinha vivido com Danuza Leão, uma muito interessante figura feminina, irmã da cantora Nara Leão. Danuza, uma “musa” que marcou os “swinging sixties” do Rio, foi uma mulher deslumbrantemente bonita. Chegou a trabalhar na TAP, no Rio. Ainda é viva e também escreve - e, aliás, nada mal. Porém, reduzir Wainer a ter sido companheiro de Danuza era, de facto, bastante cruel. Mas, vá lá!, podia ser pior!

Em 2005, comigo acabado de chegar a Brasília, o conselheiro de imprensa da nossa embaixada, Carlos Fino, perguntou-me se eu queria conhecer uma das figuras, quase históricas, do jornalismo da capital, a primeira mulher a ser acreditada junto do Itamaraty, uma pessoa que era bastante sua amiga.

Convidei-a para almoçar. Era uma senhora já muito idosa, com uma extraordinária lucidez, de grande simpatia e uma visão muito equilibrada sobre o mundo altamente complexo da política brasileira. Chamava-se Sofia Wainer e era irmã de Samuel Wainer. Ficou, desde esse dia, nossa amiga, por todo o tempo que vivemos no Brasil.

Nunca falei com a Sofia o quanto gostaria de ter falado sobre a figura fascinante que tinha sido o seu irmão. Também nunca lhe perguntei muito sobre a sua família judaica, saída no final de 1920 da Bessarábia, região hoje na Moldova, que chegou ao Brasil quando Samuel tinha 10 anos. Sofia foi a única irmã que já nasceu no Brasil. Quando não se sabe: a idade de Sofia foi sempre um dos segredos bem guardados de Brasília. Morreu em 2015.

Vou ler esta biografia de Samuel Wainer também a pensar na Sofia.

terça-feira, março 30, 2021

Sinais dos tempos

Pressente-se a decadência inexorável de um país quando a sua equipa de futebol inicia um jogo a perder com o Luxemburgo. Tá bem: eu sei que seria pior com Belize, Transnístria, Bophuthatswana, Djibuti ou São Marino. Mas, mesmo assim: o Luxemburgo, caramba?!

Janelas de Lisboa

 


Tropa

A convulsão que a hierarquia militar atravessa, nestas horas, no Brasil, não permite raciocínios “cinzentos”: ou o presidente está a brincar com o fogo e esta coreografia lhe pode sair muito cara ou tem garantida uma força suficiente que lhe permitirá sair por cima de tudo isto.

Dias desfocados

A regular utilização do Zoom, do Teams e das restantes parafernálias de teletrabalho, com a “glicerinação” dos cenários de fundo desfocados, está a criar a ideia de que todo o país é proprietário de, pelo menos, um quadro do Noronha da Costa...

Volk

A Volkswagen, nos EUA, passou a chamar-se Voltswagen, para ficar com um ar mais elétrico-modernaço. Não sei se, nos tempos de policiamento retroativo que se vivem, isto não pode levar uma revisitação da razão do seu nome original.

Decência

A designação de “direita democrática” que, justamente, tem sido dada a partidos decentes do sistema político, não é, contudo, um conceito estático: certas escolhas, regionais e autárquicas, interpelam esse estatuto. É que foi Loures, depois os Açores, agora a Amadora e Oeiras...

A confissão de Lúcio

                        


Nos dias de hoje, todos lhe chamam JN. Na minha infância, era conhecido por “Notícias”.

O ”Jornal de Notícias” era então um dos três matutinos do Porto, sendo os outros “O Primeiro de Janeiro” e “O Comércio do Porto”. (Havia ainda, na cidade, um vespertino, de escassa e muito local divulgação, chamado “Diário do Norte”. E o portista “O Norte Desportivo”, bissemanário do famoso Alves Teixeira).

Em minha casa, lá em Vila Real, liam-se os dois primeiros jornais. O meu avô materno comprava o “Janeiro” e o meu pai o “Comércio”, onde o seu irmão Severino Costa enchia meia página diária (!), como “correspondente” do jornal que, por décadas, foi em Viana do Castelo.

O “Notícias” era então o mais popular dos matutinos, com muitos “casos do dia” (“Talhante mata sogra a cutelo em Rio Tinto”) e, em especial, com uma crescente cobertura desportiva, que ocupava mais páginas do que as dos seus diretos concorrentes. Com os anos, os restantes jornais da cidade foram desaparecendo e o “Notícias” subiu ao topo das vendas. E, a nível nacional, foi mesmo um sucesso, antes de outros modelos mais ousadamente tablóides lhe disputarem a primazia.

Em 1966, fui para a universidade do Porto fingir que estudava engenharia. Alguém me disse então, um dia, que o “Notícias” recrutava gente para ir cobrir jogos de futebol entre clubes de segunda linha da cidade e periferia, tipo Aldoar-Paranhos ou coisas assim.

Pagava à peça, creio que dez escudos(*). Íamos ao estádio, recolhíamos a composição das equipas (com as referências ao guarda-redes, defesa, médios e avançados separados por três ponto e vírgula) e escrevíamos quatro ou cinco linhas do estilo: “O onze do Aldoar falhou um penalti, por Dionísio, aos 18 minutos, pelo que o prélio chegou empatado ao intervalo. Embora tivesse ficado reduzido a dez unidades, aos 60 minutos, por expulsão de Meireles, o Paranhos, com o campo então já sob forte chuvada, viria a marcar aos 75 minutos, por Sebastião, num livre de fora da área, terminando o jogo a vencer por 1-0”. Não tínhamos estatuto para fazer a mais pequena interpretação apreciativa e apenas a referência ao estado do tempo era admitida. Muito me ri com o Frederico Martins Mendes, responsável pela minha “contratação”, quando, muitos anos depois, falámos disso!

A tarefa era executada, em regra, aos domingos de manhã, o que conflituava, muito seriamente, com o caráter crescentemente lúdico das minhas noitadas de sábado. Embora os “dez paus” me fizessem muito jeito (o meu pai, lá de Vila Real, mandava-me 22$50 por dia, para comer na cantina e “extravagâncias”), creio que larguei esse excitante exercício de “jornalismo” ao final de poucos meses. Passei a ganhar outro dinheiro em inquéritos de publicidade, porta-a-porta, nada mal pagos, com a vantagem de poderem ser feitos em horas vespertinas.

Saí do Porto ao fim de dois anos. Mudei de vida. E tinha passado, entretanto, meio século. Numa tarde de março de 2015, andava eu à procura de um restaurante, algures na Beira, quando tocou o telefone: era o Afonso Camões, diretor do JN. Convidava-me a escrever uma crónica semanal no seu jornal. Sobre quê, perguntei. Sobre o que eu quisesse. Eu tinha então uma coluna quinzenal no “Diário Económico”, mas achei que podia ter graça “regressar” ao meu velho “Notícias”, agora travestido de JN.

E assim aconteceu. Já não escrevi sobre os “Aldoar-Paranhos”, mas dediquei-me a outros prélios, políticos mas não só, as mais das vezes sobre temas internacionais, praia em que me sinto melhor.

O JN veio, entretanto, a ter outros dois diretores. A ambos, quando assumiram funções, escrevi a colocar o meu lugar à disposição, porque é da lógica mais do que natural das coisas que cada diretor escolha os cronistas que entende melhor servirem a sua equipa.

Passam agora exatamente seis anos desde que iniciei a colaboração com o JN. Foram mais de 300 crónicas. E foi tempo de parar. 

Falhei, que recorde, uma única crónica: não enviei um texto na véspera do 1° de maio de 2015, porque pensei que o jornal se não publicasse no feriado. Ora o JN faz gala de nunca deixar de se “dar à estampa”, 365 dias por ano (“e 366 nos bissextos”, disse-me, orgulhoso, o Afonso).

Mas o meu grande e verdadeiro “encalacranço” - já prescreveu e posso confessar - foi uma tarde em que estava a intervir num painel, a debater um tema qualquer, no grande anfiteatro da Faculdade de Direito de Lisboa.

Vi o telemóvel a flashar. Era do JN. Enviei uma SMS para saber o que era: queriam saber a que horas eu ia enviar a crónica. Era dia de S. João, “fechavam” a edição às cinco! Eram três e meia! E o debate estava para durar! De um lado, tinha o Eduardo Paz Ferreira, do outro, o Rui Tavares. E ali mesmo, a tratar de “alhos”, escrevi no iPad um artigo a propósito de “bugalhos”, com a atenção dividida entre os dois assuntos. E não é que o texto saiu “jeitoso”?

Ao longo destes seis anos, enviei os meus artigos dos locais por onde andava: do México, da África do Sul, da Turquia, de Luanda, da Polónia, de Paris, da Áustria, da Colômbia, de Londres, da Estónia, de Maputo, de vários sítios de Espanha, de Nova Iorque, de Bruxelas, da Holanda, do Brasil, de Berlim, de aeroportos diversos, de mais algumas paragens e, claro, quase sempre, de Portugal, de muito do norte a algum pouco sul, a maioria das vezes de Lisboa, algumas do próprio Porto, mas também da Madeira e dos Açores.

Agora, a terrível “deadline” das terças-feiras, às oito da noite (antes era à quinta-feira, até que o Miguel Guedes me pediu para trocar de dia da semana com ele), essa hora limite para entrega do texto (às vezes esticada uns bons minutos), deixou de me angustiar. É que, tenho que admitir, houve dias de “brancas” e falta de ideias até muito tarde, outros em que tinha preparados dois textos, entre os quais tinha optar.

Do lado de lá da “linha”, no JN, tinha um interlocutor regular, chamado Lúcio Brandão. A “conversa” semanal, escrita ou falada, que, desde há seis anos, por vezes tínhamos, criou mesmo uma espécie de amizade virtual entre nós. E nunca nos conhecemos pessoalmente, acreditem! Já combinámos que, atenuada a pandemia, vamos beber um copo. Espero ouvir dele a “confissão” de como, desse “outro lado”, era visto o colunista cujas três centenas de crónicas ele teve de gerir, com quem “negociava” às vezes as frases para destaque. Estou interessado em ouvir essa “Confissão de Lúcio”, para usar o título da novela de Mário de Sá Carneiro.

Tive imenso gosto em ser colaborador do JN, jornal a que só posso desejar sorte e muitos leitores. 

(*) Um amigo diz-me que seria, pelo menos, o dobro.

segunda-feira, março 29, 2021

Notícias da raia

O Eugénio Lisboa, num comentário num post anterior neste blogue, relata que, no seu tempo de tropa, um soldado lhe confessou que, na vida civil, era contrabandista. Perguntado sobre o que queria vir a ser, depois de sair do serviço militar, ele respondeu-lhe: “Guarda Fiscal”. Iria ser um funcionário competente, augurou o Eugénio.

A abrir as notícias

Merece uma análise cuidada a razão pela qual um tema internacional cuja extrema gravidade é evidente há imenso tempo sofre, de um dia para o outro, um “upgrading” informativo. Refiro-me à situação em Cabo Delgado. Não quero acreditar que seja por já haver estrangeiros mortos...

Necessidade

A forma doutrinal com que o presidente da República conseguiu dar o seu aval teórico a três diplomas, através dos quais a oposição procurou forçar o governo a gastos não orçamentados, resultou num curioso exercício jurídico de estilo. Mas não havia necessidade, é claro.

Itamaraty

O Brasil é um país que habituou o mundo a projetar uma representação diplomática de grande qualidade, por vezes em ciclos políticos bem contrastantes. Mas a diplomacia não consegue fazer milagres: não pode haver uma boa política externa sem que exista uma boa política interna.

Nabeiro e o contrabando

Já muito foi dito, e bem, sobre as qualidades desse homem de exceção que é Manuel Rui de Azinhais Nabeiro. 

Nabeiro tem origens humildes e não fez mais do que a antiga escolaridade primária. Numa entrevista dada ao Expresso, há cinco anos, revelou, sem problemas, ter estado envolvido em contrabando de café para Espanha, o que terá funcionado como a sua primeira fonte de rendimento. E também não escondeu o facto de, ainda na ditadura, ter sido presidente da Câmara municipal de Campo Maior, nomeado pelo regime de então. Com a democracia, viria a ser eleito pelo PS para o mesmo cargo.

Para quem vive em terras distantes das zonas de fronteira, o fenómeno do contrabando é pouco conhecido e compreendido em toda a sua extensão. Com os tempos, aprendi que olhá-lo como um crime fiscal como outro qualquer é uma leitura demasiado simplista.

Uma noite de inícios de 1975, no palácio da Ajuda, no seu gabinete de chefe da 2a. Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, o general (então brigadeiro) Pedro Cardoso, estavam quatro pessoas. Com uma exceção, éramos todos militares, sendo eu o único miliciano. Além de Pedro Cardoso, estava o também já desaparecido general (então major) Gabriel Espírito Santo. O civil era o pai de Pedro Cardoso, um senhor já bastante idoso e que, ao que lembro, tinha sido diretor-geral das Alfândegas.

O tema da noite - e não era por acaso que por ali estávamos, já bem tarde - era uma operação que, àquela hora, estava a ser desencadeada na área de Setúbal pela "Secção de Apoio", uma grupo operacional da 2a Divisão. Os resultados da ação demoravam a chegar, nesses tempos sem telemóveis. Tratava-se do desmantelamento de uma rede de contrabando, que me lembro envolver tabaco, mas não só: à época, essas redes eram utilizadas para levar obras de artes portuguesas e outros bens valiosos para o estrangeiro.

Guardei para sempre aquilo que o pai de Pedro Cardoso então nos disse. Explicou ele que era uma verdadeira ironia serem agora os ricos a contrabandear, porque "o contrabando é uma arma dos pobres".

Era algo irónico ouvir um antigo diretor-geral das Alfândegas explicar que, nas remotas áreas de fronteira, o exercício do contrabando era um recurso compreensível por parte de quem pouco tinha para comer e que usava essa prática, pela qual se eximia à fiscalidade oficiosa, para dar de comer às famílias. E contou ele que, sendo a travessia ilegal das fronteiras também um mecanismo para fugir à repressão policial por parte de ativistas políticos, era patente existir uma cumplicidade objetiva, em especial no Alentejo, entre os contrabandistas e os ativistas revolucionários, particularmente os comunistas. Dizia ele isto com um ar de compreensão, de naturalidade.

Essa noite abalou alguns dos preconceitos que eu tinha criado sobre o contrabando. Os 90 anos do comendador Nabeiro é uma boa ocasião para me lembrar de isto.

domingo, março 28, 2021

“La Joie de Lire”


Foi em março de 1973, numa viagem a Paris.

António Belém Lima, que no final desse ano passaria a ser meu cunhado, e que hoje é um renomado arquiteto, visitava aquela cidade pela primeira vez. Eu, que já lá tinha ido em algumas outras ocasiões, dei-me ao luxo de o ciceronear pelos lugares de culto que Paris tinha então para a nossa geração.

Num desses dias, levei-o a “La Joie de Lire”.

Era então a livraria mais popular para a juventude politizada, onde se podia encontrar, não apenas toda a literatura política em voga mas, muito em especial, na sua cave, papelada dos grupos clandestinos da oposição portuguesa. Ficava numa rua transversal ao Boulevard Saint Michel (há tempos, a loja tinha sido transformada numa agência de viagens). Era propriedade de François Maspero, um editor de esquerda que ficou com o seu lugar firmado na história do livro em França. Não há ninguém da minha geração que, ao passarinhar por Paris, não tenha andado por lá. 

Passaram todos estes anos todos. Esta semana, o “Telerama”, uma conhecida publicação parisiense de atualidades sobre televisão, espetáculos e publicações, traz uma recensão crítica sobre a versão francesa de um livro de banda desenhada para crianças, escrito e ilustrado por Eduarda Lima. Que é filha de António Belém Lima, isto é, minha sobrinha.

Qual é o nome da editora do livro? “La Joie de Lire”! 

O mundo pode ser muito curioso!

O cromo

Há por aí um maluquinho, de ar e voz graves, com poupa negra, que, desde há muito, tem a “mania” de mim. Volta e meia, aí uma vez por mês, qual emplastro da internet, arranha, a meu respeito, uns textos sofríveis, com erros de ortografia e vírgulas a esmo, que a piedade de alguns deixa que passem por artigos de jornal. Neles me atribui as mais obscuras intenções e, às vezes, até poderes miríficos. Hoje, lá regressa ao seu recorrente vício, numa colunazeca qualquer. Amanhã, sob vários heterónimos, vai republicar o textículo em outros lugares. É sempre assim. Anda nisto há anos, num arrazoado cheio de inveja e despeito, atulhado de teorias conspirativas, que faz a delícia de alguns perturbados que lhe “likam” a adjetivada intriga. Que se há-de fazer? Ter piedade! O homenzinho acaba por ser um ser inofensivo, lá na sua doença! E, aos doentes, só podemos desejar melhoras. Ah! Mas é bom que vá tomando os medicamentos, claro!

Nos parabéns a Rui Nabeiro


Rui Nabeiro, que hoje faz 90 anos, é um médio empresário que desenvolve uma ação social, com impacto regional, extremamente louvável.

Num país que tem por filosofia quase endémica o ódio militante aos empresários de sucesso, atitude em que a inveja desempenha um papel não despiciendo, valha-nos esta unanimidade em torno deste homem de bem!

Como se pode observar

Há por aí uma publicação que merecia levar um prémio, pelo modo dedicado como tenta promover a língua portuguesa: abre a sua coluna de opinião a uma legião de jovens (outros já o não são, mas a educação de adultos constitui um dever cívico) completamente desconhecidos, para ali alinhavarem esforçadas e muito adjetivadas “redações”, à boa maneira escolar. A única limitação aparente é que os escribas não se afastem da linha ideológica da publicação. Subsiste apenas um insondável mistério: onde é que eles andam a descobrir essas pessoas?

Suez, Eça e Gama


Há 152 anos, Eça de Queiroz, presente na inauguração do Canal do Suez, notava para o “Diário de Notícias” que ”num canal feito para navegação não cabiam navios“. Eça exagerava, claro. O Suez foi uma obra magnífica e até já foi razão de uma guerra.

Mas o seu conjuntural impedimento, provocado por um acidente de um porta-contentores, deve estar a encher de contentamento a memória de Vasco da Gama. Afinal, dificultada que está a utilização do “short cut”, o velho caminho marítimo para a Índia é que vai valendo ao mundo. Essa é que é essa!

sábado, março 27, 2021

Bolas

Portugal jogou pessimamente, na segunda parte, contra a Sérvia. E, claro, roubaram-nos um golo. Mas Cristiano Ronaldo não pode deitar ao chão a braçadeira de capitão. Tanta coisa negativa! Deixemo-nos, contudo, de tragédias: isto é futebol! A vida é outra coisa. E o país também!

Horas avulsas

O dia de mudança da hora, em que se perdem 60 minutos, irritou-me desde sempre. Por décadas, tinha um “truque”: mantinha a hora antiga até metade da tarde de domingo e, às 4:30, “apressava” o chá, fazendo de conta que eram 5:30. E jantava meia hora mais tarde. Depois ... sei lá!

“Observare”



Pode ver a última edição do “Observare” aqui.

Menu vermelho


Uma senhora com ar de muito perturbada (coitada!), quiçá vítima do trauma psicológico da pandemia, ressuscitou, numa sessão qualquer que foi filmada, uma ideia que se cola ao velho mito de que ”os comunistas comem criancinhas”. Não esclareceu se é em “take away” ou “ao postigo”, fórmulas de serviço que, para mal dos nossos pecados da carne, teimam em nos estragar a normalidade dos dias.

Pena foi que não tenha também referido a requentada (mas muito verosímil) história de que “os comunistas matam os velhinhos com uma injeção atrás da orelha”. Sempre me fez impressão esta precisão de geografia corporal. Há tantos lugares no corpo onde se podem dar injeções com essas qualidades malthusianas e os comunistas logo foram escolher essa zona de cartilagens flácidas. Gostos!

A fábula espalhada pela excitada cidadã, ficou, além disso, e lamentavelmente, um pouco incompleta, porque é sabido, pela fiável memória popular, que o repasto com infantes, de que os “comunas” são regularmente acusados, se passa “ao pequeno almoço”, o que, gastronomicamente, como se sabe, faz toda a diferença.

Para ajudar à diversidade do menu “dessa gente” (e cito), aqui deixo agora a minha modesta contribuição.

Quanto à senhora, que, pelos vistos, está em ambulatório, apenas posso recomendar que tome os medicamentos à hora certa. Ah! E deve também tomar boa nota de que hoje muda a hora.

“A Arte da Guerra”


Esta semana, no “A Arte da Guerra”, falo com o jornalista António Freitas de Sousa, num podcast da televisão do Jornal Económico, sobre os 10 anos de guerra na Síria, o encontro sino-americano no Alasca e a nova estratégia britânica para a região do indo-pacífico.

Pode ver aqui.

RTP


Desde a sua criação, em 1955 (com emissões a partir de 1957), a RTP teve já 31 presidentes. O futuro presidente, como ontem foi anunciado, será o jornalista Nicolau Santos. O seu nome foi escolhido, por unanimidade, pelo Conselho Geral Independente da RTP, um órgão constituído por seis pessoas, do qual faço parte.

Na lista oficial dos presidente da RTP não consta, contudo, a figura de Teófilo Bento, o capitão que, na madrugada do dia 25 de abril de 1974, liderou a ocupação militar daquela estação, naquela que foi a primeira ação completamente executada pela Revolução de Abril. Durante alguns dias, Teófilo Bento foi, “de facto”, quem dirigiu a RTP. Tive o privilégio de assistir, “in loco”, como militar que então era, à sua atividade durante esses escassos dias.

A figura que surge nesta fotografia não será facilmente reconhecida pela generalidade das pessoas. Trata-se de Camilo de Mendonça (1921-1984), um engenheiro que foi, nem mais nem menos, o primeiro presidente da RTP. 

Personalidade de certa importância no Estado Novo, este transmontano teve uma carreira política interessante, tendo sido secretário de Estado, deputado, procurador à Câmara Corporativa e ocupado diversos outros cargos técnico-políticos de relevo.

Padrinho de Marcelo Rebelo de Sousa (não, o padrinho do atual presidente não foi Marcelo Caetano, contrariamente a um mito instalado desde há muito!), Camilo de Mendonça viria a ficar bastante conhecido por ter sido o criador, em 1964, do Complexo Agro-Industrial do Cachão, perto de Mirandela, que dirigiu.

Contudo, esse primeiro presidente da RTP não imaginaria, com certeza, que, precisamente uma década depois de ter criado o Cachão, a direção deste empreendimento viria a ser assumida, nesses tempos revolucionários, pelo capitão Teófilo Bento, o outro transmontano de que atrás já falei, líder da ocupação “manu militari” da “sua” RTP, no 25 de Abril, figura que há meses desapareceu.

O mundo é muito pequeno!

Outro tempo


“E se fôssemos logo à noite ao Parque Mayer, à segunda sessão, ver a revista com o Eugénio Salvador e o Humberto Madeira? Depois, podíamos ir cear ao Galo”. 

“Tás maluco! Hoje vou a casa do meu tio ver o “Quem sabe, sabe!”, com o Artur Agostinho e a Gina Esteves, na televisão!”

sexta-feira, março 26, 2021

“Observare”


Seis meses depois do seu início, em final de outubro de 2020, o “Observare”, programa semanal sobre temas internacionais da TVI 24, vai passar a ter uma nova imagem gráfica e foi objeto de rearrumação na sua estrutura. 

E deixa de ser para “notívagos”! O “Observare” passa a ser emitido nas tardes de sábado, imediatamente após o curto noticiário que a TVI apresenta às 15 horas.

Pedro Belo Moraes é o moderador de um debate que continua a contar com o comentário de Luis Tomé, Carlos Gaspar e de mim próprio.

O “Observare” é fruto de uma parceria entre a TVI e o Observare - Observatório de Relações Exteriores da UAL - Universidade Autónoma de Lisboa. 

Conto vê-los por lá, já amanhã, sábado, um pouco depois das 15 horas.

quinta-feira, março 25, 2021

Barros Moura


Não vão acreditar, mas foi ao ler hoje o “Borda d’Água” para 2021 - consulta que, não fazendo parte dos meus hábitos, às vezes acontece - que me dei conta de que, precisamente na data de hoje, em 2003, morreu José Barros Moura, com 58 anos.

Barros Moura foi uma figura muito interessante na vida política portuguesa. Ativista académico prestigiado na universidade de Coimbra, cedo se ligou ao PCP, partido em que permaneceu 27 anos. A crise que o mundo comunista atravessou, após o final da Guerra Fria, e o tipo de respostas que essa nova situação veio a desencadear dentro do PCP, terá levado Barros Moura a integrar uma ala crítica que, a prazo, entrou em rutura com a direção do PCP, partido do qual ele próprio viria a ser afastado. Isso conduziu à sua aproximação do PS, partido do qual foi deputado europeu e dirigente parlamentar.

Conheci José Barros Moura nesses seus últimos tempos políticos. Era um período em que eu tinha responsabilidades executivas na área europeia e tive o gosto de poder tê-lo frequentemente como interlocutor, sempre interessado mas também crítico, face às orientações que o governo seguia. Era um homem muito inteligente (em Coimbra, na universidade, era conhecido pelo IBM - Inteligente Barros Moura), simpático, que recordo sorridente e sempre amável, com o seu farfalhudo bigode. Tratava os temas europeus com conhecimento e interesse, embora nem sempre na mesma perspetiva que o governo que o partido a que aderira seguia. Mas nunca me recordo de ter tido com ele qualquer divergência pública.

Um dia, estava eu de passagem por Coimbra, tocou o meu telefone. Era um amigo, jornalista, a dizer que tinha sabido que o “Jornal de Notícias” ia publicar, no dia seguinte, a notícia de que eu ia sair do governo, umas semanas depois, para regressar à minha carreira, e que Barros Moura me ia substituir como secretário de Estado.

A notícia não tinha o menor fundamente nem sentido: nem eu ia sair do governo nessa altura (já tinha combinado a altura em que isso ia acontecer), nem um lugar de secretário de Estado estava à altura de uma figura com a importância de Barros Moura. Tudo aquilo não passava de uma intrigalhada - e eu sabia bem quem a estava a fazer, e porquê. Liguei ao José Barros Moura, a anunciar-lhe a sua “entrada” no governo... Não queria que ele fosse surpreendido pela notícia no dia seguinte. Agradeceu-me e rimos com a situação.

José Barros Moura morreu, uns anos depois, com menos de 60 anos. A seriedade política ficou como a sua imagem de marca.

Que o seu desaparecimento, há 18 anos, venha agora no “Borda d’Água”, prova bem a utilidade dessa publicação. Mais uma razão para continuar a comprá-la, como faço há muitos anos.

quarta-feira, março 24, 2021

Confusões caucasianas


Portugal ganhou há pouco em futebol, com uma triste exibição, face ao Azerbaijão. Ter um bom guarda-redes é outra segurança. E o guardião azeri era excelente.

Lembrei-me então de um episódio passado, na sua capital, Baku, onde, em 2012.

O SMS, recebido da minha jovem "oficial de ligação" (pertencente ao "ask me team", aposto nas costas das respetivas t-shirts, que com imensa simpatia nos assistia) era bem claro: "You are requested to a meeting at 4 pm with the Minister of Agriculture of Azerbaijan". Seguia-se um endereço em Baku, escrito em azeri.

Olhei para o relógio e faltava menos de uma hora. Deixei a reunião em que participava e, com um carro e um condutor arrancados à organização, que só entendia a língua local, zarpei para o encontro.

Pelo caminho, fiquei a matutar no que poderia dizer ao ilustre anfitrião. Seria alguma coisa de natureza bilateral, aproveitando a minha passagem por Baku?

O meu ministro, que era então Paulo Portas, tinha passado por ali há alguns meses. Teria ficado algo pendente? Algum "protocolo de cooperação" por cumprir?

Porque nunca gostei de "brincar em serviço", e embora a embaixada portuguesa competente neste país fosse a que estava situada em Ancara e o Fórum em que eu participava nada tivesse de bilateral, antes de sair de Paris (onde era embaixador, cumulativamente, nesse ano, com a Unesco, qualidade em que estava em Baku), eu tinha pedido ao MNE um papel sobre o relacionamento Azerbaijão-Portugal. "À cause des mouches", como costumava dizer um amigo "versado" em francês. Estudara-o e, como mandam as regras, deixara-o prudentemente em Paris. Mas não me recordava de nele se falar de agricultura. Ou seria a minha memória?

A agricultura não é propriamente o meu "forte", mas, porque a diplomacia se transforma, quando as coisas assim o exigem, numa nobre arte do desenrascanço elegante, fui preparando algumas ideias para a conversa com o governante azeri, à medida que o meu condutor furava pelo tráfego infernal da cidade, ungido do dever, e dos fantásticos direitos rodoviários correspondentes, de transportar uma personalidade estrangeira ao seu governante.

Lembrei-me de que talvez viesse à baila a questão da próxima revisão da PAC e a onda protecionista que se avizinha, com o alibi da "segurança alimentar" europeia. Ou seriam as nossas experiências nacionais, em especial em matéria de extensão rural, que mobilizavam a curiosidade de Baku? Ou talvez pudesse surgir na conversa algum "memorando" de colaboração entre universidades (interesseiramente, lembrei-me da “minha” UTAD). Logo se veria! Tomaria nota do que me fosse dito e informaria Lisboa (e a nossa gente em Ancara, claro).

Cheguei já sobre a hora à porta do imenso edifício do ministério. Um engravatado funcionário esperava-me, com olhar ansioso. Apressados, subimos por um elevador, depois seguimos por um longo corredor, até entrar numa sala de reuniões.

Para minha imensa surpresa, por lá estava o grupo de colegas, embaixadores junto da UNESCO, que comigo tinham vindo desde Paris.

Todos tinham saído das suas reuniões da mesma forma apressada que eu. Mas eles sabiam que o encontro que estava prestes a começar era, não com o ministro azeri da Agricultura mas, muito naturalmente, com o ministro da ... Cultura. Com o qual discutimos temáticas que se prendiam com as nossas tarefas na UNESCO. Claro!

Take-away boémio




O meu primeiro gin tónico no British Bar foi em 1965!

Hoje, estava em modelo "take-away", com copo de papel. Melhores dias virão!

terça-feira, março 23, 2021

Guantanamo

É curioso o facto de ninguém falar da situação obscena em que vivem os prisioneiros em Guantanamo, ali detidos desde os tempos da administração George W. Bush, sem qualquer julgamento. Passaram, entretanto, as administrações Obama e Trump. Ninguém se indigna?

Universidade Autónoma de Lisboa

 



Meta volante


Hoje, lá para as nove e tal, isto é, por esta hora, metia-se o braço no janeluco que um dia passou a ser de alumínio lacado de branco, e, sabendo há muito da poda, abria-se, pelo lado de dentro, a fechadura do “Procópio”. Fiz isso anos a fio.

Ao fundo, logo em frente, o Nuno, o Nuno Brederode Santos, que tinha jantado na “Mãe de Água”, estava sentado no banco alto da esquerda, com os braços cruzados sobre o balcão, debruçado sobre uma pequena televisão que a “sedona” Alice tinha um dia inventado para o espaço. Nós chegávamos e ele, invariavelmente, dizia: “Já temos quorum. Passamos à mesa”.

E lá íamos nós, dois metros à esquerda, tomar assento na “Dois”, o pouso que por ali marcou a nossa geração. O Luís trazia-lhe o “refill” e o habitual para nós. Encostando-se para trás, numa coreografia que lhe era comum, como que a espreguiçar o início da noite que ia ser longa, o Nuno, que tinha acabo de ver as notícias, no dia de hoje, quase pela certa, iria dizer: “Este PPD está pela hora da morte! Já viste que há um candidato autárquico do Rio, lá na Padânia, que tem nome de ciclista?”

O grande arquiteto

“O teu avô era da Maçonaria”, dizia-me o meu pai, na minha juventude, lá por Vila Real. Imagino que o fizesse em voz baixa, por forma a não inquietar o meu outro avô, com quem vivíamos, pai da minha mãe, pessoa conservadora e que imagino seria pouco dado a apreciar esses caminhos de secretismo cívico. O meu avô mação tinha morrido no início dos anos 20, era o meu pai ainda uma criança, e estas nossas conversas tinham lugar nos anos 60.

Como o meu pai e o seu sogro se davam muito bem, não obstante o meu pai ser “das esquerdas”, como se dizia nessa ala da família, a boa educação e a solução para um são entendimento entre os dois passaram sempre, ao que creio, pela fuga a temáticas politicamente polémicas. E resultou muito bem, pelo que vi.

Nenhuma das duas heranças dos meus avós me tocou. Nem fui nunca para a Maçonaria, assunto que sempre abordei com risonha curiosidade, nem me deixei alguma vez catequizar por uma leitura benévola de algumas caraterísticas do Estado Novo, que o meu avô materno discretamente cultivava.

Como sempre dei por mim com um favorecimento tendencial das causas minoritárias, a Maçonaria, que sabia diabolizada e perseguida pelo Estado Novo, e que ainda por cima estava ligada a essa memória distante do meu avô paterno, acabava por merecer-me alguma simpatia, desde a juventude. Devo confessar, contudo, que os seus ritos me pareceram sempre um tanto bizarros e em nenhuma circunstância tive a menor tentação de aderir ao reino do “grande arquiteto universal”. Verdade seja que também nunca ninguém me convidou para tal, talvez porque resultasse expectável a minha reação.

Serve isto para dizer que, nada tendo a ver com tais obediências filosóficas, acho insensato e anti-democrático que se pretenda sujeitar à transparência e escrutínio público a eventual pertença a essas confissões. Ninguém tem o direito de perguntar ao outro a sua religião, o seu clube preferido, as suas inclinações no voto ou a sua orientação sexual. Se vamos por aí - e já se percebeu que este ataque tem uma agenda política clara, parte dela passando pela luta interna no PSD - arriscamos a transformar-nos numa sociedade pidesca, coscuvilheira e intrusiva. Como se diz em inglês, “mind your business” que, por cá, se traduz popularmente por “trata da tua vida e não chateies os outros!”

segunda-feira, março 22, 2021

Os livros regressaram!


As livrarias estão abertas! Não costumo pronunciar-me sobre a pandemia - porque não sou “achista” sobre assuntos em que outros sabem seguramente mais do que eu - mas, por uma vez sem exemplo, quero dizer que me tenho sentido bem menos seguro em outras lojas do que nas livrarias. Mas, enfim, manda quem deve mandar! E eles é que sabem, não sou eu.

A verdade é que fui, pela segunda vez, à “Ler”, no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, desde que esta excelente casa pôde reabrir. Com os devidos cuidados de segurança e o ambiente agradável e a atenção que é habitual naquela casa. Nas bancadas, há algumas novidades, mas parece que outras estarão aí “à bica”. Ainda bem! A edição é uma indústria do bem. 

Toponímia curiosa


A senhora da pintura não merece, mas o nome desta célebre rua de Alcântara já lá estava antes dela.

Já agora, no mesmo quarteirão, vende-se o melhor pão de Lisboa, o “Pão de Gleba”. Passo por lá todas as semanas...

sábado, março 20, 2021

Secreto?


Gerou-se por aí uma polémica sobre um relatório de 1976, relativo a sevícias praticadas em detenções de natureza política feitas no período revolucionário.

Circulam mesmo na internet textos dactilografados, como que a pretender dar um caráter clandestino a esse documento, que alguns qualificam de “secreto”.

Pois bem! Só na minha biblioteca tenho duas versões impressas e que foram divulgadas, com toda a publicitação e transparência, desse documento. Uma delas da Imprensa Nacional/Casa da Moeda. São “secretas”?


Contudo, como dizem os juristas, a doutrina divide-se sobre esta matéria. Por isso, foi publicada pelo professor Orlando de Carvalho uma obra crítica deste relatório.


E existe ainda um outro trabalho que analisa o relatório. Só lendo tudo se percebe tudo. E nada é secreto!


Aliás, sejamos claros! Secretos, nos tempos que correm, só os de porco...

Pai

Ontem foi dia do pai. Não sou pai e o meu já se foi há muito, pelo que nada tenho a comemorar. Lembrei-me, entretanto: na minha infância e juventude, não se comemorava o dia do pai. Havia o dia da mãe, que era em 8 de dezembro, antes de ter migrado de dia, sabe-se lá porquê. Mas “dia do pai” era coisa desconhecida e sempre me cheirou a manobra comercial. Mas acho muito bem que, quem queira, o comemore, se isso lhe dá prazer. Contudo, apressem-se!, antes que isso seja proibido pela nova linguagem “inclusiva” que, para evitar discriminações, pretende anular referências ao género da paternidade. Essas novas regras estão aí a chegar, em força. Por isso, com uma imensa ironia, aviso disto “todas e todos”, como a novilíngua parece obrigar.

Um homem solidário


Do nosso terraço, naquele final dos anos cinquenta do século passado, lá por Vila Real, via-se, ao longe, uma moradia branca a que eu ouvia chamar “a casa de saúde do doutor Otílio”. Que me conste, felizmente, nunca ninguém da família teve necessidade de lá ir parar. 

“É ali que opera, todos os meses, vindo de Coimbra, o Bissaya”, também escutava, desde sempre, num registo que traduzia alguma admiração. Alguém vir, de fora, para operar doentes em Vila Real, naquela época, devia ser obra. E só com o tempo é que vim a saber que “o Bissaya”, Bissaya Barreto, era então um confidente muito próximo de Salazar.

Curiosamente, o dr. Otílio era conhecido como um declaradoopositor do ditador. Porém, não obstante as discordâncias políticas que os separavam, sabia-se que os dois médicos eram bastante amigos. Como grande amigo de Otílio Figueiredo era também o meu tio Humberto de Carvalho, que, ao tempo, na cidade, era uma proeminente personalidade da “situação”.

A primeira imagem que tenho da figura de Otílio Figueiredo é a de alguém que se passeava por Vila Real, muito esticado, cabeça levantada, com uma larga cabeleira, um “cabelo à poeta”, como então se dizia. Tinha um fácies grave, como à época era de bom tom ser afivelado pelos cavalheiros com peso na urbe. Embora sem nunca o ter conhecido pessoalmente, recordo que tinha dele uma ideia simpática, ao vê-lo com a sua bigodaça de estilo.

Ouvia dizer que, para além da profissão, escrevia literatura, coisa comum a médicos e a alguns advogados, um jeito muitas vezes trazido de Coimbra. Na minha família, unanimemente, “o Otílio” era visto como “um homem de bem”, politicamente “muito direito” (o que, na boca do meu pai, era altamente elogioso) e “muito boa pessoa”, como sempre ouvia dizer, ao meu tio e seu grande amigo.

Otílio Figueiredo, como se disse, era uma personalidade destacada do “reviralho” local. E a sua família também. Lá por casa, comentava-se: “Os filhos do Otílio têm ideias avançadas!”, um qualificativo que, à época, dizia tudo. Um dia, imagino, ter-se-á registado o rumor (que, afinal, era uma certeza) de que um dos filhos do médico oposicionista, o Eurico, tinha ido para o estrangeiro, para fugir à Pide. 

Tinha pouco mais de 20 anos, quando conheci pessoalmente Otílio Figueiredo. Num final de tarde de agosto de 1969, o meu amigo António Leite, numa mesa da Gomes, disse-me ter tido lugar, poucos dias antes, na sala de “explicações” da sua avó, a professora dona Dirceia, uma reunião preparatória da criação de uma lista oposicionista, para concorrer às eleições legislativas de outubro desse ano. O meu nome fora então mencionado para ser convidado a juntar-me ao grupo, tendo ele ficado encarregado de me contactar.

Eu era então um estudante universitário em férias. Meses antes, tinha tido o meu banho de iniciação política: a eleição da lista associativa de que eu fazia parte, numa posição modesta, tinha sido “não homologada” pelo governo (não por minha causa, claro!). Depois disso, em Lisboa, tinha andado envolvido em algumas movimentações políticas, embora sem grande significado. Sem partido, eu era então um radical, numa aprendizagem acelerada do marxismo. 

Ironicamente, tinha acabado de passar férias em França com o meu tio Humberto de Carvalho, o tal homem local do regime.

Antigo presidente da Câmara Municipal, esse meu tio tinha, nos últimos anos, regressado à sua vida de engenheiro. Porém, nesse ano de 1969, não tinha resistido ao apelo da “primavera marcelista” e preparava-se para ser o cabeça de lista da União Nacional ao ato eleitoral que se aproximava. Tinha-me falado nisso, em confidência, numa conversa em Biarritz, durante as férias. Ainda antes, e para poder acompanhá-lo, e porque eu estava na idade “da tropa”, tínhamos ido ver o governador civil, Torcato de Magalhães, que, sob a fiança da sua palavra, ordenou ao secretário do Governo Civil, o meu amigo José Aguilar, para emitir o documento que ia permitir a minha viagem.

Não obstante esse facto, decidi aceitar o convite transmitido pelo António Leite. Numa noite, no carro de Délio Machado, fui com ele à casa de Otílio Figueiredo.

Com grande simpatia, explicou-me o propósito da Comissão Democrática Eleitoral: ser uma frente unitária, que congregasse todos os oposicionistas locais. Não o disse, mas eu entendi: do “reviralhismo” republicano tradicional, aos (poucos) comunistas que por ali havia, passando naturalmente por figuras próximas do grupo de Mário Soares, como era o próprio Délio Machado. E, somando a tudo isso, havia um velho amigo, a figura do João Bouquet, a grande alma organizativa da CDE. Ou melhor, da CDEVR, porque a sigla pretendia ser uma marca distintiva das CDE de Lisboa, Porto e Braga, bem mais radicais. O João era então, entre nós, um homem difícil de qualificar politicamente: era simplesmente a alegria revolucionária em pessoa.

Começou nessa noite uma bela aventura, sob a liderança de Otílio Figueiredo. Poucos dias depois, com ele e com Délio Machado, fiz parte do trio que foi fazer entrega ao Governador Civil da lista oposicionista do distrito, que tinha Otílio à cabeça. Ainda estou a ver a cara de espanto de Torcato de Magalhães, ao deparar comigo - a mesma pessoa que, menos de dois meses antes, ali tinha vindo com o líder da União Nacional pedir um passaporte... Nunca tive por ingénuo o gesto de Otílio Figueiredo e de Délio Machado ao convocarem-me para esta cena. E sempre registei o “fair play” do meu tio, ao aceitar, com naturalidade, que eu tivesse decidido ir por um caminho político diferente do seu.

Otílio Figueiredo era um líder incontestado, mesmo a nível distrital. Paciente, bem humorado, aturava algumas ideias mais “avançadas” que eu propunha, e que traduzia em textos enviados para a imprensa em nome da CDEVR, textos que, as mais das vezes, nos dias seguintes ao envio para publicação, víamos selvaticamente cortados pela censura.

As reuniões, naquele andar de topo do prédio da Gomes, eram sempre momentos políticos interessantes.

Para a pequena história divertida, ficou uma cena com um velho “reviralhista”, que acumulava com o facto de ser um insuportável chato, a quem Otílio, já exasperado, pediu, a certa altura: “Olha lá! Não te importavas de ir ali ao Bragança comprar meia folha de papel selado?”. Perguntado, após a saída do homem, se estava a pensar fazer algum requerimento, fez um gesto de cansaço: “Nada disso! É que eu já o não conseguia aturar. E assim ganhamos uns minutos de sossego!”

Foram muitos os episódios que vivemos juntos, nessas semanas intensas e excitantes.

Numa noite, a decisão de nos associarmos, ou não, a uma posição coletiva da Oposição, a nível nacional, na resposta a um telefonema de Lisboa, de Mário Sottomayor Cardia, obrigou a uma reunião de emergência, em casa de Otílio.

No auge da discussão - na qual ele procurava ser a bissetriz entre duas alas, sobre a questão colonial, representadas pelo meu radicalismo e pela moderação de Délio Machado - tive um ataque de riso, sem o poder explicar: é que o bizarro e inenarrável pijama às riscas de Otílio de Figueiredo, que se tinha levantado da cama para moderar a decisão, me pareceu, num determinado momento, não “rimar” com a gravidade do tema. Não sei como me contive, por entre as gargalhadas que travava.

Desse belo tempo de 1969, recordo, finalmente, aquela que terá sido a minha única, se bem que educada e respeitosa, altercação com Otílio Figueiredo.

Foi nas horas subsequentes ao comício oposicionista no Teatro Avenida. Furibundo com o facto de um dos membros da nossa lista eleitoral, no seu discurso, ter afirmado que “o Ultramar deve continuar a ser português”, apresentei a minha demissão e recusei-me a integrar a delegação da CDEVR a uma reunião da Oposição a nível nacional, que teria lugar horas depois.

Otílio Figueiredo achou despropositada a minha reação, e disse-mo. Eu afirmei, com ênfase, que contestar a posição anti-colonial era uma linha vermelha a que eu não podia associar-me. Demiti-me, assim, da CDEVR, a poucas horas da votação.

A nossa oposição vila-realense não teve um resultado brilhante. Nenhum dos nossos candidatos foi eleito. Nada que nos surpreendesse muito. Assim ocorreria também em todo o país, onde, como em todos os arremedos de eleições que a ditadura encenava, a oposição não iria conseguir eleger ninguém.

Porque a política local era, então, algo de muito peculiar, deixo registado que, semanas depois do ato eleitoral, organizado pelo Rotary Clube, teve lugar um jantar de homenagem conjunta a Otílio Figueiredo, o líder oposicionista derrotado, e ao meu tio Humberto de Carvalho, líder da lista eleita e futuro deputado.Dois amigos que nunca deixaram de se abraçar, até ao fim das suas vidas.

No meu caso, a vida iria afastar-me bastante da cidade. E, por algum tempo, só casualmente voltei a cruzar-me com Otílio Figueiredo, com o qual mantinha um registo de mútua simpatia e amigo apreço.

Imediatamente após o 25 de Abril, integrei, com o meu pai, uma manifestação junto ao regimento de Infantaria 13, de apoio à indicação de Otílio Figueiredo para Governador Civil de Vila Real. Não viria a sê-lo, porque a relação de forças partidárias na região começava a ser desfavorável àquilo que ele representava em termos de ideias.

Depois, por muito tempo, o “Setentrião”, a sua livraria no Cabo da Bila, passou a ser uma das minhas regulares “capelinhas” de romagem, nas visitas que fazia a Vila Real.

Otílio era de uma grande simpatia e generosidade para comigo, visivelmente atento ao meu percurso profissional, refletindo sempre comigo sobre os tempos da política nacional, a que percebi estar sempre muito atento, embora não raramente dela refletisse algum desencanto.

Tenho saudade desse cidadão de exceção que foi Otílio Figueiredo. Foi uma figura distinta de profissional médico, um intelectual de mérito, um grande democrata e, acima de tudo, um homem solidário que soube estar à altura dos desafios dos tempos que lhe coube viver.

(Texto que publiquei no “In Memoriam de Otílio Figueiredo”, que acaba de ser editado pelo Grémio Literário de Vila Real)

sexta-feira, março 19, 2021

Qualificação (2)


Desta vez é criatividade lexical nordestina que se mostra, a pretexto de Jair Bolsonaro.

Montarroio


A Sampaio Bruno foi, por muitos anos, uma rua marcante na Baixa do Porto. Começa num entroncamento atravessado por uma das ruas mais nobres da urbe, a Sá da Bandeira, para o qual convergiam duas artérias que já foram muito estimáveis referências gastronómicas: a rua do Bonjardim e a Travessa dos Congregados. Começando no banco que foi Pinto de Magalhães e na Casa da Sorte, termina numa bela tabacaria, com basta imprensa internacional, tendo à frente o café Embaixador.

Hoje, por ali, numa cidade fechada e triste pela pandemia, deparou-se-me esta imagem. 

A casa que se vê do lado direito foi, a certa altura, um ponto de modernidade no Porto. Era ali o Montarroio, um dos primeiros locais a servirem café de máquina, com as famosas “La Cimbali”, que ficaram no nome do “cimbalino”. Nesse tempo, há mais de meio século, o snack-bar (a própria expressão traduzia novidade) Montarroio tinha uma zona de comércio e bebida de cafés ao nível da rua e, numa cave a que se acedia por uma escada muito estreita, tinha um balcão onde se serviam refeições leves. Era um local simpático e chegou a ser bastante “in”.

Nos dias de hoje, é o que se vê. E, infelizmente, vê-se bastante disto por esta zona do centro do Porto. Melhores dias virão!

In Memoriam de Otílio Figueiredo

 


Trabalhar o futuro


Vai para uma década, estive envolvido num exercício para a definição do novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional. Uma vintena de personalidades, empossadas pelo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, sob a coordenação de Luís Fontoura, produziram, ao longo de alguns meses, um extenso e muito detalhado trabalho.

Ele havia sido antecedido pela elaboração de diversos documentos temáticos, preparados no âmbito do Instituto de Defesa Nacional, que ajudaram a estruturar a nossa reflexão.

Após a entrega ao governo do nosso trabalho, o poder político extraiu dele o que entendeu e publicou-o, sob a sua responsabilidade, em Diário da República. Como é da natureza destas coisas, nem tudo aquilo que havíamos recomendado foi seguido, mas a legitimidade política existe, precisamente, para poder ser exercida no domínio das escolhas a fazer.

Pela parte do grupo, bem heterogéneo e diversificado, que havia estado envolvido no trabalho, houve a consciência de que tínhamos contribuído, da melhor forma que nos fora possível, para essa tarefa de interesse nacional, sem outra retribuição que não fosse o gosto de tentar sermos úteis ao país.

Os Estados têm obrigação de produzir uma reflexão regular sobre os principais eixos em que, com realismo e responsabilidade, assentará o futuro coletivo.

Desejavelmente, essa análise deve ser produto de um largo consenso, envolvendo atores oriundos de setores diversos de pensamento. Essa é uma regra básica para evitar o risco de que a reflexão redunde numa visão sectária, rebatível por perspetivas opostas, assim desvalorizando o que tiver sido produzido.

Nenhum texto desta natureza resiste ao desgaste do tempo e, muito em especial, às alterações de conjuntura, em particular daquelas nas quais o próprio Estado não consiga ter um papel determinante.

Para uma entidade internacional como é Portugal, um país com uma larga inserção externa - bastante maior do que a de muitos Estados com a sua dimensão - mas com limitados meios para poder garantir eficácia à sua voz, o principal esforço neste tipo de exercícios é começar por definir os valores que entendamos dever preservar, numa leitura atualizada da nossa soberania.

Daí decorre a definição dos factores e riscos que, num horizonte razoável, possam surgir como limitativos ou condicionantes do património de interesses a preservar. A isso se agrega, como lógico corolário, a definição de linhas orientadoras que devem ser observadas pelas políticas públicas nacionais, por forma a garantir a aplicação ótima dos recursos.

Este tipo de trabalhos processa-se sempre entre dois riscos: o de ser limitado por um pensamento conservador, que dê por adquiridos e imutáveis alguns paradigmas, e o da irresponsabilidade imaginativa, descolada da realidade, fruto da vontade de colocar tudo em causa. Descobrir o ponto certo de equilíbrio é a chave do sucesso destes exercícios, cuja real utilidade é sempre medida pelo modo como os governos traduzem esse quadro referencial em decisões no seu dia-a-dia.

Sem pretender ser polémico, limito-me a constatar que, entre nós, a governação costuma ser muito pouco sensível a visões estratégicas que abranjam mais do que a esquina do fundo da rua por onde caminha, isto é, a próxima eleição. Quero crer que nenhum executivo esteve disposto, até hoje, a proceder a uma aferição sobre o modo como a sua ação teve ou não em consideração aquilo que tinha sido definido nos “conceitos estratégicos” que, supostamente, os deviam ter orientado.

Lembrei-me disto ontem, ao terminar a leitura de um documento divulgado, ainda esta semana, pelas autoridades britânicas, em que é feita uma reflexão sobre os desafios que se colocam ao Reino Unido nas áreas da Segurança, Defesa, Desenvolvimento e Política Externa.

É muito refrescante poder apreciar um pensamento contemporâneo sobre o destino de um país antigo, que avalia o seu futuro com ambição e otimismo. Recomendaria que aquele estudo fosse bem lido entre nós.

Mais do que “chover no molhado” sobre o presente, a nossa grande responsabilidade é conseguir preparar o futuro. Nem que seja por mero egoísmo geracional: é que o futuro é o lugar onde “quem cá está” já vai passar o resto dos seus dias.

A raça na corte


Quando, em 1910, a República foi implantada em Portugal, apenas o caso óbvio da França e o modelo particular da Suíça destoavam, num mar de regimes monárquicos que submergiam a geografia política do continente.

Com o passar das décadas, os conflitos, as secessões e a emergência de radicalismos de sinal diverso marcaram o destino de muitas dessas Monarquias.

Parte delas viria a falhar no teste da sua compatibilidade com a onda de prevalência da soberania popular que foi varrendo o continente.

As Monarquias que se mantiveram enquanto tal, na sua maioria tituladas por descendentes de figuras que se tinham prestigiado como símbolos de unidade em tempos nacionais de extrema dificuldade, como foi o caso da Segunda Guerra mundial, aceitaram o compromisso de anular a sua capacidade de influenciar a gestão política dos respetivos países.

Aos reis é hoje pedido que sorriam e representem com dignidade o Estado de que são um símbolo. Quando a conjuntura os obriga a intervir pontualmente na coisa política, exige-se-lhes um imenso bom senso.

Ora o bom senso não nasce necessariamente com as pessoas - e os reis são pessoas. Viu-se isso, há pouco tempo, em Espanha, onde o antigo monarca desbaratou, por insensatez de comportamento, o capital de prestígio que tinha acumulado numa transição política tida por exemplar.

Com uma parte significativa das opiniões públicas - mais nuns países do que em outros - a colocar progressivamente em causa o princípio dinástico da chefia do Estado, os monarcas e as suas famílias vivem sob uma atenta observação. Alguns parece estarem mesmo sob uma implícita aferição pública da sua “utilidade”, numa relação custo-benefício, a qual, porque decorrente da progressiva dessacralização das suas funções, se torna, dia a dia, mais exigente.

Passado que foi, já há muito, o tempo da sua intocabilidade pela comunicação social, os soberanos e suas famílias têm de aguentar esse forte escrutínio, porque parte das sociedades democráticas não olha com bons olhos os privilégios e as mordomias, obrigando-os assim, cada vez mais, a seguirem uma vida que se assemelhe à do comum dos cidadãos.

Os gastos com as famílias reais ou similares são hoje objeto de um forte debate, sendo a sua expressão social seguida com um interesse que vai da medíocre coscuvilhice tablóide à compreensível exigência ética.

As cortes, no seu esforço de sobrevivência institucional, têm assim de ter inteligência para se adaptarem às mudanças da sociedade, às tendências da contemporaneidade. Com um grau de aceleração sem precedentes, isso envolve hoje linguagens, padrões comportamentais e a observância de uma multiplicidade de outros sinais.

O que se terá passado recentemente na corte britânica, com acusações de cedência a estereótipos racistas e discriminatórios, toca uma preocupação que atravessa o mundo, a que as novas gerações são particularmente sensíveis.

Da mais “profissional” das Monarquias europeias não era expectável um erro tão grosseiro. Mas, como diz o povo, no melhor pano cai a nódoa.

quinta-feira, março 18, 2021

Qualificação


É difícil exceder em imaginação qualificativa aquilo que esta cronista da “Folha de São Paulo” ontem escreveu sobre o presidente Bolsonaro.

Vou confessar o que nunca tinha lido: Basculho, jacodes, enxurro, infando, estrupício, broxável, capiroto, pequi roído. Mas o mais delicioso vocábulo é, sem a menor dúvida, o criativo “excrementíssimo”.

“A Arte da Guerra”


Em conversa com António Freitas de Sousa, no “Arte da Guerra”, do “Jornal Económico”, abordamos hoje em video as próximas eleições legislativas em Israel, as pressões chinesas sobre Hong-Kong e a profunda crise político-social em que está mergulhado o Líbano.

Pode ver aqui.

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...