terça-feira, março 19, 2024

"Duas ou três coisas..."


Guilherme Oliveira Martins publica, na edição de hoje do "Diário de Notícias", o seguinte artigo, com o título de "Duas ou três coisas..."

"Francisco Seixas da Costa ao escrever Antes Que Me Esqueça – A Diplomacia e a Vida dá-nos um bom conjunto de quadros. Como salienta Jaime Gama, a seleção de textos agora vinda a lume com a chancela da D. Quixote, reflete a pluralidade quase heteronímica do autor, demarcando-se do mero anotador de acontecimentos ou telegramas, sabendo “isolar situações, caracterizar contextos, referenciar protagonistas e situar temas, questões e desafios”. Num tempo dado à superficialidade, encontramos, em cada texto, a preocupação de entender a complexidade do mundo e do género humano – lembrando a História e as mil peripécias que ela nos reserva. O discernimento para nos darmos conta do mundo perigoso que nos cerca obriga a não ficarmos pela superfície que nada esclarece e apenas alimenta a indiferença. De facto, “os seus retratos atestam verve criativa suficiente para deixar antever a alma do escritor que neles se disfarça”. Ao lermos o livro, encontramos uma laboriosa escolha de temas e problemas, que enriquecem aquilo a que estão habituados os leitores dos blogues que o autor anima. E falo no plural, porque não esqueço o finíssimo gourmet que o Francisco é, além de um arguto contador de histórias no seu imperdível blogue Duas ou Três Coisas, que recorda o célebre título do filme de Godard de 1967, protagonizado por Marina Vlady. Não se trata de um livro de memórias. É antes o produto de uma escrita solta, com episódios relatados com humor e ironia, e uma adequada dose de caricatura, evitando a crueldade fácil, incompatível com a experiência de um diplomata rodado e como conhecimento de causa. Daí a cautela em não identificar nomes e pessoas, que em nada reduz o interesse da leitura. Devo dizer que, sendo um fiel leitor da sua escrita, dei por muito bem empregado o que usufrui na leitura deste belo livro.

E lembro o episódio impagável do Senhor Ferreira da Residência do Primeiro-Ministro, antigo funcionário, de simpatia inexcedível, no auge do período revolucionário, a deixar entrar sem qualquer identificação ou diligência de segurança o jovem diplomata, que, espantado, pôde chegar junto dos membros do Governo para a entrega de um documento que era oficial, mas que poderia não o ser. E a justificação do procedimento teve-a com uma simplicidade e candura desarmantes: havia tanta gente, ministros, secretários de Estado, chefes de gabinete, secretários e secretários de secretários, ajudantes vários, que não havia qualquer possibilidade de distinguir, até porque todos eram muito parecidos uns com os outros… Noutra ocasião, ficamos com um sorriso ternurento perante o episódio ocorrido no Gabinete Português de Leitura do Rio, numa cerimónia da máxima solenidade, o Presidente Lula embevecido pela arquitetura imponente e pelas estantes recheadas com quase meio milhão de livros, com luminosidade única, deu-se a acenar levemente para alguém que devia estar num dos varandins superiores. Tratou-se, no entanto, apenas de saudar um grupo de empregadas com bata de trabalho que se haviam colocado lá no alto para verem o seu Presidente. 

Num 1º de abril, o Embaixador em Paris não resistiu a lançar em ambiente adequado uma mentira piedosa, verdadeiro poisson d’avril. Cansado de ouvir histórias sobre as famosas concierges portuguesas, usou da melhor circunspeção para dizer: “Há um segredo que vos quero contar, embora peça a maior discrição. Como devem imaginar, a existência de uma imensidão de concierges portuguesas em muitas casas de Paris não passou despercebida aos nossos serviços secretos. Naturalmente, eles não podiam deixar de aproveitar o potencial que representava a existência de um grupo de cidadãs nacionais colocadas em lugares tão vitais para a obtenção de informações”. A ideia era imaginosa e não pôde deixar de causar preocupação nos circunstantes, que certamente passaram a ver com outros olhos aquelas pacatas senhoras, que deveriam ter de ser vistas com mais cuidado… "

2 comentários:

manuel campos disse...


Enquanto me lembro: está na hora de nova reimpressão.

Antonio costa disse...

Zeca, dizia :venham mais cinco. Pois então venham mais 5000...

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