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quinta-feira, abril 06, 2017

Virgílio Varela



Conheci o Virgílio Varela em outubro de 1974, quando, depois da dissolução da Junta de Salvação Nacional criada em 25 de abril, onde eu assessorava o general Galvão de Melo nas questões da extinção da PIDE/DGS, fui trabalhar para a 2ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, chefiada pelo então brigadeiro Pedro Cardoso. 

O Varela, como lhe chamávamos, era por ali uma figura agitada e sorridente, sempre bem disposta, de convívio muito agradável, com o seu sotaque madeirense, trabalhador como poucos. Naquele curioso espaço no topo do Palácio da Ajuda (contar a história daqueles meses e de muita gente que ali operou nesses meses "da brasa" dava um belo livro), ambos então sob as ordens diretas do major (depois general) Espírito Santo, vivia-se uma "guerra" feliz, combinando alguma gente mais à esquerda (onde eu me situava) com quantos se mostravam inquietos com o ritmo da Revolução (como era o caso do Virgílio Varela).

(Era um tempo em que havia tempo para tudo: eu trabalhava desde as 8.30 da manhã na Ciesa NCK, ia almoçar à messe de Pedrouços e, entre as 13 e as 19 horas, "fazia a tropa" no EMGFA. Pelo meio, nesse ano de 1975, escrevi com um amigo um livro sobre "O caso República" e ia fazendo as provas de admissão ao MNE, onde ingressei em Agosto.) 

O Varela trazia colada à pele a imagem da heroicidade que revelara nas Caldas da Rainha, em 16 de março desse ano, quando prendeu o comandante do regimento, amotinou a unidade e comandou a coluna que procurou chegar a Lisboa. Como consequência do movimento ter falhado, foi depois preso por algum tempo na Trafaria, de onde sairia no 25 de abril, em que logo teve atividade operacional relevante. Era tido como um fiel spinolista, sendo que o nosso trabalho em conjunto se processou já após a demissão de Spínola de Presidente da República, em 28 de setembro de 1974. Na sequência do 11 de março de 1975, voltaria a ser detido, por algumas semanas, por acusações de implicação no golpe que Spínola encabeçou nessa data.

Perdemo-nos de vista durante muitos anos. Voltei a encontrá-lo apenas uma vez, num café, já depois dele ter sido comandante da PSP de Lisboa. Falámos e eu aproveitei para "arrumar" algum "misunderstanding" que sentia que havia sobrado entre nós, na sequência da confusão do 11 de março, da dissolução da 2ª Divisão do EMGFA e da criação do SDCI (que eu passei a integrar, enquanto ele estava preso). Acabámos a conversa, franca e leal, com um abraço de amizade, coisa que agora não poderemos repetir. Morreu ontem esse generoso capitão de abril, que, para a História democrática, ganhou as sua esporas revolucionárias ainda no mês de março de 1974.

sexta-feira, março 29, 2013

A sé desportiva

Há poucas horas, ao passar pela sé catedral de Vila Real, neste tempo pascal, lembrei-me de uma historieta passada no "Verão quente" de 1975.

Eu tinha vindo por uns dias à cidade, nesse tempo militar em que misturava o meu radicalismo político com as provas do concurso para a diplomacia. Numa reunião de manhã, no regimento de Infantaria 13, tivera uma conversa menos fácil com o tenente-coronel Adão, comandante em exercício, junto de quem tentara garantir proteção militar para as sedes de alguns partidos de esquerda, que a voz corrente dizia que poderiam ser ameaçadas pela manifestação católica (que hoje se sabe muito mobilizada pelo MDLP) que teria lugar no dia seguinte. Usava as credenciais político-militares que advinham da minha pertença ativa ao MFA, mas cedo vi que o ambiente "no 13" estava mais com os manifestantes do que com a nossa ala "progressista". Por essa razão, o simples alferes que eu era pouco podia fazer, não obstante alguma desproporcionada influência de que, tal como outros milicianos, disfrutava então em certos meios militares de Lisboa.

Nessa tarde, na pastelaria Gomes, sentava-me com um amigo que partilhava as mesmas preocupações e cumplicidades, conversando em voz baixa sobre os acontecimentos que aí vinham. Lá fora, vimos aproximar, histriónica, uma das figuras da "reação" local. É preciso conhecer bem a Vila Real da época para se entender o facto de, na cidade, conviverem, sem dificuldade, pessoas com diferentes e até antagónicas ideias. Eu sabia que essa figura, entrada que fosse na Gomes, se sentaria inevitavelmente à nossa mesa, até pela certeza de poder encetar conosco uma estimulante disputa verbal. Por essa razão, num segundo, combinei um estratagema com o amigo que tinha a meu lado.

Como expectável, o recém-chegado juntou-se-nos para um "covilhete" (se o leitor não sabe o que isso é, visite Vila Real) ou uma fatia de bôla de carne. Olhando para a mesa, viu esquiçado numa página branca um desenho do que parecia um edifício, em forma de cruz. 

- O que é que vocês estão a tramar?, perguntou, curioso, ciente de que, com dois "esquerdalhos" como nós, esse desenho tinha, com toda a certeza, um objetivo não inocente.

- Nada que te interesse, disse-lhe eu, num tom que só aumentou a sua curiosidade.

- Uma cruz?! Quase parece a planta da sé...

- Pronto, "tá" bem, é a sé. E depois?

- Mas por que razão vocês estão a desenhar a sé?, alarmou-se.

- Ó homem! Isto é só uma ideia, mas, se prometes segredo, podemos revelar-te que há uma séria hipótese do espaço da sé poder vir a ser transformado numa área desportiva, de apoio aos tempos livres. Isto ainda não se sabe, mas a sé deve passar para a tutela do INATEL.

O visitante estava boquiaberto. E escandalizado. As suas piores suspeitas sobre as ideias dos "comunas" (para a direita, à época, esse espetro insultuoso era muito alargado) confirmavam-se em pleno. A sé catedral?! A velha igreja de S. Domingos transformada em recinto gimno-desportivo (não me recordo se o conceito já existia, à época).

Generoso, entendi dever ser um pouco mais detalhado:

- Vamos a ver se nos entendemos. Tens que concordar que há, na cidade, um défice evidente em matéria de equipamentos para lazer. A União Artística não chega, a "Católica" não tem espaço e a "Bufa" (nome depreciativo que dávamos à Mocidade Portuguesa) "já era". Ora a sé está desocupada a maior parte do tempo e está num lugar central ideal, bem fresco no Verão. Quem goste de rezar ou de missas tem imensas igrejas. A "capela nova" está aqui a dois passos, tal como a Misericórdia. E S. Pedro é logo ali em cima. A nossa ideia é procurar adaptar a área dos altares laterais da sé para dois bilhares livres e o altar principal para um "snooker". A questão da nave central é mais complicada, porque as seis colunas criam problemas à proposta de aí fazer uma zona para voleibol. Se assim não for, teremos de ir para a alternativa de mesas de ping-pong. Há quem pense num bilhar grande às três tabelas, que nem o Excelsior nem a Pompeia têm, mas resta saber se haverá clientela para isso.

O "reaça" esbugalhava os olhos. "Tomarem" a sé catedral, o centro religioso da cidade?! Sossegámo-lo, com modéstia temporal de intenções:

- Ó pá, isto ainda está apenas em planos. Estamos também a estudar a questão das balizas para futebol para pôr no adro. Por isso, só daqui a uns tempos é que se iniciará o desmantelamento da sé. Mas atenção!: é nossa preocupação preservar bem o recheio. O projeto é mandar muitas coisas para a Senhora de Lurdes.

A menção da capela da Senhora de Lurdes, uma igreja desativada, lá para os lados da estação ferroviária, em acentuado estado de desagração, aumentou a ira do já desestabilizado conservador.

Sempre tive uma excecional capacidade de sustentar estas historietas sem me desconcertar. Mas o meu comparsa estava, pouco a pouco, a deixar-se rir. Por isso, levantou-se e fez menção de sair pelas portas de guarda-vento. Mas, nesse movimento, teve ainda ânimo para estacar junto ao embasbacado reacionário e dizer-lhe, convicto:

- Não eras tu que gostavas de jogar matraquilhos? Pois é nossa intenção encher a sacristia de mesas de "matrecos". E de graça, porque isto agora passa a ser tudo do povo, pá!...

A patranha esclareceu-se nos minutos seguintes. Mas senti que o nosso amigo (porque era nosso amigo) "reaça" não ficou de todo sossegado.

Para a história, registe-se que a manifestação do dia seguinte não provocou violência. O PCP, acantonado na rua da Misericórdia (ironia toponímica...), não precisou de usar as caçadeiras que me disse ter para defesa da sede e o MDP-CDE, sobre a "Mabor", lá se aguentou às provocações lançadas da avenida, comigo encostado ao Tocaio, a ver a onda católica passar. Já o PS nada tinha a temer, porque o padre Sarmento, eixo da máquina clandestina da "Maria da Fonte", tinha-os, e bem justamente, por "compagnons de route" anti-comunista, nesse Verão complicado e muito "quente".

E a Sé, a magnífica igreja de S. Domingos, lá continua intocada, agora com uns belos (mas, para alguns, controversos) vitrais de João Vieira, que vivamente recomendo sejam vistos.

sábado, abril 28, 2012

Conquistas de abril


Éramos quatro, entrámos pé-ante-pé, pelas escadas, evitando o elevador. O prédio era "ao Califa", ali na estrada de Benfica. A informação era muito segura: o Cordeiro, um sinistro inspetor da PIDE, ter-se-ia safado do cerco da António Maria Cardoso e podia estar refugiado em casa ou prestes a aceder a ela. Se iria resistir ou não, isso era o que se ia ver, e não nos sossegava mesmo nada. 

No terceiro andar esquerdo, batemos à porta e preparámos as armas, mimando a coreografia que víamos nos filmes, com a “expertise” operacional de quem vinha da administração militar. De dentro, uma voz feminina perguntou quem era..

"Forças Armadas”, respondemos, num plural majestático que estava a ter momentos de glória ímpar nessas horas, logo após o 25 de abril. 

A porta abriu-se, lenta, com a cara fechada de uma mulher de meia-idade a aflorar. Logo atrás, face angustiada, via-se uma rapariga mais nova, na casa dos 20 anos. Entrámos e o ambiente foi de compreensível frieza, com respostas algo agrestes, de uma dignidade ferida, sem remissão. 

Eram a mulher e a filha do inspetor. Procurámos ser muito corretos, embora firmes e incisivos nas questões, até para dar ares de uma determinação que disfarçasse o nosso imenso nervosismo. Que não, que o inspetor não estava, o que uma busca à casa logo confirmou, e não sabiam onde poderia encontrar-se ou se viria até à noite. Mas, pela conversa e outros dados circunstanciais, ficámos com a suspeição de que o Cordeiro ainda poderia chegar. Como nos tinham dito. Dispusémo-nos a deixar cair a noite, esperando o fugitivo Cordeiro. 

Estudámos a situação e, em discreto conciliábulo, pensámos que seria melhor isolar as duas mulheres, afastando-as do telefone negro na mesa da sala, não fosse elas serem tentadas a dar alarme, caso o inspetor entretanto ligasse. Dividimo-las por dois quartos, ambas acompanhadas. Dois de nós montámos uma espera no corredor, aguardando o eventual abrir da fechadura. 

Passara já mais de uma hora, quando, no imenso silêncio que ali se vivia, se ouviram, de um dos quartos, uns ruídos estranhos, parecendo gemidos ou choro, de súbito calados. 

"Tu não queres ver que o Silvestre perdeu a pachorra e decidiu dar dois tabefes à filha do pide, para lhe sacar o paradeiro do pai?!", exclamou o Branco

Não acreditei. Esse não era o estilo do Silvestre, um miliciano de Económicas, muito educado, com pinta de galã. Atravessei o curto corredor, abri a porta do quarto: lá estavam eles, sentados na cama, ela a vestir-se, sorridente e algo encavacada, com o Silvestre, já a puxar por um cigarro. 

Era um belo início da aliança povo-MFA

sábado, março 10, 2012

11 de Março de 1975

A tensão fora imensa durante todo o dia. Recordo os caças a passar a meio da manhã sobre Belém (que eu via da varanda da Ciesa-NCK, onde eu tinha o meu emprego matinal), as notícias do ataque aéreo e terrestre ao regimento do RALIS, o almoço rápido e pesado na messe do Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, e uma infindável tarde, prenhe de boatos, telefonemas e dúvidas, passada entre a 2ª divisão do EMGFA, no palácio da Ajuda, e o então Instituto de Sociologia Militar, na calçada das Necessidades. 

Era o dia 11 de Março de 1975. Spínola havia provocado a revolta contra o MFA em Tancos, mandara avançar forças sobre Lisboa, convencido que poderia conseguir um levantamento de outras unidades, descontentes com a progressão radical da revolução. A tensão político-militar tinha atingido o seu ponto extremo e culminaria com a patética rendição dos pára-quedistas em frente ao RALIS, com a fuga de Spínola para Espanha, a prenunciar que muita coisa poderia mudar a partir de então. Não sabíamos, porém, o quê e como. 

A tarde acabou e eu regressei a casa, a ouvir a rádio e a ver, pela enésima vez, as imagens da televisão. Por um pressentimento de que algo iria passar-se ainda nesse dia, voltei ao Instituto de Sociologia Militar, depois de jantar. Começaram a aparecer por lá alguns milicianos do Exército, como eu e o Agostinho Roseta, militares da Marinha, gente vinda do RALIS, estes últimos a descrever com emoção os eventos da manhã. E apareceram algumas figuras gradas do MFA, próximas do PCP, como Ramiro Correia e Dinis de Almeida. 

De repente, como que por acaso, começou a consensualizar-se uma onda de revolta pelo facto do “Conselho dos Vinte”, que funcionava como órgão militar máximo desde a extinção da Junta de Salvação Nacional, estar “placidamente reunido nos tapetes de Belém”, como alguém disse. Aparentemente, ao que nos chegava, o Conselho estaria apenas disposto a reflectir sobre a crise, sem cuidar de afastar ou punir alguns culpados óbvios, senão por acção, pelo menos por indesculpável omissão ou complacência com os “conspiradores spinolistas”, como o nosso radicalismo simplificava os revoltosos do dia. 

Para muitos dos exaltados presentes, a lista dos responsáveis já era longa, desde os serviços de informação militar até certas figuras da hierarquia militar e à "reaccionária" direcção da televisão, o que significava, para alguns, querer atingir Ramalho Eanes, o general que, meses mais tarde, seria o comandante operacional do contra-golpe de 25 de Novembro de 1975. 

Aí pelas 11 horas da noite, forma-se, no seio do "pessoal" que discutia a situação, uma ideia imparável: ir a Belém, interromper o “Conselho dos Vinte” e exigir uma reunião extraordinária da Assembleia do MFA, para essa mesma noite. 

Dito e feito. Aí avançámos nós rumo à Presidência da República. Entrei ao volante do meu carro pelo pátio das Damas, à Ajuda, sem nenhum impedimento dos polícias do portão, amedrontados pelo aparato da fila de viaturas. A meu lado ia o Agostinho Roseta, dois desconhecidos oficiais da Marinha de boleia no banco de trás, a quem, estranhamente, não arrancámos grandes palavras em todo o trajeto. 

Depois, foi o povoléu de roldão pelos corredores, qual entrada no Palácio de Inverno, com escadas que notei que desciam e subiam de seguida, até que entrámos numa sala, onde demos de cara com o almirante Rosa Coutinho. O Conselho devia estar interrompido e o almirante, com o seu sorriso largo, olhando o nosso tom decidido e grave, lançou, divertido: “Até parece que vêm fazer um golpe de Estado!”. 

Foi então que se ouviu uma voz, saída de uma cadeira à esquerda da porta por onde entráramos, e em quem não havíamos ainda reparado: “Eu não lhe dizia, meu almirante, que a rapaziada acabava por aparecer por cá?!”. Era uma figura muito conhecida do MFA, desde sempre muito ligadao ao PCP. 

Nesse instante, olhei para o Agostinho Roseta e ambos concluímos, em silêncio, estarmos a fazer o papel de “inocentes úteis” numa manobra muito bem urdida pelo "partido" e pela “esquerda militar” que lhe era afeta. 

Depois, as coisas precipitaram-se. Saímos para uma sala maior, os membros do Conselho acabaram por se juntar à tropa "amotinada" que nós éramos, houve uma dura troca de palavras durante um quarto de hora, com Vasco Lourenço a tentar ser a força moderadora do lado dos conselheiros, tendo o presidente Costa Gomes acedido, finalmente, à realização da Assembleia – esse areópago de cerca de 240 militares que era uma espécie de parlamento da revolução. 

Meia hora mais tarde, perante o entusiasmo de muitos e o visível incómodo de alguns, estávamos a reunir, de volta à calçada das Necessidades, aquela que ficou conhecida como a “assembleia selvagem” de 11 de Março, uma Assembleia do MFA convocada em termos mais do que duvidosos e com uma composição mais do que nunca “ad hoc” – de que a melhor prova era a minha própria presença, que dela não fazia parte formal, embora, noutra qualidade, tivesse estado presente em reuniões anteriores, o que voltaria a repetir-se até julho. 

Aquela foi a noite dos confrontos verbais extremos, de um apelo pateta e isolado a fuzilamentos de “traidores”, de uma imensidão de intervenções dramáticas, em que até eu não deixei de meter a minha breve colherada oratória. 

Às sete da manhã, estava a tomar pequeno almoço com o José Rebelo, então correspondente do “Le Monde”, sedento de notícias, numa leitaria ao Saldanha. 

O dia correu numa imensa agitação e, na noite desse já 12 de Março, ajudei a votar, numa assembleia do Exército, os nomes para o Conselho da Revolução, que a reunião “selvagem” da véspera criara. A minha legitimidade para participar nesse exercício era mais do que duvidosa, mas os tempos eram o que eram. 

Antes, porém, num intervalo, fui procurado pela mesma figura que na véspera encontrara em Belém, a qual, a pretexto de felicitar-me por uma intervenção feita momentos antes, me deu a ler, para consideração e eventual apoio, uma proposta com nomes para figurarem como representantes do Exército naquele novo Conselho. O nome do próprio constava da lista. 

Olhei para ele, “escaldado” pela cena de Belém, e retorqui apenas: “Não acha essa lista demasiado óbvia?”. Voltou-me as costas. Eu podia continuar a ser inocente, mas havia coisas para as quais já não me prestava a ser útil.

sexta-feira, abril 29, 2011

David Lopes Ramos (1948-2011)

Morreu David Lopes Ramos. 

Fui instrutor militar do David em 1973, na Escola Prática de Administração Militar, em Lisboa. Dei-lhe então aulas de "Acção Psicológica" (isso mesmo!). Vimo-nos fugazmente nos corredores da Revolução. Cruzámos histórias divertidas desses tempos nas poucas vezes que nos voltámos a encontrar - lembro, em particular, uma longa conversa numa esplanada no Funchal, ainda nos anos 70, onde descobrimos que ele era dois dias mais velho que eu, e uma noitada em Lamego, no final dos anos 90, num debate jornalístico-político, sob um pretexto vinófilo. Nunca cheguei a responder a um convite que me formulou para escrever um certo texto para o "Público", durante o tempo em que eu estava no Brasil. 

David Lopes Ramos era, para mim - e para muita gente com uma opinião bem mais qualificada que a minha -, sem a menor sombra de dúvida, o maior crítico gastronómico português.

domingo, abril 24, 2011

As vésperas de Abril


Com o ar sereno que projectava confiança, a que a calvície precoce também ajudava, o António juntou-se à mesa do Montecarlo onde, sem arranjos prévios, nos íamos encontrando em algumas noites desses últimos meses de 1973. Forte da sua aura de resistente, que sabíamos ligado ao “Partido” ainda antes das lutas de 69 em Coimbra, com contactos cuja solidez nos não passava pela cabeça pôr em causa, lançou em tom algo displicente, seguro de antecipar a nossa ignorância: “Então, já há mais novidades de Castelo Branco?”. 

Porque outra coisa não seria presumível na sua boca, habitualmente dada ao sério reportar de eventos heróicos das “massas”, logo nos cheirou a bernarda política sobre a qual, porém, a nossa troca de olhares rapidamente traiu uma amesquinhante comunhão no desconhecimento. Explorando o embaraço colectivo, o António, sem largar o tom algo sobranceiro de quem “bebe do fino”, mas já aberto a alguma generosidade informativa, lá esclareceu: “Então vocês não sabem do levantamento de rancho e da saída das tropas para a rua?”. 

Ninguém sabia de nada, ninguém tinha ouvido falar de qualquer movimentação de tropas, parte substancial da mesa acordara nesse segundo para a própria existência de um regimento em Castelo Branco.

Registe-se, para a História, que era tudo mentira, que nem uma palha mexera na tropa das Beiras, que o boato surgira, como habitualmente, da magnificação de uma qualquer rixa menor, lida à luz da matriz de esperança que à época pintava qualquer buliço castrense, com que a rapaziada à roda do PCP ia alimentando a perpétua madrugada dos amanhãs que por cá tardavam em cantar.

Era assim o Portugal de então, para quantos dentre nós, na casa dos 20 e dos 30, nos entretínhamos, na cavaqueira após o jantar, a cultivar pequenas historietas com ressonância política, enquadrando-as nessa manta de retalhos informativos que individualmente coleccionávamos e que nos dava a ilusão de estarmos a acompanhar o curso das coisas, de percebermos o fio condutor do que politicamente se passava à nossa volta.

(Previno, desde já, o leitor que não encontrará, no que se vai seguir, veleidades de generalização sociológica e que assumo, sem hesitações, o carácter subjectivo da minha própria experiência pessoal e o datado simplismo da perspectiva que deixo registada. Mas arrisco poder representar, em muita dessa vivência e desse mesmo olhar, um ambiente que combinou o tempo estudantil de alguns, a diversa vida já profissional de uns quantos e o percurso jornalístico-intelectual de outros escassos eleitos que quase todos invejávamos.) 

Juntos construíamos, no cultivo do debate de âmbito quase renascentista e da troca do “gossip” político-cultural, nessa Lisboa de pouco antes de Abril, um terreno de convivialidade dispersa que marcou alguma da nossa geração.

A Lisboa dos cafés, onde muitos de nós atenuávamos a solidão de quem caíra na capital um tanto desamparado, era um espaço de absorção, por vezes um tanto impressionista, de uma imensidão de sinais culturais que, ainda que sem grande critério, pressentíamos essenciais à afirmação de uma certa modernidade de pensamento, que nos dava a cómoda sensação de pertença à tribo. 

As novidades francesas recolhidas (sabe-se lá como...) das mesas da Livrelco ou da cómoda solidão da Universitária, os suplementos literários dos vespertinos, os ciclos de cinema francês e as sessões de cine-clube do Chile, os cursos político-culturais e os colóquios no “novo” Centro Nacional de Cultura iam de par com debates mais pesados que atravessavam as páginas da “Vértice”, da “Seara”, do “Notícias da Amadora” ou, mesmo, do “Jornal do Fundão”. À época, “O Tempo e o Modo” estava já entregue a um radicalismo sem remissão, o róseo “Comércio do Funchal” deixara de ser novidade e até o “& etc” perdera a sua graça meio anarca. 

As raras polémicas na imprensa, quase sempre envolvendo apenas figuras de sensibilidades da esquerda, acabavam por funcionar como mecanismos de substituição do debate democrático que não tínhamos e davam a cada um de nós um gozo proporcional à respectiva capacidade de partilha do código de leitura dos textos que o regime censório deixava passar, pela certeza que tinha da sua inocuidade prática em termos de proselitismo ideológico.

Marcados por uma evolução mais radical, alguns dessa geração assumiam ao tempo uma actividade política mais empenhada, de paralelo ou em substituição da militância associativa universitária. Uma vezes inserindo-se na proliferação esquerdista em crescendo (do maoísmo à LUAR, passando pelo PRP ou por aquilo que viria a ser o MES), as mais das vezes caminhando ao lado de um PCP cujos “revisionismo” e alegada passividade não esmoreciam as convicções de quem continuava a ver no “Partido” o eixo incontornável da vida política da oposição.

Alguns vindos dos áureos tempos do Vává, dos sobressaltos românticos da Suprema ou das noitadas da Alga, muitos de nós empreendêramos entretanto uma transição geográfica em moda, da Grã-fina até ao Montecarlo. Neste coabitavam já mundos muito diversos, da tertúlia neo-realista à marginalidade sexual, do vário jornalismo a um certo “bas-fond”, confinado este à área do dominó protegido pelos bilhares. O Montecarlo era um curioso espaço plural, uma espécie de permanentes “estados gerais” de uma esquerda em definição de projectos que, quando abonada, assomava ao bife nas “toalhas” e, na rotina da crise, se resumia à imperial do fim de tarde ou à bica da noite.

Esse é também o tempo da passagem frequente para “o outro lado da noite”, de que o Bolero e, mais tarde, o Jamaica vão ser exemplos fortes, aliás numa linha de colagem de mundos que várias gerações de Lisboa sempre se entretiveram a cultivar e de que o Maxime e o Ritz Club, e noutras horas o British Bar, serão pilares eternos. 

A política era, porém, um cenário de referência comum, se bem que com graus muito diversos de afirmação, de sensibilidade e, em particular, de intervenção. O choque eleitoral de 1969, complementado com as ressacas tardias do Maio do ano anterior, tinha ajudado a adubar o saudável mal-estar que se sabia atravessar estudantes, sindicatos e, ao que se dizia, também militares. Se a revolução não parecia estar ao virar da esquina, o fumo do fim do regime pressentia-se já no horizonte, embora sem saídas naturais muito evidentes.

Marcelo Caetano revelava-se sem garra para recuperar, através de reforma ousada, as brechas psicológicas provocadas na opinião pública pelo cansaço da guerra colonial, pela dessintonia institucional com um mundo exterior que se infiltrava no país por todos os lados, tendo como pano de fundo a crise económica que a situação petrolífera acentuara no edifício do regime. O marcelismo, fórmula recauchutada do salazarismo por via inábil, havia-se refugiado na revisão semântica (DGS, ANP, Exame Prévio) como elemento de auto-convencimento da vontade da mudança, desmentida pelo abandono com estrondo da “ala liberal”, pela forçada inoperância da solução SEDES e pelo enveredar pela reciclagem do pessoal da “situação”. Marcelo simbolizava a modorra do empate político, entre os “ultras” que pareciam tutelar Tomás e o bando disperso de renovadores sem aparente liderança.

O “Expresso” era a face mais visível do descontentamento do pessoal mais liberal - que, há que confessá-lo, muitos de nós olhávamos à época com algum desdém, por identificarmos com um sector da classe política dominante que apenas vivia na não respeitável ânsia de tentar garantir espaço para uma qualquer via reformista que evitasse a ruptura radical. Ainda assim, o jornal era a porta mais aberta ao nosso “voyeurisme” face ao regime, que apreciávamos com algum deleite exterior, porque era muito mais criativo que o discurso ainda um tanto reviralhista do “República” e só acompanhado pela subtileza persistente do “Lisboa”. 

Mas a guerra continuava a ser, para muitos dentre nós, o verdadeiro elemento de fronteira que distinguia o que era politicamente correcto (o termo tinha então um significado bem diferente do actual) de tudo quanto se colava ao regime. O estatuto dos “movimentos de libertação” impunha-se então como um dogma sem contestação, erigido mesmo num símbolo de pureza ideológica que utilizávamos para absolver as nossas próprias fraquezas. Estar desse lado, sem condições, impunha-se à esquerda de então como uma evidência, um pouco como o que sucedeu mais tarde a todos nós com a causa timorense.

É claro que nem todos tinham a mesma visão táctica. Em crescendo, os maoístas iam ocupando com eficácia o terreno das escolas, sofrendo, ciclicamente, uma repressão selectiva que potenciava novas ondas de contestação, que o regime se via em palpos de aranha para controlar. Das manifestações-relâmpago à proliferação panfletária, os grupos que se reclamavam de Pequim e Tirana iam tecendo um interessante, embora heterogéneo, movimento de destabilização académica que, como sempre, desagradava profundamente ao PCP, que perdia em terreno o que ganhava em diabolização ideológica.

Para os comunistas “oficiais”, que a polícia continuava a manter como alvo preferido, o período eleitoral de 73 consagrara, porém, o passo unitário prenunciado no Congresso de Aveiro, ao terem conseguido um entendimento com a corrente socialista, o que atenuou os dissídios fratricidas de 69. A isso se cumulava o seu crescente ascendente junto de uma parte do movimento católico, cada vez mais radicalizado desde os acontecimentos da Capela do Rato, parte chegando mesmo a ligar-se a uma deriva bombista, que o próprio PCP se vira forçado a acompanhar por via da ARA. 

Algumas faixas do movimento católico democrático mantinham-se, contudo, à distância destas tentações e fixavam o pessoal político que caminhava na órbita declaratória da SEDES, que o 25 de Abril viria a espalhar pelo PS e pelo PPD.

Num registo menos dado a movimentações de massas, os socialistas haviam finalmente concretizado em Bad Münstereifel a sua estruturação em partido, sob um programa político algo avançado para a sua base social tradicional. Esta continuava a não ultrapassar as profissões liberais de província e um conjunto de quadros urbanos da pequena e média burguesia, que em Lisboa se sabia agrupados num sector da “Seara”, em cooperativas e em alguns ritos persistentes, para além de cada vez mais dominantes na linha do “República”. Ideologicamente, continuavam federados pela imagem exilada de Mário Soares, recém-prestigiado pela publicação de um “Portugal baillonné” que nos chegara pelas cumplicidades na “Barata”, na “Moraes” ou na “Opinião”.

Neste quadro, onde seguramente falta muita gente, começavam finalmente a aparecer os militares. De início eram apenas uns rumores de descontentamento de carreiras, através de uns textos que relevavam mais do corporativismo que da revolta com possíveis consequências. Sabia-se de Spínola e da sua corte de apaniguados da Guiné, mas temia-se que a distância que o separava de Kaúlza fosse sempre mais curta do que a que ia até à Esquerda. Entre as operações “Mar Verde” e “Nó Górdio” não se via uma diferença que justificasse um mínimo de crédito. Longe pareciam os tempos dos militares políticos da Sé ou de Beja, e só os mais informados conheciam Melo Antunes, embora duvidassem que tivesse condições para levar à prática o seu rigor.

Reconheça-se que a experiência de convivência militar de muitos de nós, muito em especial desde os penosos tempos de Mafra, não aconselhava ao alimentar da esperança numa regeneração das Forças Armadas, que o passado ensinara penderem facilmente para o partido da ordem, temerosas com os descontrolos da rua. Acresce que, com escassas excepções, originadas pela abertura social do recrutamento, os militares de carreira que íamos frequentando, se bem que sensíveis a um certo desinquietar ideológico esquerdizante, nos pareciam ainda muito presos a reflexos de casta. Daí as reticências, e até alguma distância, com que víamos as suas movimentações e as raras virtualidades que lhes atribuíamos. 

Felizmente, a realidade tem muito mais imaginação que os homens. Nesses idos de 73 e inícios de 74, a força da movimentação democrática na tropa acabou por nos surpreender a todos, pela inesperada conversão de reivindicações corporativas, de raiz algo discriminatória face aos milicianos, numa consciência de poder potencial que levou à definição de um inesperado programa de democratização, com o fim da guerra como cenário, embora então apenas implícito. 

A certa altura, aqueles que, como eu, serviam de militares a prazo, foram obrigados pela força das coisas a ter de levar a sério a “rapaziada do quadro” e a tentar integrar a nova onda política que se começava a formar, quanto mais não fosse para ensaiar participar nalgum controlo do sentido do seu rebentamento. 

As informações que nos iam chegando começaram a prenunciar coisa séria e forçaram-nos mesmo a gizar um entendimento exterior, por sobre as nossas próprias divisões políticas. Recordo duas tumultuosas reuniões de milicianos - uma delas em Campolide, outra perto da Almirante Reis - onde, num granel organizativo e informativo que roçava a irresponsabilidade em termos de segurança, verificámos o muito que estava a mexer no “quadro permanente” e que as coisas tinham já uma dimensão que seria suicídio não procurar explorar.

Verdade seja que, para muitos, não era claro se a ruptura pressentida iria, de facto, desembocar numa linha afirmadamente democrática (e muito socializante, como alguns então pretendíamos) ou se, ao invés, não estaríamos a dar vento e a ser inocentes úteis para uma qualquer “quartelada” da qual nos acabasse por sair um Kaúlza ou figura de idêntico jaez. Mas a parada valia o risco.

Seguem-se a edição do “Portugal e o Futuro”, a cena da “brigada do reumático” e as demissões de Spínola e Costa Gomes. Não havia ilusões de que o Portugal que emanava do livro de Spínola era uma espécie de gaullismo requentado, sem óbvio futuro mas com a simpática virtualidade de dividir as hostes e trazer para o campo contra o regime sectores a que a Esquerda tradicional não chegaria nunca. A aventura das Caldas não nos sossegou quanto ao que resultaria de um golpe militar, mas deixou-nos mais optimistas face ao estado de alma dos que discretamente se mobilizaram então para o apoiar.

Nas noites inquietas que se seguiram, cruzámos boatos e revimos sinais, para tentar perceber em que sentido o que estava prestes a acontecer encaminharia o futuro de todos. Ninguém tinha uma percepção total das coisas, mas a progressiva junção de dados começava a tornar o “puzzle” mais coerente e com perspectivas de resolução.

Estou a ver o sorriso nervoso e o tom de gravidade histórica com que o António Reis nos disse, na biblioteca do quartel da EPAM, ao fim da manhã de 24 de Abril : “É hoje à noite!”. Quando saiu, os três ou quatro que partilharam o segredo entraram num minuto estranho de silêncio, na consciência do peso insuportável da informação recebida. Todos sentimos que o dia seguinte - a que ninguém se lembrou então de chamar “25 de Abril” - seria o princípio de uma história diferente para todos nós, acontecesse o que acontecesse.

O resto é conhecido. Não me consta que o outro António, de que lhes falei no início do texto - e que por aí anda -, haja aparecido nessa noite no Montecarlo a anunciar o arranque do Maia da parada de Santarém ou os golpes de mão à RTP e ao Rádio Clube, para daí a pouco. E ninguém lhe terá dito que, a essa mesma hora, Castelo Branco estava - agora sim!- a sair para a rua, rumo à vitória por que lutara. 

O Montecarlo é hoje uma loja espanhola, mas os espaços de liberdade que se abriram nessa noite valem bem todos os cafés do mundo que perdemos.

(Recupero aqui um texto que publiquei, há 15 anos, na revista "Camões".  Não lhe mudaria uma vírgula)

sábado, abril 23, 2011

Otelo

Algumas pessoas espantam-se com afirmações recentes de Otelo Saraiva de Carvalho. 

Vale a pena notar que nada de isto é novo. Todos os anos, pela primavera de abril, alguma imprensa vai desencantar Otelo, que, honra lhe seja!, não se furta a aproveitar esse warholiano nicho de cíclica visibilidade para dizer umas coisas ao lado do "politicamente correto". Já faz parte da "saison". Os "abrilistas" entram em agonia, os seus detratores deliciam-se com o que acham serem os deslizes do ex-militar. Passa abril e Otelo volta a desaparecer. Até para o ano.

Não podemos pedir que Otelo não fale, porque todos nós devemos a Otelo a possibilidade de dizermos aquilo que nos vem à alma, até mesmo dizer que, "assim", o 25 de abril não terá valido a pena, que seria bom se a democracia pudesse contar com alguém com a inteligência de Salazar - como se houvesse figuras de neutral sapiência que, qual Fouché, serviriam todos os regimes.

Conheço mal Otelo Saraiva de Carvalho mas, diga-se desde já, tenho, face a ele, toda a gratidão do mundo. Por tudo o que fez por nós, há 37 anos. Algumas pessoas não perceberão isso. Problema delas, como dizem os brasileiros.

Um dia, em inícios de 1983, em Luanda, cruzei-me com Otelo num hotel. Não nos víamos desde o "verão quente", dos corredores do MFA, de idas ao Alto do Duque. Convidei-o a vir almoçar no dia seguinte a minha casa, com o João Sobral Costa, um amigo comum, um gigante de bondade que, como capitão da Força Aérea, havia feito parte do grupo ocupante do Rádio Clube Português, na noite de 25 de abril, e que trabalhava então em Angola. Sugeri que se nos juntasse o Arlindo Ferreira, outro capitão de abril, que estava em Luanda para outras "guerras" (e que já faleceu). Por aquelas "makas" (uso uma expressão angolana) em que a família militar (e a de abril ainda mais) é useira e vezeira, não se reuniu consenso para o Arlindo se nos juntar.

No dia do almoço, vim à porta de casa buscar Otelo, que ia acompanhado da mulher e de uma figura que não vem para o caso (mas que talvez pudesse explicar muita coisa). A minha residência era no "compound" da Embaixada, onde também funcionavam os serviços e o consulado-geral, na então rua Karl Marx, que antes fora chamada de Vasco da Gama e que, hoje em dia, é avenida de Portugal (evolução toponímica que daria para um mestrado...). 

A grande maioria dos funcionários da nossa missão diplomática em Luanda era constituída por antigos quadros da administração colonial, que tinham visto o percurso da sua vida perturbado pelo 25 de abril e pela independência do país que, em geral, sofriam bem mais do que celebravam. Não era, assim, legítimo pedir-lhes que entoassem loas à chegada do estratega da Pontinha. Um deles, boquiaberto, perguntou-me: "É o...?", sem ousar dizer o nome. Era, confirmei-lhe, e, nesse segundo, devo ter caído uns furos na sua escala de consideração, bem como na de outros a quem terá contado a inconveniente frequentação social do jovem diplomata que eu então era.

Esse almoço com Otelo foi uma ocasião que recordo como bastante simpática. Ele e o João Sobral Costa, que haviam sido vedetas de um filme onde eu só fiz umas "pontas" como figurante, conflituaram versões sobre o "documento do COPCON" (demoraria muito explicar aqui o que isso foi) e outras cenas desses tempos movimentados. Recordo-me de lhes ter lido extratos de um livro que Otelo não conhecia, escrito por um certo militar, onde se criticava o seu "silêncio" durante a célebre "assembleia selvagem" do MFA, em 11 de março de 1975. Rimo-nos todos, porque, como eu era ali o único que podia atestar, Otelo, de facto, não tinha então falado porque... não havia estado presente nessa tão badalada reunião!

Otelo chegara a Luanda vindo de Maputo. Iria partir dali para a Líbia. Alguma coisa importante, da sua vida e da sua história pessoal futura, iria ter a ver com essa viagem.

Otelo Saraiva de Carvalho é uma figura reconhecidamente controversa. Será. Porém, para mim, será sempre muito mais do que isso. Ponto.

Em tempo: Otelo Saraiva de Carvalho acaba de publicar "O dia inicial", um livro que conta, hora a hora, a sua leitura do 25 de abril. Li-o rapidamente mas, com franqueza, não me pareceu muito interessante. Além disso, as pequenas notas pessoais inseridas no final são de um impressionismo demasiado ligeiro. O seu velho "Alvorada em Abril" continua a ser muito mais curioso.  

sexta-feira, novembro 26, 2010

25 de novembro

Para alguns, será talvez um pouco estranho estar a escrever sobre uma data, dois dias depois da passagem da mesma. Mas, a pedido "de várias famílias" (como se dizia, noutro tempo, noutra imprensa), aqui fica a minha memória breve do 25 de novembro de 1975, já 35 anos depois dessa data.

O chamado "25 de novembro" configura uma espécie de resultante  final de toda a grande confrontação político-militar que se viveu ao longo do ano de 1975, em especial entre Março e Novembro, mas que tinha tido já afloramentos conflituais na questão da lei da "unicidade sindical" e nas discussões em torno do plano económico coordenado por Melo Antunes.

No "11 de março" desse ano, um setor ultra-conservador português, liderado pelo general António de Spínola, havia caído na "ratoeira" de tentar um golpe de Estado, sem preparação, o qual, de certo modo, havia sido antecipado pela chamada "esquerda militar", que então dominava as Forças Armadas. Recordo-me bem da frase proferida pelo almirante Rosa Coutinho, durante a assembleia do Movimento das Forças Armadas, nessa célebre noite: "Sabíamos que estavam a preparar qualquer coisa, assustaram-se e nós ficámos à espera que saltassem. E eles saltaram". Na sequência desse frustrado movimento, a Revolução portuguesa acelerou-se, foram decretadas nacionalizações e foi criado o Conselho da Revolução.

Já no "25 de novembro", seria o desespero de certos setores militares de extrema-esquerda, aliados à ambição irrealista de algumas estruturas civis, que levou a que viessem a cometer um erro simétrico: tentar um golpe militar, sem para tal terem criado um mínimo de condições para o seu sucesso. Neste caso, acabou mesmo por ser a esquerda militar moderada, pela voz de Melo Antunes, que impediu que alguns setores conservadores mais radicais, e outros conjunturalmente radicalizados, viessem a "explorar o sucesso" e, em especial, a promover a ilegalização do Partido Comunista - objetivo que chegou a ser encarado - ao afirmar que "a participação do PCP na construção do socialismo é indispensável".

Entre o "11 de março" e o "25 de novembro", muita água correu sob as pontes políticas da vida portuguesa. Após a forte viragem à esquerda provocada pela derrota do golpe conservador de Março, tiveram lugar eleições para a Assembleia Constituinte, o resultado das quais mostrou, à evidência, que a opinião votante do país estava, esmagadoramente, num registo bem mais moderado do que aquele que prevalecia na respetiva gestão política. A legitimidade revolucionária era, pela primeira vez, posta em causa pela legitimidade eleitoral e esse confronto não deixaria de ter consequências. Fruto da agudização das tensões, o Partido Socialista e o então Partido Popular Democrático (hoje PSD) viriam a abandonar, sucessivamente, o IV governo provisório.

O primeiro-ministro, general Vasco Gonçalves, cujo isolamento dentro das Forças Armadas se tornara crescente - e que era considerado como muito dependente do Partido Comunista Português (PCP) - decidiu então formar um novo governo (o V governo provisório) com uma representação política muito limitada, formado pelo PCP e por personalidades, civis e militares, os quais, na prática, eram seus "compagnons de route". Essa fórmula fracassou e, por essa altura, um conjunto moderado de militares - "o grupo dos nove" - afirmou-se como uma crescente alternativa à chamada "esquerda militar" (ligada ao PCP).

Vasco Gonçalves foi afastado e um conjunto diverso de circunstâncias (algumas com caráter bem caricato) acabou por colocar à frente de um novo governo pluripartidário o almirante Pinheiro de Azevedo. Os bloqueios político-sociais prolongaram-se por alguns meses, até que a já referida insensata aventura de alguns militares de extrema-esquerda, com a cumplicidade mais ou menos explícita de setores político-partidários, acabou por provocar uma confrontação, para a qual os setores moderados e conservadores das Forças Armada se haviam, entretanto, preparado. O contra-golpe vitorioso deu-lhes o poder militar e a solução pluripartidária de governo pôde prosseguir até às eleições legislativas de abril do ano seguinte.

O "25 de novembro" terá sido a derrota do "25 de abril", como alguns teimam em dizer? O "25 de novembro" abriu caminho a um desequilíbrio nas Forças Armadas que acabou por vitimar, política e militarmente, os setores moderados que foram responsáveis pelo seu êxito? Ou o "25 de Novembro" representou, no fundo, o "25 de Abril" possível na Europa de então?

Neste retrato, alguns podem dizer que falta a questão colonial e os jogos táticos que, no parecer de muitos, estiveram por detrás de certos "timings" desse fantástico "verão quente". Essa seria uma longa história, na qual seria talvez interessante fazer intervir também os interesses de Moscovo, de Washington e de certas capitais europeias. Mas, mais importante do que revisitar todas as teorias da conspiração - que existiu, vinda de vários setores -, talvez devamos convir em que a história do 25 de novembro acabou bastante bem. Essa é hoje, pelo menos, a minha opinião.

sábado, maio 01, 2010

"1º de Maio vermelho"

Hoje, vistas as coisas à distância, tudo nos parece ridículo, mas, há 36 anos, a ameaça feita pelo MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado) de fazer um "1º de maio vermelho", com alguma possível violência à mistura, assustou o Movimento das Forças Armadas (MFA). Alvo crescente da repressão policial, o MRPP fora já responsável, nos meses antes de Abril, por algumas ações de rua, dedicadas à luta contra a guerra colonial, com confrontos relativamente fortes.

O anúncio dessa movimentação no Dia do Trabalhador havia sido feito ainda antes do 25 de Abril, mas todos estávamos conscientes que os "eme-erres" haviam interpretado o golpe militar como um mero rearranjo de "forças da burguesia", sem qualquer impacto nos "interesses profundos das classes trabalhadoras". E o facto de insistirem em organizar uma forte movimentação no dia 1 de Maio, não obstante ter entretanto ocorrido o movimento democrático do 25 de Abril, não sossegava alguns militares.

Não cabe aqui, por ora, fazer o historial do MRPP, um grupo criado em 1970 e com uma génese diferente da dos restantes movimentos que, em Portugal, se reclamavam do maoísmo. Muito ativo no meio académico, com particular expressão em Lisboa, dispunha de uma simpatia clara em sectores da imprensa, bem como em algumas estruturas sindicais de serviços. Conhecido por um grafismo colorido, que se espalhava por folhetos, jornais clandestinos e por muitas paredes, o MRPP era, visivelmente, a principal força política que não saudara a Revolução.

A circunstância de ter o Partido Comunista Português como um alvo prioritário da sua ação, antes e após o 25 de abril, levaria algumas forças bem mais conservadoras a ver o MRPP com alguma simpatia tática, que ficou bem patente nos primeiros anos da Revolução de Abril. A posterior evolução política de alguns antigos membros do MRPP viria a provar que essa aliança tinha também algo de potencialmente estratégico. Para simplificar, e citando a análise da minha amiga Diana Andringa, ela própria ex-MRPP, há a perceção de que a grande maioria de quantos eram seus militantes antes do 25 de Abril acabou "à esquerda" na vida política portuguesa; os que aderiram após o 25 de Abril, muito marcados que foram pelo combate ao PCP, tenderam maioritariamente a fazer uma opção mais conservadora. Esta conclusão pode não ser uma verdade absoluta, mas é capaz de ser a base para uma boa leitura.

Mas voltemos ao 1º de Maio de 1974. O ambiente de confiança que o 25 de abril criara no país poderia ser afetado, na perspetiva de alguns dos militares por ele responsáveis, se acaso o MRPP viesse a promover algumas ações violentas. A confiança pública na Revolução e a própria estabilidade que o país pretendia projetar externamente poderiam ficar em causa se viessem a ocorrer incidentes graves. Que fazer, então? Talvez  seja difícil de acreditar nos dias de hoje - depois do que efetivamente se passou em Portugal, no dia 1º de maio de 1974 - mas uma ideia inicial, que chegou a ser pensada em meios militares, foi tentar encontrar uma maneira de evitar que os portugueses saíssem de casa nesse dia... 

Com o objetivo de tentar discutir a utilização da RTP com esse objetivo, o MFA convocou uma reunião para a Escola Prática de Administração Militar (EPAM), no dia 27 de Abril. Nela reuniu um impressionante grupo de intelectuais, num "brainstorming" chefiado pelo capitão Teófilo Bento, com António Reis e eu próprio a acolitá-lo. Pela sala espalhavam-se figuras como Luis de Sttau Monteiro, Mário Castrim, Luis Francisco Rebelo, Álvaro Guerra, Manuel Jorge Veloso, Manuel Ferreira, Adelino Gomes, Orlando da Costa e creio que duas ou três dezenas mais de figuras cimeiras da nossa vida cultural e jornalística. O debate foi longo, as propostas choveram sobre o modo como a televisão podia vir a ser utilizada para "trabalhar" os primeiros tempos da Revolução. Porém, a ideia de a tornar um instrumento para evitar a saída às ruas no 1º de maio foi, ao que me lembro, rapidamente abandonada. Era, de facto, uma mera questão de bom senso...

Para a história, convém apenas notar: o MRPP lá comemorou, a partir do Rossio, o seu "1º de maio vermelho". Com muitos slogans e sem violência. E o 1º de maio de 1974 acabou, para todo o Portugal, por ser uma coisa bem diferente, como todos recordam.