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sexta-feira, agosto 03, 2018

Que Brasil vem aí?

O Brasil de hoje vive marcado pelo fantasma de Lula. Só um milagre poderá possibilitar a sua candidatura. Se acaso viesse a ocorrer, as suas hipóteses de regressar ao Planalto não seriam poucas. Não sendo assim, há dúvidas de que o velho lema de que “Lula elege um poste” ainda seja válido (foi-o com Dilma Rousseff), que, da cadeia, consiga transferir os seus votos, mesmo para Fernando Haddad, antigo ministro da Educação e prefeito de São Paulo. Resta assim saber se o PT apoiará a candidata do seu eterno “compagnon de route”, o PC do B, que apresenta Manuela d’Ávila.

O PT deverá concentrar a sua luta nos Estados, num jogo de alianças para o futuro, com os territórios do Nordeste como espaço central de influência. Não vai querer perder o controlo da esquerda brasileira, pelo que tudo fará para anular candidaturas fortes que possam vir a crescer próximo dessa área, como seria o caso de Ciro Gomes. Trata-se de uma figura intelectualmente bem preparada, com experiência governativa, mas com uma incontinência verbal e uma arrogância intelectual que sempre o prejudicaram. 

Dizer que Marina Silva, recandidata e antiga ministra do Ambiente de Lula, é hoje uma personalidade de esquerda seria uma afirmação arriscada. Opera num registo charneira, com temas ambientais e um discurso social, que seduz pela genuinidade mas afasta pela relativa vacuidade. 

Marina Silva e Ciro Gomes estão condenados a ser candidatos “solitários” nesta campanha, em termos de apoios partidários – o que, desde logo, os prejudica nos tempos de antena, cuja dimensão temporal, no Brasil, depende do peso dos partidos que lhes formalizam apoio oficial.

No centro do espetro político – mas, ideologicamente, em termos europeus, claramente à direita - surgem as duas candidaturas mais “tradicionais” desta eleição: Geraldo Alckmin e Henrique Meirelles.

Alckmin é o político com mais experiência. Governador e prefeito de São Paulo, foi derrotado por Lula em 2008 e preterido partidariamente em favor de Aécio Neves, nas últimas eleições, ganhas por Dilma Rousseff. Apoiado pelo PSDB, o partido de Fernando Henrique Cardoso, conseguiu garantir o importante apoio do DEM, uma força mais conservadora (que já se chamou PFL e que teve origem na Arena, o partido apoiante da ditadura militar), bem como de um conjunto de outros pequenos partidos do chamado Centrão. Tem assim garantido o maior tempo de antena, o que não é despiciendo. Será isto suficiente para ganhar? Diria que as suas hipóteses são fortes, mas que fraco é o seu carisma, com uma imagem “usada” e sem o fator “novidade” de que Aécio Neves dispunha. 

Henrique Meirelles é um candidato que procura explorar a credibilidade criada junto dos meios empresariais, pelo tempo excelente que teve como governador do Banco Central ... escolhido e apoiado por Lula! Designado pelo MDB (antigo PMDB, que nasceu do MDB, a oposição permitida no tempo da ditadura), do desacreditado presidente Temer, não deve ter um caminho fácil, porque a força política em que se apoia é um partido estranho, que não oferece disciplina política e funciona numa pura lógica de ocupação do poder, sendo talvez esta a sua verdadeira “ideologia”. 

Resta falar do fenómeno Jair Bolsonaro. Dizer que é uma espécie de Trump é talvez demasiado simples. Tem em comum um certo primarismo no eixo do discurso, uma linguagem desbragada e politicamente incorreta, dirigida a um eleitorado simples, eticamente desblindado. O seu “fond de commerce” é o crescente sentimento de insegurança que atravessa toda a sociedade brasileira e a sua reiterada referência é a memória, que afirma como positiva, da ditadura militar que, em 1985, deu lugar à democracia que muitos brasileiros acham hoje que não funciona convenientemente. É talvez o único candidato da rutura, e isso beneficia-o, mas o real apoio às suas teses é uma imensa (mas preocupante) incógnita.

Há agora muitos meses pela frente, cenário de factos futuros que tudo podem condicionar. Mas há uma evidência: é um Brasil visivelmente desencantado, com escassa esperança, que agora parte para esta corrida presidencial. 

segunda-feira, julho 30, 2018

FHC

Há uns anos, numa livraria de Boston, vi à venda um livro de memórias, em inglês, do antigo presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso. Como já então vivia no Brasil, optei por não comprar o livro, tanto mais que me parecia ser uma espécie de síntese biográfica, “para americano ler”. 

Nunca mais pensei na obra, até que há semanas, numa excelente livraria de Brasília, na qual passeava com um amigo, ao falarmos de FHC (como no Brasil é conhecido), ele me perguntou: “Leste “O improvável presidente do Brasil?” “. Perante a minha negativa, ofereceu-me o livro - que é a tradução do volume que eu vira nos EUA. E as férias servem para isto: comecei a lê-lo ontem, acabei há pouco as suas quase 400 páginas. E fico muito grato ao Manuel Lousada por me ter proporcionado esta leitura.

Tenho forte admiração por Fernando Henrique Cardoso. Acho que a sua presidência, que antecedeu a de Lula, fez muito bem ao Brasil e à sua imagem no mundo. Tive o gosto de o conhecer relativamente bem quando lá fui embaixador, e ele já não era presidente, e, desde então, com alguma frequência, tenho-o encontrado por Lisboa, cidade de que muito gosta. Ainda há pouco tempo nos cruzámos num restaurante.

O livro é uma obra equilibrada e serena, com o natural auto-elogio de quem vive contente consigo próprio e com aquilo que acha, e bem, que fez pelo seu país. Não encerra grandes novidades (embora a mim me trouxesse algumas), mas o relato ajuda a melhor entender o seu percurso intelectual, académico e político - desde um período mais radical à sua conversão à social-democracia. E apoia-nos bastante, e de forma equilibrada, na leitura da história contemporânea do seu país.

FHC foi amigo de Mário Soares, é-o de António Guterres e de Jorge Sampaio. Porém - e isto representa muito do que é o Brasil, sem quaisquer juízos de valor negativos associados, mas apenas como mera constatação - no glossário do livro, entre os muitos países citados, Portugal não surge mencionado uma única vez (Soares aparece uma vez). São estes pormenores que nos ajudam a educar a nossa perspetiva sobre o que, na realidade, valemos para os outros, Brasil incluído.

sexta-feira, setembro 21, 2012

Portugal no Brasil

Começou o ano de Portugal no Brasil. 

Nos tempos que correm, não há, compreensivelmente, muitos meios para executar um programa à altura daquilo que se desejaria. Mas todas as oportunidades são poucas para ajudar a fixar na sociedade brasileira a imagem do país que hoje realmente somos e que os brasileiros, na últimas duas décadas, aprenderam a conhecer muito melhor - o Portugal para onde muitos vieram trabalhar e aquele que, numa conjuntura de algum sucesso, mandou para o Brasil capitais e gente qualificada. Nem tudo correu sempre bem, em ambas as aventuras. Mas muito de positivo ficou desse novo ciclo de intenso intercâmbio e o presente aí está a prová-lo.

Às vezes, nos meus tempos de Brasil, ao notar as caricaturas que de Portugal ainda por lá subsistiam, costumava ironizar e dizer que, ao chegarem ao aeroporto de Lisboa, alguns brasileiros ficavam surpreendidos por não serem recebidos por uma velhinha de ar triste, nazareticamente vestida de preto, talvez com algum bigode, a cantar o fado e envolvida num cheiro a sardinhas assadas. Somos o que somos, mas estamos muito longe de tudo isso. E os brasileiros, hoje, sabem-no.

Viva o ano de Portugal no Brasil!

terça-feira, agosto 28, 2012

Cimeiras e cúpulas

Foi ontem anunciado o adiamento da cimeira que estava prevista entre Portugal e o Brasil. Aposto que, no Brasil, os jornais falaram em "cúpula". 

Entre o português de Portugal e o do Brasil não há apenas diferenças na ortografia e na sintaxe. Há, pelo meio (os brasileiros dirão "em meio") de um vocabulário comum muito extenso, muitas palavras que são diversas. Alguns vocábulos brasileiros têm origem no português antigo, que se perdeu em Portugal e que permaneceu naquele país, em especial no Norte. Outros termos derivam da influência das línguas locais, como o tupi-guarani, ou de palavras oriundas de outras migrações, como a italiana, que também muito contribuiu para a abertura das vogais na fonética brasileira. Outras ainda, têm a ver com realidades locais e com uma evolução lexical que procurou, muito mais do que em Portugal, verter para a escrita o produto da oralidade popular. 

Estas diferenças, que não existem com a mesma intensidade noutras grandes línguas internacionais, não devem ser dramatizadas, mas devem ser lidas como fruto de uma diversidade que não há desvantagem em continuar a ser cultivada, desde que não fragilize o muito que a língua tem de comum, nomeadamente na sua expressão no mundo internacional.

Mas toda esta "conversa" vem a propósito das cimeiras ou cúpulas entre os dois países, que nunca têm uma data certa para a sua realização, que têm lugar quando é considerado oportuno por ambos e quando há suficiente matéria, em termos de interesses bilaterais, que justifiquem a ocasião. O mesmo se passa com exercícios idênticos que Portugal tem com a França, a Espanha ou Marrocos. 

Em 2006, teve lugar no Porto uma dessas cimeiras. Na noite que a antecedeu, fui testemunha de uma curiosa cena. Num certo momento, os dois diplomatas, um de cada país, que tinham a seu cargo a preparação do texto das conclusões, pareceram-me algo preocupados. O que é que se passava?  Muito simplesmente, cada país tinha contribuído com textos para essas conclusões e, ao juntarem-se esses mesmos textos num documento comum, ele ficava uma verdadeira "manta de retalhos", com expressões portuguesas e brasileiras, com uma espécie de ortografia e vocabulário "a meio do Atlântico". A imprensa, que era o destinatário principal dessas conclusões, iria, com certeza, ironizar com essas diferenças. E seria ridículo produzir dois documentos com diferentes ortografias, sintaxes e vocábulos.

Foi nessa altura que eu, e creio que o Lauro Moreira, o embaixador brasileiro que viria a ser o representante do Brasil na CPLP, nos voluntariámos para ajudar. Por alguns minutos, dedicámo-nos ao exercício de procurar sinónimos e expressões que, não apenas fossem comuns a ambos os países, mas que, igualmente, não apresentassem diferenças ortográficas. O nosso esforço foi bem sucedido e, nos poucos casos em que não fomos capazes de contornar as diferenças existentes, optámos por colocar as fórmulas portuguesa e brasileira, separadas por uma barra. 

Tudo se resolve, entre Portugal e o Brasil.

segunda-feira, maio 28, 2012

Outro abril

Ontem, um amigo criticou-me, ao telefone, alguma complacência que eu supostamente revelara, ao escrever que tinha "compreendido" o extremismo de um neonazi, deficiente de guerra, que cruzara nos anos 60, na Alemanha, numa historieta que aqui deixei registada, há uns dias. Na conversa, esse meu amigo, adiantou: "por este andar, ainda acabas a "compreender" as bombas do ELP e do MDLP, justificadas pelos dramas pessoais de alguns retornados, zangados com o 25 de abril".

Vamos por partes. É claro que eu podia ter evitado o desabafo que tive, que sabia ir contra o politicamente correto. Mas porque foi esse, de facto, o meu sentimento no momento, achei por bem deixá-lo expresso. Já não tenho idade para me coibir de dizer o que, realmente, penso.

E, porque talvez isso venha a propósito, deixem-me que conte uma cena ocorrida comigo, em S. Paulo, em 2005, na inauguração de uma exposição de pintura de José de Guimarães, na FIESP.

Eram os meus primeiros tempos no Brasil e muitas pessoas queriam conhecer o novo embaixador, recém-chegado. A certo passo do cocktail de abertura do evento, aproximou-se de mim uma senhora idosa que, com extrema simpatia, me disse, com um sotaque já muito brasileiro, mas onde se detetava a sua origem portuguesa: "Tenho sempre muito orgulho em conhecer os representantes da minha pátria! Por isso, queria saudá-lo, senhor embaixador, e desejar-lhe muitas felicidades para o seu trabalho".

Fiquei naturalmente sensibilizado com o gesto daquela simpática compatriota, que agradeci, tendo-lhe perguntado, com naturalidade, quando tinha vindo para o Brasil. Os bonitos olhos da octogenária entristeceram, antes de dizer: "Nem me fale nisso! Vim de Angola, em finais de 1974, deixando para trás tudo o que havia ganho numa vida de trabalho. Com o desgosto, o meu marido acabou por falecer pouco depois da chegada ao Brasil. Graças a amigos, consegui mudar a minha vida. Mas olhe! Nunca perdoarei àquela bandidagem que, no nosso país, fez o 25 de abril!"

Para o amigo que ontem me telefonou, devo confessar que não tive a menor coragem para retorquir à senhora que, com o maior dos orgulhos, eu também fazia parte da "bandidagem" que fez o 25 de abril, que essa fora a data que dera a liberdade à pátria de que ela tanto gostava e que esse fora um dos dias mais felizes da minha vida. "Compreendi" a senhora? Claro que sim. Ponho-me no lugar dela e pergunto-me se apreciaria que lhe oferecessem cravos vermelhos... 

Nunca me passaria pela cabeça tentar explicar àquela senhora, tal como nunca o faço quando cruzo outros portugueses que viveram e sofreram esses tempos, que a tragédia da descolonização desordenada foi, como bem dizia Ernesto Melo Antunes, a outra face da tragédia que foi a colonização. E que, por muitas culpas que possam ser atribuídas aos responsáveis políticos que geriram o país após o 25 de abril, a responsabilidade maior competirá sempre àqueles que, tendo tido a oportunidade histórica de negociar atempadamente a independência das colónias, não o fizeram, pela cegueira da ditadura que defendiam e nos faziam sofrer - a nós, portugueses, e aos povos dessas mesmas colónias, convém também nunca esquecer. O imenso respeito que tenho pelo drama que marcou a vida dos "retornados", que sempre afirmo publicamente, vai de par com aquele que não tenho pela classe política que o 25 de abril, em boa hora, derrubou.

A que propósito trouxe este episódio aqui? Para explicar que, tal como calei a minha profunda oposição ao neonazi que cruzei numa estrada alemã ou a minha insanável divergência com a senhora refugiada de Angola, as minhas convicções não mudaram um milímetro só pelo facto de perceber que o seu percurso de vida os terá conduzido a pensarem como pensavam. Chama-se a isso tolerância.     

quinta-feira, março 15, 2012

Cônsul

Um cidadão português residente no Brasil, empresário sem anterior passado criminal conhecido, foi indigitado para cônsul honorário de Portugal, numa determinada cidade brasileira. Essa indigitação foi formalizada num despacho oficial, em Portugal. Porém, tal decisão só teria efeitos se e quando as autoridades brasileiras tivessem dado o seu assentimento (concessão do "exequatur") àquela nomeação, passo a partir do qual o referido cidadão poderia vir a exercer as suas funções. Instruído para apresentar às autoridades brasileiras o pedido de autorização, o embaixador português no Brasil entendeu, por razões que cabiam no âmbito das suas competências e que se comportavam no quadro do processo de conclusão da decisão interna portuguesa, suster a conclusão dessa diligência. Alguns meses depois, o referido cidadão foi detido pela polícia, sob pesadas acusações. Hoje, a imprensa anuncia que, na sequência desse processo, ele foi condenado a mais de 40 anos de prisão. Essa imprensa chama-lhe "ex-cônsul português no Brasil". É falso. Esse senhor nunca foi investido de tais funções. Sei do que falo: fui o embaixador que tomou a decisão de não dar sequência ao processo da sua nomeação.

terça-feira, fevereiro 14, 2012

Café Filho

Há uns dias, falei por aqui de Café Filho. Um colaborador da embaixada, antes de ir googlar as suas dúvidas, perguntou-me quem era.

Café Filho foi um presidente inesperado do Brasil. Sucedeu a Getúlio Vargas, depois do suicídio deste, em 1954. Foi presidente por menos de um ano e meio, tendo-se afastado do cargo por formais razões de saúde (morreu em 1970, com 71 anos). Nem por isso o Estado Novo português deixou de o convidar para uma deslocação a Lisboa, que ficou nos anais das grandes visitas de Estado realizadas a Portugal.

O objetivo de Lisboa era garantir o apoio do Brasil à sua política colonial, atitude que este país só viria a modificar depois da instauração da ditadura militar. Espera-se que que alguém tenha tido o cuidado de explicar a Café Filho que o banho de multidão que teve pelas ruas de Lisboa era menos a expressão da sua popularidade pessoal do que a mostra da imensa simpatia que Portugal tinha pelo país que representava.

Deve ser interessante procurar, nos arquivos do MNE o argumentário que terá estado subjacente ao convite para uma visita de Estado de tão efémero e transitório personagem. Mas a presciência na decisão deve ter sido, pelo menos, idêntica àquela que nos levou, anos mais tarde, a iniciar a construção do monumental palácio de S. Clemente, no Rio de Janeiro, para futura embaixada de Portugal, quando já estava praticamente tomada a decisão de mudar a capital do país para Brasília...

Voltando a Café Filho, foi-me muito interessante verificar, durante os anos que vivi no Brasil, que raramente alguém o identificava como um chefe de Estado da história do país. E que todos ficavam altamente surpreendidos quando eu lhes revelava que essa figura política havia atravessado em glória a rua Augusta, em Lisboa, em carro aberto, sob aplausos e chuva de papelinhos, como o mostram os jornais da época.

Um dia, ao visitar oficialmente a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, pedi para incluírem uma visita ao "Museu Café Filho". Todos os interlocutores locais ficaram surpreendidos, porque, sem exceção, desconheciam a existência desse museu e, alguns deles, do próprio Café Filho, que não identificavam como potiguar (designação dos naturais do Rio Grande do Norte). Teimosamente, lá consegui colocar a visita na agenda. O museu, afinal, era uma desilusão. Como detetei pelo livro de registo, os seus visitantes eram muito escassos. Recordo-me que havia algumas salas com móveis, estantes com livros e muito pouca documentação. Nesta faltavam fotografias da sua "apoteótica" visita a Portugal, que tanto havia marcado a minha memória de infância. 

sábado, fevereiro 11, 2012

Salvador

A cidade brasileira de Salvador da Bahia atravessou dias terríveis, com a greve da polícia a gerar uma onda inédita de criminalidade violenta. Lembrei-me muito dos bons amigos que tenho naquela que é a terra onde se cruzam, de forma mais visível, as principais componentes humanas que formaram o Brasil. Entre as quais a portuguesa, bem simbolizada no Gabinete Português de Leitura, de que fica a foto.

Durante muitos anos, a vida política da Bahia teve como figura tutelar António Carlos de Magalhães, uma das poucas personalidades que os brasileiros identificam pela sigla do seu nome: ACM (as outras duas são JK, Juscelino Kubitschek, e FHC, Fernando Henrique Cardoso, o que julgo significativo). 

Nascido para a vida cívica durante o regime militar, ACM foi aquilo que no Brasil se chama um "coronel", uma figura dominadora da política e da sociedade local, com uma força económica e mediática que garantiam o prolongamento da sua manutenção no poder. Fazer política, na Bahia, fora do controlo do clã ACM ou contra ele, era uma aventura, no mínimo, muito arriscada. Personagem controversa, arregimentou, ao longo da sua vida, imensos inimigos no Brasil mas, igualmente, uma legião de seguidores na Bahia. Tendo sido um dos políticos mais poderosos do seu país, teve quase tudo o que o destino lhe poderia dar: foi deputado estadual, prefeito, deputado federal, senador, presidente do senado, governador do Estado, ministro, etc. Conservador nas ideias, apoiou a ditadura militar e, no quadro democrático, integrou sempre as formações mais à direita do espetro político. De origem portuguesa, ACM tinha uma profunda ligação afectiva ao nosso país, cujos interesses no Brasil sempre cuidou em apoiar, quando a tal solicitado.

Em início de 2007, a vida política baiana deu uma imensa reviravolta: o clã ACM foi fortemente derrotado nas urnas, perdendo o governo do Estado, que passou para o PT. Na Bahia, Portugal tinha e tem importantes interesses na área empresarial, pelo que, logo após a sua posse, me desloquei a Salvador para encontrar o governador recém-empossado, Jacques Wagner. Nesse dia em que visitava oficialmente o novo poder, fiz questão de convidar António Carlos de Magalhães para um jantar público naquele que era - e não sei se ainda é - um dos locais mais "in" de Salvador: o Hotel Convento do Carmo, da rede das Pousadas de Portugal. O velho político ficou claramente agradado com o gesto do representante diplomático português, agora que os seus préstimos potenciais para o país onde estavam as suas origens ficavam muito mais reduzidos. Mas eu quis manifestar-lhe, num tempo que lhe era então muito adverso, a gratidão que devíamos a alguém que sempre mostrara gostar de nós. Para a história: ACM viria a morrer seis meses depois. 

Da manhã desse mesmo dia, recordo uma historieta que dá bem conta da complexidade da política brasileira. Eu seguia num carro cedido pelo governo da Bahia. A certo passo, decidi interrogar o motorista, um homem muito simples, sobre os novos rumos da política do país: Lula tomara posse para um segundo mandato, escassos dias antes. "Está satisfeito com a reeleição de Lula?". O homem sorriu, deliciado, e disse: "Eu votei Lula. Gosto muito dele. Fez muito por nós, pelos pobres". Um tanto curioso, inquiri: "E ACM? Que achava dele?". O motorista ia dando um salto no banco: "ACM? ACM é um santo! Está ver estes viadutos, estas estradas? Foi tudo feito por ele! Ele é o nosso pai".

Ver dois inimigos jurados serem adulados pela mesma pessoa é um milagre que só os orixás da Bahia poderiam fazer. Espero agora que esses mesmos orixás também possam ajudar a repor a calma na bela cidade de Salvador.

segunda-feira, janeiro 16, 2012

Paulo Martins (1946-2012)

Há dois dias, escrevi um mail a Paulo Martins, para o qual não tinha ainda obtido resposta. Há minutos, um amigo comum informou-me do seu falecimento.

Paulo Martins era um jornalista português que, desde há anos, residia no Brasil. Em Portugal, tinha trabalhado na rádio, na imprensa escrita e na comunicação institucional. Conhecemo-nos em Fortaleza, creio que em 2006. Deu-me então conta do seu grande interesse na figura de Aristides Souza Mendes e da sua ideia de levar a cabo, no Brasil, iniciativas para promover a divulgação da figura do cônsul perseguido pelo salazarismo. 

Em 2008, convidei-o a deslocar-se a Brasília, onde proferiu uma conferência sobre Souza Mendes, em paralelo com a palestra de um outro especialista sobre a figura de Souza Dantas, um diplomata brasileiro que, aqui em Paris, emitiu também vistos que salvaram a vida a refugiados durante a 2ª guerra mundial. Posteriormente, pediu-me um prefácio para um seu livro sobre exemplos éticos da diplomacia, tema que muito o seduzia, a que deu o título de "Humanistas da Lusofonia", de que só existe uma versão informática. Sei que teve também a intenção de desenvolver o projeto jornalístico "Ceará - Fórum empresarial".

Paulo Martins era um homem entusiasmado com a vida, a qual já lhe havia pregado algumas partidas. Deu-me conta, há tempos, de ter problemas graves de saúde, mas também de novos rumos familiares que muito o entusiasmavam. As coisas, como acabo de saber, ter-lhe-ão corrido menos bem, o que curiosamente nunca transparecia de correspondência que trocámos. Entristece-me a ideia de que não vou voltar a encontrá-lo, precisamente no ano em que é minha intenção aceitar um convite para ir fazer uma conferência a Fortaleza.

Um último abraço, Paulo.

quinta-feira, dezembro 15, 2011

Ainda Paulo Coelho



A obra do escritor brasileiro Paulo Coelho, pessoa de quem aqui falei e que vive em Paris grande parte do seu tempo, é vista com algumas reticências, e até sobranceria, por parte de muitos amigos meus do Brasil. Isso não obstante ele integrar já a prestigiada Academia Brasileira de Letras e, a grande distância, ser o autor brasileiro com maior sucesso editorial em todo o mundo.

Sinto, contudo, que essas pessoas ficam desconfortáveis com a ideia de que Paulo Coelho possa ser identificado, pelos estrangeiros, com um escritor representativo da moderna literatura brasileira.

A esses amigos, eu recomendo que tenham uma atitude idêntica àquela que, ao longo da vida, sempre adotei em relação a um grande produto da nossa exportação, que não aprecio, o Mateus Rosé: não consumo mas promovo sempre com o maior empenho, por ser um produto nacional. E até ofereço em casa.

Voltando a Paulo Coelho, recomendo sobretudo que não digam a já clássica mas frágil frase: não li e não gosto.

terça-feira, dezembro 13, 2011

O excelente José Gravia

A notícia chegou-me na noite de ontem: morreu, no Brasil, José Gravia. A generalidade dos leitores deste blogue, bem como a imensa maioria dos brasileiros (que não dos brasilienses, que são os brasileiros de Brasília), não fará a mais leve ideia de que era este português, saído de Ourém para o Brasil, há mais de 60 anos, que a pulso construiu um nome e a rara dignidade de o poder usar como carta de confiança. Eu também nunca ouvira falar nele, até 2005.

O nome de José Gravia tinha vindo à baila, a montante da minha partida para Brasília, numa conversa durante a qual o meu antecessor, embaixador António Franco, me tentou indicar algumas figuras de referência no seio da nossa comunidade. Recordo-me bem do que disse: "Tens por lá um grande senhor, um homem de bem, o excelente José Gravia". Na memória, ficou-me para sempre o "excelente". Quatro anos de Brasília e de contacto com a nossa comunidade confirmaram a consabida agudeza de leitura de carácteres do António Franco.

Já em Brasília, conheci cedo a Raquel e o José Gravia, creio que em casa do António Luis Cotrim. Era um homem grande, com um permanente sorriso, gentil no trato e suave nas palavras. Tinha uma história longa de trabalho, de iniciativa e de sucesso empresarial. "Candango" (primeiros ocupantes de Brasília) por opção de vida, passou a fazer a sua atividade profissional no planalto, entre Anápolis e a cidade-satélite de Taguatinga, onde presidiu à Associação Portuguesa de Brasília, cujas magníficas instalações muito lhe devem. Portugal e o Brasil atribuiram-lhe, a seu tempo, merecidas distinções. Era  conhecido como um homem solidário, amigo de fazer bem. Encontrávamo-nos a espaços e lembro-me bem de uma longa conversa, num dos muitos jantares em que coincidimos, onde me elucidou, com equilíbrio, realismo e sabedoria, sobre algumas peculiaridades da sensível relação entre a política local e os interesses económicos. Reavaliei muita coisa, depois do que dele ouvi.

Aos homens fora do comum devemos evitar os lugares-comuns. Mas são estes que frequentemente ocorrem na reação simples de quantos, não sendo poetas ou mágicos da escrita, pretendem apenas deixar uma nota sentida pela saída de cena de alguém que muito respeitavam. Como o é este nosso abraço à Raquel, à memória do amigo José Gravia.

terça-feira, dezembro 06, 2011

Eros Grau

Chama-se Eros Grau. É brasileiro, professor universitário de Direito com vastíssima obra, antigo e destacado juíz do respetivo Supremo Tribunal Federal e, claro, escritor, já com ficção publicada (e que ficção, senhores!).

Adora Paris, onde muito nos encontramos e saudamos a vida, conhece interessantes histórias e gentes de Saint-Germain-des-Prés. E, o que é mais importante, é um dos meus grandes amigos.

Hoje, em Brasília, Eros lança um livro com memórias (não um livro de memórias), notas resultantes de décadas como atento "flâneur" da zona da "rive gauche" que dá subtítulo ao volume. E avisa-me, agora, que por lá sou também referido: temo o pior!

Não vou poder estar (claro!) no lançamento, como o não poderão o Francis e toda a equipa do "Flore", que já o aguardam, com a Tânia, para o Natal. Apenas quero que saiba que todos, nós e eles, lhe desejamos, com um abraço do tamanho do Atlântico, um grande sucesso editorial.

domingo, outubro 30, 2011

O vaso

Foi ontem anunciado que o antigo presidente brasileiro Lula da Silva entrou num período de saúde mais complicado. Lula é um otimista e nós temos de o ser com ele.

Há dias, em Paris, falámos do que agora faz, da sua fundação. E saiu-se com esta:

- Sabe?, embaixador. Presidente saído da função é como quando a gente tem um vaso chinês. Quando deixa de ter casa grande, não se sabe onde o há-de colocar.

quarta-feira, outubro 26, 2011

Brasil


Fiquei surpreendido com o interesse que concitou a conversa tripartida que o embaixador brasileiro em Portugal, Mário Vilalva, o advogado Pedro Rebelo de Sousa e eu próprio tivemos ao final da tarde de terça-feira, no Grémio Literário, em Lisboa, sob a moderação do escritor Miguel de Sousa Tavares. O Centro Nacional de Cultura e o Círculo Eça de Queiroz patrocinaram também esta iniciativa.

"O Brasil e os brasileiros" foi o mote deste debate muito animado, com pouca "langue de bois", talvez por ter como figura tutelar um "colega" diplomata que não ficou famoso por a praticar - Eça de Queirós.

Pela minha parte, assentei o que disse no seguinte esquema:

- As assimetrias não assumidas nos olhares cruzados de Portugal e do Brasil. Retóricas e realidades.
- O que é Portugal no Brasil contemporâneo: pessoas, economia, cultura.
- A relação Brasil-Portugal na história diplomática comum: encontros, desencontros e ambiguidades.
- O que é hoje (realmente) o Brasil para Portugal? E Portugal para o Brasil?
- O papel histórico da África no relacionamento entre Portugal e o Brasil.
- Do bilateralismo à CPLP. Complementaridade dos mundos multilaterais de Portugal e do Brasil.

terça-feira, outubro 18, 2011

O meu mais longo discurso

Ontem à noite, na inauguração do novo Centro cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, encontrei a professora Cleonice Berardinelli, uma distinta académica brasileira a que já me referi aqui e aqui. E recordei, com ela, uma das mais complicadas cenas protocolares que tive de enfrentar, ocorrida no Brasil, em 2006.

Um ano antes, por feliz sugestão do diretor internacional da Gulbenkian, João Pedro Garcia, eu havia proposto que fosse concedida à professora Berardinelli a grã-cruz da ordem de Santiago de Espada, como forma de manifestarmos o nosso reconhecimento por uma vida académica dedicada ao estudo e promoção da literatura e da cultura portuguesas no Brasil. A minha sugestão foi aceite por Lisboa e, aproveitando uma passagem pelo Rio de Janeiro do então primeiro-ministro, engº José Sócrates, foi decidido organizar a cerimónia da entrega da distinção na grande sala do Real Gabinete Português de Leitura. Creio que mais de duas centenas de pessoas enchiam aquele magnífico espaço, testemunhando o elevado apreço que a professora Cleonice Berardinelli - que entretanto foi eleita para a Academia Brasileira de Letras - a tantos merece.

O programa de trabalho do chefe do governo português no Rio de Janeiro, nesse dia 11 de agosto de 2006, estava já bastante atrasado. O trânsito no Rio é muito complicado, a fixação dos tempos para os vários pontos da agenda fora feita de forma um tanto otimista, pelo que a chegada da comitiva ao Real Gabinete se processou quase uma hora depois do previsto, com outros eventos já à espera. Essa é a sina de muitas deslocações oficiais, especialmente quando se pretende atender a diversas solicitações: as conversas prolongam-se, surgem factos inesperados, as visitas demoram mais do que o previsto. Nada que seja muito grave, mas que sempre induz algumas tensões.

À chegada do primeiro-ministro, conduzi-o, de imediato, para uma sala onde estavam a professora Berardinelli e outros convidados importantes. Nesse preciso momento fui alertado para uma questão "trágica": por uma qualquer confusão, as insígnias da condecoração tinham ficado no hotel, bem longe, na Avenida Atlântica. Um estafeta fora entretanto buscá-las mas, uma vez mais atentas as dificuldades do trânsito, era difícil prever os minutos que demoraria a sua chegada.

Esgotados, com alguma rapidez, as amabilidades e os cumprimentos protocolares entre os presentes na sala, ciente do calendário apertado em que se movimentava, que se cumulava ao atraso anterior, o primeiro-ministro deu, a certo passo, instruções para que a cerimónia se iniciasse, sem demora. Eu era a única pessoa que sabia que, se bem que as formalidades e os discursos pudessem arrancar, elas não se poderiam concluir sem a chegada das insígnias. Mas, confesso, em face dos constrangimentos de horários que se viviam, decidi correr o grande risco de deixar iniciar o ato solene. 

Sobre o momento, surgiu-me então, uma única solução: embora só estivessem previstos três discursos - o do presidente do Real Gabinete, Dr. Gomes da Costa, o do primeiro-ministro português e o de agradecimento, da professora Cleonice Berardinelli - eu iria improvisar uma intervenção, imediatamente após a do Dr. Gomes da Costa... que duraria todo o tempo que fosse necessário, até à chegada física das insígnias.

Instalados na tribuna, segredei ao Dr. Gomes da Costa que deveria procurar ser tão longo quanto possível. Ele, porém, disse-me que o seu texto estava escrito e que só dava para cerca de dez minutos. Notei que o primeiro-ministro ficou surpreendido quando lhe passei uma mensagem dizendo que eu também falaria na cerimónia: protocolarmente, estando prevista uma intervenção do chefe do governo, não tinha qualquer sentido o embaixador falar. Ainda perguntei ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Luis Amado, e ao presidente da Fundação Gulbenkian, Emílio Rui Vilar, que tinha a meu lado na mesa, se não queriam dizer "umas palavras". Com naturalidade, nenhum deles se mostrou disponível.

Estava traçado o meu destino para os próximos minutos. Senti-me como aqueles deputados a quem, segundo a história, são pedidas longas intervenções para dar tempo à chegada de "reforços" para constituir uma qualquer maioria de voto. Com rapidez, alinhei num papel meia-dúzia de "tirets" que iriam servir de esqueleto ao meu discurso: desde notas pessoais sobre a professora Berardinelli, algumas referências aos estudos de literatura portuguesa no Brasil, umas palavras sobre a cooperação entre as universidades e sei lá mais o quê, tudo o que na altura me veio à cabeça como "buchas" possíveis. Naquele espaço sem ar condicionado, o meu crescente suor dava-me a impressão que a temperatura estava a subir em flecha. 

Com esperança de ganhar tempo, ouvia em fundo o Dr. Gomes da Costa que, no microfone, prosseguia, de forma que me parecia incomodamente rápida, no seu discurso. Até que, a certo ponto, o ouço dizer: "... e, para terminar, permitam-me que...". Pronto! Era a minha "deixa". E comecei a ajeitar a cadeira para sair da tribuna, para iniciar a arenga que o destino me obrigava a fazer. Logo se veria como saía...

E foi então, nesse instante, que vi surgir ao fundo, caminhando em passo apressado desde a porta de entrada do Real Gabinete em direção a nós, a figura diligente do Luís Ferreira dos Santos, o imprescindível colaborador do nosso serviço do protocolo, trazendo nas mãos a caixa vermelho "bordeaux" com a grã-cruz de Santiago de Espada. Estava consumado o milagre, logo a mim, que nunca tinha ansiado por uma benfazeja aparição de um santo... E estava salva a honra do convento!

Aqui fica a historieta do mais longo discurso que nunca pronunciei.

segunda-feira, outubro 10, 2011

Eça, o Brasil e nós

No âmbito dos chamados "jantares queirosianos", dedicados a aspetos da vida e obra de Eça de Queiroz, a Fundação Eça de Queirós, o Círculo Eça de Queirós e o Grémio Literário promovem, no próximo dia 25 de outubro, em Lisboa, um debate, seguido de jantar, sobre o tema "O Brasil e os brasileiros".

Moderados por Miguel Sousa Tavares, o embaixador brasileiro Mário Vilalva, o advogado Pedro Rebelo de Sousa e eu próprio, juntar-nos-emos no Grémio Literário, numa charla que pretendemos bem animada.

quarta-feira, outubro 05, 2011

Não enche!

Figura muito conhecida do mundo da banca e da finança do Brasil, desaparecida há uma década, Walter Moreira Salles, que também foi embaixador em Washington, era uma personalidade convivial e conhecida como simpática e de acesso fácil. Por isso, não terá estranhado quando, numa casa de banho de um restaurante, alguém se aproximou e lhe fez um pedido algo bizarro:

- O senhor podia fazer-me um grande favor! Sou empresário e estou ali numa mesa com clientes. Nem imagina quanto me ajudaria se, à passagem, pudesse dar um sinal de que me conhece. Se eles percebessem que sou conhecido de Walter Moreira Salles isso aumentaria, de imediato, o meu prestígio.

Salles terá achado a ideia, se bem que estranha, bastante inóqua. Pelo que anuiu, perguntando o nome do homem. Minutos depois, ao passar pela mesa onde o seu "conhecido" já tinha entretanto regressado, lançou: 

- Olá, João. Como vai você, meu amigo?

A reação é que não foi a esperada. O João olhou para Salles "do alto", como se ele estivesse a importunar a conversa profissional, e respondeu:

- Waltinho, não enche, tá?!

Dois amigos brasileiros, cada um a seu modo, contaram-me esta historieta, há dias. Acho-a um belo exemplar da caridade não reconhecida.

terça-feira, setembro 27, 2011

Lula

A (minha má) foto é de Luíz Inácio Lula da Silva, doutor "honoris causa" pelo Institut d'Études Politiques - SciencesPo, em Paris, ontem, ao final da tarde.

Posso estar enganado, mas creio que na história de SciencesPo nunca terá havido um doutoramento mais animado, com um público jovem tão entusiasta, a assistir a uma "lição" tão extraordinária como a que foi dada pelo antigo presidente brasileiro.

Lula foi igual a si próprio. Leu um discurso mas, além disso, fez um brilhante improviso. Já ouvi muitas vezes Lula falar em público. Nunca encontrei um líder político que, com tanta genuinidade e inteligência, soubesse adaptar tão bem as suas palavras aos diferentes auditórios, sempre com sucesso.

A certo passo, Lula falou do tempo em que os economistas do "Norte" davam conselhos "paternais" ao Brasil e a outros países do "Sul", sobre a melhor forma de conduzirem as suas economias. E Lula perguntou: que diabo aconteceu a esses "sábios"? Onde é que eles se esconderam, agora que o "Norte" tanto precisaria das suas soluções?

Lula da Silva, no termo da sua intervenção, fez um forte elogio da política. Chamou a juventude a interessar-se pela vida cívica, a não desistir, a superar os maus momentos e as derrotas: "Quando aqui, em SciencesPo, necessitarem de alguém para dar uma aula sobre derrotas políticas, chamem-me! Andei 20 anos a perder eleições. Em política, aprende-se muito com as derrotas, podem crer."

terça-feira, setembro 06, 2011

O Arnaldinho

Tínhamos convidado aquele jovem casal brasileiro para jantar, em nossa casa, em Oslo, nesse início dos anos 80. Ele era um diplomata que, numa situação transitória, viera fazer uma "encarregatura de negócios" - isto é, substituir o embaixador - à Noruega, por alguns meses. A mulher e filho haviam-se-lhe juntado, por algumas semanas. Perguntaram se podiam trazer a criança, porque não tinham com quem a deixar. Dissémos que sim, naturalmente.

Eram pessoas muito simpáticas mas, desde o primeiro segundo, percebeu-se que a criança, o Arnaldinho, aí com uns três anos, era uma figura incontrolada na família. Logo após a chegada, desapareceu sozinho pela casa, sob o olhar benevolente dos pais, entrando e saindo, numa infernal correria, de todas as dependências. Na sala, preocupado com os efeitos dessa peregrinação turbulenta por um apartamento não preparado para agitação infantil, ousei perguntar se não seria melhor mantermos o Arnaldinho por ali. Temi - e, mais tarde vim a verificar, com razão - por um puzzle de milhares de peças com que entretinha parte das noites longas, no meu escritório. A custo, percebendo a minha preocupação, o pai lá se decidiu a ir procurar o Arnaldinho. Que chegou, puxado pelo braço, para se sentar junto de nós.

Alguns bibelots que estavam sobre a mesa da sala concitaram, segundos depois, a atenção do Arnaldinho, que se pôs a brincar com umas delicadas peças de cristal. Os pais, esses, sorridentes, mantinham uma serenidade total. A certa altura, não me contive:

- Arnaldinho, não mexa nessas peças, por favor.

A mãe do Arnaldinho lançou-me um olhar onde se lia alguma leve reprovação pelo meu comentário repressivo, aparentemente por estar a limitar a liberdade da criança, que, por acaso, nada tinha partido. Ainda. O pai foi um pouco mais sensível e repercutiu, docemente, o meu alerta:

- Você não toca nessas coisas, querido.

Encolhido num canto do sofá, os olhos do Arnaldinho estudavam opções ofensivas. E logo brilharam ao ver uma taça com cerca de uma dúzia de ovos pintados à mão, uma compra feita, meses antes, em Praga. Eu, nervoso e distraído da conversa, seguia o Arnaldinho pelo canto do olho. A sua mão sapuda avançou então para um desses ovos, agarrou-o, olhou-o e esmagou-o sobre o tampo da mesa, espalhando a casca pintada.

Fiquei furibundo por dentro. Não eram peças muito valiosas, mas eram objetos de artesanato que, meses antes, havíamos trazido bem acondicionados, de carro, durante milhares de quilómetros. Vê-las desaparecer por uma destruição gratuita excedia a minha paciência. O pai do Arnaldinho teve então a reação máxima que, aparentemente, o estatuto da sua autoridade sobre a criança permitia:

- Arnaldinho, não faz isso! Então partiu o ovo!? Não vai partir outro, não?

O Arnaldinho tomou o remoque como um incentivo e a pergunta como um desafio. E, claro, avançou, não para um mas para dois outros ovos, que tiveram idêntico destino.

A mãe, "cool", sorriu. O pai "reagiu":

- Arnaldinho! Arnaldinho! Não parte mais nenhum ovo, está bem? Senão papai zanga-se!

Se ia partir, não partiu. Voei para o Arnaldinho, icei-o pelos braços para o canto oposto do sofá e, num silêncio pesado que por segundos se fez na sala, coloquei a taça de ovos e todos os bibelots que pressenti pudessem ser alvo da sua ação destruidora na prateleira mais alta de um móvel que estava em frente. As mesas ficaram tristemente desertas de decoração. O Arnaldinho ficou especado, sem "targets". E os nossos convidados, surpreendidos pelo meu afirmativo "preemptive strike", ficaram, em absoluto, sem graça.

- Então?! E o que bebem?, perguntei, já com pena dos copos. 

E, nem sei como, lá se passou mais um jantar... diplomático. Por onde andará o Arnaldinho? Hoje, dia nacional do Brasil, lembrei-me dele.

quarta-feira, agosto 24, 2011

O jantar

O convite para aquele jantar fora aceite com gosto. O casal brasileiro que recebia, que tinham conhecido num cocktail, revelara-se muito simpático, pelo que os embaixadores da Sildávia, que estavam em Brasília há escassos meses, acharam ser essa uma boa oportunidade para alargar o seu ainda escasso mundo de conhecimentos na sociedade brasiliense. E, assim, ataviado o embaixador com aquele "esporte fino" que, nos homens, dá saída regular aos blazers azul-escuro com botões dourados, lá avançaram para a festa.

Em Brasília, as ruas não têm nomes. A geografia da cidade é feita quase exclusivamente de letras e números. Na zona do Lago Sul, onde se situam as melhores residências, há uma espécie de pequenos bairros numerados, as "quadras", contados a partir da zona do aeroporto. Tais "quadras" são, por sua vez, subdivididas em ruas também numeradas, os "conjuntos", onde se situam as casas, igualmente identificadas por um número. Se se disser que as "quadras" podem ser "internas" ou "do lago" - QI ou QL -, dá ideia de uma grande confusão. Porém, depois de se perceber a lógica, tudo se torna bem mais simples do que em qualquer outra cidade...

O cartão do convite não permitia enganos. Estava escrito o endereço: "QI 5, conjunto 9, casa 23" (endereço fictício, claro). E lá partiram os embaixadores da Sildávia, com o próprio embaixador ao volante, porque o estacionamento costuma ser fácil e estariam mais à vontade sem motorista, para gozar até mais tarde a festa, nesse sábado de clima ameno. Chegados à "quadra", verificaram que o "conjunto" 9 era o último. Restava apenas procurar a casa.

- Olha, é aquela moradia com as lamparinas a marcar a entrada, disse o embaixador. Já lá está o carro do embaixador italiano, junto à porta.

Com o embrulhinho da caixa de chocolates para a anfitriã nas mãos da embaixatriz, entraram na casa. Era uma magnífica residência, com empregados vestidos a rigor, que logo lhes ofereceram uma taça de champanhe à entrada. Os embaixadores italianos acenaram e aproximaram-se, ficando, por instantes, à conversa.

- Onde estão os donos da casa?, indagou a embaixatriz sildava, desejosa de se ver livre da prenda e de saudar os anfitriões.

- Estão ali, junto da piscina, respondeu o diplomata italiano.

Os embaixadores sildavos encaminharam-se então para um pequeno grupo reunido mais adiante, em que detetaram algumas caras que recordavam (ou seria das páginas sociais da Jane Godoy ou do Gilberto Amaral?). Um casal, com ar de quem estava bem à-vontade na casa, aproximou-se, sorridente.

- Sejam bem vindos, retorquiu a senhora.

- Somos os embaixadores da Sildávia, murmurou o diplomata visitante, com um fácies por onde perpassou uma súbita perturbação.

- Ah! Não estávamos à espera, mas são muito bem-vindos, disse aquela que era, de facto, a anfitriã.

Como costumam dizer os brasileiros, nesse instante "caiu a ficha" aos embaixadores da Sildávia. Estavam na casa errada, na festa errada, com os anfitriões errados. O jantar para onde pretendiam ir era, afinal, numa casa exatamente no lado oposto do "conjunto". Com sorrisos e desculpas, no ambiente de amabilidade brasileira que torna tudo mais caloroso e fácil, lá se despediram dos colegas italianos (que, esses sim!, estavam na festa certa) e rumaram ao jantar onde já tardavam.

Um jantar onde, minutos depois, contaram esta sua saga, para imensa diversão de todos nós, que já lá estávamos, e, em especial, da Regina e do Edson, os verdadeiros anfitriões, que já estranhavam o atraso. (Para eles, aproveito para deixar um abraço saudoso).

Quanto aos embaixadores, não eram da Sildávia nem sequer da Bordúria, esses países tão ao gosto de Tim Tim, mas, neste tempo tenso de relações internacionais, sei lá se gostariam de ser identificados... E também não sei se, um dia, não terão acabado por ser convidados pelos anfitriões em casa de quem entraram por engano. Conhecendo a simpatia dos brasileiros e, em especial, dos brasilienses, é bem possível que sim!

Entrevista à revista "Must"

Aque horas se costuma levantar?  Em regra, tarde. Desde que saí da função pública, recusei todos os convites para atividades “from-nine-to-f...