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sábado, maio 20, 2017

Agora Marcelo Caetano

Como aqui assinalei, morreu, há dias, no Rio de Janeiro, António Gomes da Costa, um dos mais destacados líderes da Comunidade portuguesa no Brasil. 

Foi uma figura cuja ação sempre admirei, pela sua empenhada dedicação à promoção de Portugal no Brasil e ao aprofundamento das relações luso-brasileiras. Era um homem profundamente conservador, apreciador confesso das virtualidades do regime derrubado em 1974, crítico regular no novo regime então surgido.

Isso nunca o impediu de manter um relacionamento impecável com os representantes do Estado, em democracia, como foi o meu caso, entre 2005 e 2009.

Num depoimento que hoje enviei para o JL - Jornal de Letras, contei um episódio passado no primeiro encontro que tive com António Gomes da Costa, em inícios de 2005. 

Perguntei-lhe então sobre o estado de conservação da sepultura do professor Marcelo Caetano. Respondeu-me que tinha indicações de que o espaço estava bem cuidado, por pessoas da nossa comunidade. Notei, contudo, a sua surpresa, pelo facto de eu ter abordado o assunto. Expliquei-lhe – e fazia-o com total sinceridade – que era minha preocupação, como embaixador, garantir, durante o tempo que durasse a minha missão no Brasil, que o local onde estavam os restos mortais daquele antigo chefe do governo estivesse preservado com a dignidade necessária, assegurando que a embaixada tinha toda a disponibilidade para auxiliar em tudo quanto, nesse domínio, viesse a ser necessário fazer. 

António Gomes da Costa terá percebido nesse instante que a minha atitude relevava de uma leitura de Estado, muito para além das trincheiras políticas muito diversas que ocupávamos. E julgo que isso contribuiu para que, a partir daí, nos tivéssemos relacionado sempre sem o menor problema. Continuando nós, bem entendido, cada um "na sua", em matéria política.


É que uma coisa que todo o diplomata deve ter sempre bem presente, quando está em serviço no estrangeiro, é que, estando embora sob as ordens conjunturais do governo de turno, ele representa o Estado e é depositário de toda a História que o país carrega consigo. Toda, mesmo.

domingo, maio 07, 2017

O Nuno e o MAR

O Nuno Brederode dos Santos foi militante do MAR, o Movimento de Ação Revolucionária.

O MAR nasceu no início dos anos 60, tempo de grande agitação política e académica, muito marcado pela experiência cubana e por várias outras vivências revolucionárias. Não se confundia com o PCP, nem tão pouco com a extrema-esquerda maoísta que então borbulhava. Tanto quanto julgo saber, o MAR reuniu apenas algumas figuras da intelectualidade, em especial lisboeta. Nuno de Bragança, Manuel de Lucena, João Cravinho, Bénard da Costa e alguns outros integraram essa estrutura clandestina de cuja ação prática e concreta a História acabou por não recolher grandes notas. O MAR, contudo, viria a integrar a FPLN (Frente Patriótica de Libertação Nacional), criada em Argel. 

Ouvi uma história (terá sido ao Nuno?) segundo a qual, numa ocasião de alarme por iminente repressão policial, João Bénard da Costa terá enterrado umas caixas metálicas, contendo documentação sensível do MAR, numa certa zona da serra de Sintra. A precipitação com que essa ocultação foi feita, durante a noite, fez com que, tempos mais tarde, ao procurar esses arquivos, nunca mais tivesse conseguido descortinar o local do esconderijo. Assim, só o futuro trará um dia ao mundo essa prova documental sobre a robusta ação do MAR.

Um dia, o Nuno contou-me que foi destacado pelo Movimento para ir a Roma para um encontro clandestino com uma pessoa, uma mulher, que ele devia procurar numa determinada direção. Ela chamava-se "Raquel" - nome da clandestinidade, claro - e ele devia identificar-se como "Norberto" (inventei agora estes nomes, porque não fixei os que o Nuno me disse).

O Nuno bateu à porta, surgiu uma mulher muito bonita a quem perguntou: "É a Raquel?" Ela disse que sim, inquirindo: "Você é o Norberto". Estabelecido o contacto, passaram a uma sala, para tratar dos graves assuntos políticos que tinham motivado a deslocação.

E agora ficam as palavras do Nuno: "Ao final de cinco minutos de conversa, usando o "Raquel" e o "Norberto", demo-nos conta do ridículo da situação. Ali estávamos nós, sozinhos numa sala de Roma, a utilizar pseudónimos revolucionários, quando ambos nos conhecíamos de Lisboa. Ela era a Maria Bello... Acabámos numa risada!"

(Uma explicação. Este texto já teve um parágrafo final diferente. Nele se dizia que a pessoa que o Nuno tinha encontrado em Roma tinha sido, não Maria Bello, mas Maria Carrilho. Seguramente por lapso meu, ao ouvir, do Nuno, a história, fiz essa confusão. E ela iria ter consequências. Por ocasião da morte do Nuno telefonei à Maria Carrilho, dizendo-lhe que ia publicar este episódio, que me parecia inócuo mas interessante, para explicar “l’air du temps”. A Maria tinha acabado de desembarcar de um avião, chegada de Nova Iorque. A reação que me transmitiu, além da surpresa e tristeza pela morte do Nuno, foi bastante vaga quanto ao episódio, que lhe referi em termos largos: não o negou mas, manifestamente, não lhe dizia muito. Mesmo assim, dei por boa a sua associação ao evento e assim o publiquei. Como nunca me disse nada, acreditei ter sido fiel aos factos. Alguém, anónimo, num comentário, fez-me ver que era eu quem estava errado. Quis dar esta explicação por uma circunstância importante para mim: eu não deturpo deliberadamente factos.)

quarta-feira, abril 26, 2017

Poesia Alegre


Intervenção feita no dia 25 de abril, nos jardins da residência oficial do primeiro-ministro, a convite de Manuel Alegre e de António Costa, na passagem de meio século sobre a publicação do livro de poesia "O Canto e as Armas".

Caro António Costa
Caro Manuel Alegre

E agora, apetecia-me dizer: "Amigos, companheiros e camaradas". Porque era assim que aquela, que esta voz nos surgia pela noite dentro. Mas já lá vamos.

Há dias, na iminência desta ocasião, perguntei a mim mesmo quando terei ouvido falar, pela primeira vez, em Manuel Alegre. Foi num aparelho de rádio lá de casa, em Vila Real, que o meu pai, uma noite, numa espécie de iniciação, assegurando-se que as portadas das janelas estavam bem fechadas, partilhou comigo, pela primeira vez, a escuta da Rádio Voz da Liberdade. Imagino que, nessa noite da minha adolescência, eu deva ter crescido um pouco com essa partilha de cumplicidade, por parte de alguém com quem, anos antes, tinha ido ver Humberto Delgado, na sua passagem pela capital transmontana.

A voz que ouvíamos nessas noites, mas que então não sabíamos ter o nome de Manuel Alegre, tinha uma envolvência convocatória de uma natureza que eu nunca experimentara até então. Para o meu pai, mais do que a proclamação anti-colonial, sobre a qual tinha sentimentos divididos, como ao tempo acontecia com muita gente que se sentia próxima da oposição democrática, era na denúncia aberta do ditador, das patifarias do regime e na revelação daquilo que a imprensa nos escondia que residia toda a virtualidade daquela mensagem.

Com o tempo, já não sei bem como e quando, coloquei o nome de Manuel Alegre naquela voz que nos chegava da "rue Auber, nº 13, Alger, Argélia" - endereço que, no fim da emissão, nos era recomendado que usássemos para eventual correspondência. Nunca ousei escrever para lá, mas, há uns anos, fui a Argel e passei pela porta. Como curiosidade, a rua já não se chama Auber, chama-se Mohamed Chabani. Sem saudades mas com alguma nostalgia, lembrei-me então dessas noites em que colávamos o ouvido ao "Telefunken", embalados pelo "Vozes ao alto" de Lopes Graça.

Passou algum tempo até uma outra noite, também em Vila Real, em que um amigo, então sacerdote católico, me leu pela primeira vez alguns poemas de Manuel Alegre, a tal voz que vinha da Argélia. Esse amigo chamava-se António Cabral e era, ele próprio, poeta.

Fomos muitos, a partir de então, os que conheceram, partilharam e cantaram a poesia de Manuel Alegre - da "Praça da Canção" a "O Canto e as Armas". Para nós, para a minha geração, aquela poesia era muito mais do que literatura. Era a expressão escrita da revolta, era a trova que alimentava a luta anti-fascista, era a vocalização rimada que educou muito dos que vieram a fazer o 25 de abril.

Foi nessa poesia empolgante e empolgada, adjetivada de vigor revolucionário, saudavelmente subversiva face ao estado de coisas que se vivia no país, que então assentávamos, com ou sem música, a nossa esperança na chegada do dia em que por aí viria essa coisa, dificil de obter mas afinal muito agradável de viver, que é a liberdade.

Há 43 anos, o país viu chegar Manuel Alegre, olhou pela primeira vez a sua cara. Lembro-me de o ver com Fernando Piteira Santos a anunciar a criação dos Centros Populares 25 de abril. Uma estrutura efémera, como efémeras foram muitas das iniciativas que brotaram do entusiasmo da Revolução. Para trás tinha ficado Argel e o complexo microcosmos de tentativa de coordenação da luta contra o Estado Novo, aí criado nos anos 60.

Depois, Manuel Alegre, com a naturalidade dos lutadores, enveredou pela política, pelo PS. Foi algumas vezes polémico, divisivo, nunca acomodado, com voz própria. Teve as suas vitórias e as suas derrotas - confortáveis vitórias e honrosas derrotas - porque é essa a essência do regime democrático e é esse o destino de quem se propõe servi-lo. Passaram todos estes anos. Manuel Alegre é hoje, no país cuja liberdade a sua poesia ajudou a construir, um dos rostos mais simbólicos da nossa democracia. Neste primeiro 25 de abril que passamos sem Mário Soares, Manuel Alegre permanece, para todos nós, como um expoente da Revolução e da liberdade que ela nos trouxe.

Mas hoje estamos aqui também - ou essencialmente - para falar e ouvir poesia. E, em matéria de poesia, deixem-me que lhes diga, este é um país feliz. Foi uma excelente ideia, meu caro António Costa, ter um poeta na Cultura. É um "luxo" que só prestigia Portugal.

O livro que hoje aqui evocamos - "O Canto e as Armas", ao lado da "Praça da Canção" - foi uma bela ferramenta literária para a Revolução de abril. Mas eu imagino que Manuel Alegre, nos dias de hoje, olhe para esses dois livros com um sentimento ambivalente. Por um lado, claro que não os renega, não apenas por serem as suas primeiras obras, mas também pelo facto de terem sido aquelas que o fixaram no nosso imaginário. Mas, do mesmo modo, posso crer que, em algum momento, tenha sentido a tentação de "ver-se livre" deles. Porquê? Porque, com toda a certeza, tem o justo sentimento de que muito daquilo que, a partir de então, publicou é, no plano puramente literário, bem superior a essa histórica produção "de juventude".

A vida, contudo, pode ser algo injusta: não conheço quem saiba de cor algum dos seus belos poemas mais recentes. E, no entanto, muitos de nós - a começar por mim - somos capazes de declamar (mal ou bem, logo se verá) os mais antigos dos seus poemas, porventura menos valiosos como literatura, mas seguramente bem mais importantes para a nossa memória afetiva.

Ainda há dias, ao reler com atenção "O Canto e as Armas", me comovi com alguma dessa trova. É que, ao lê-la, eu estava a recordar-me, também um pouco, desses "bons amargos tempos", como uma amiga minha os qualificou ainda esta manhã, em que eu tinha todo o futuro à minha espera. O futuro, esse futuro, aqui está, agora, no Portugal democrático em que vivemos, conquistado pelas armas, há 43 anos, habitado pela palavra dos poetas que souberam fazer rimar abril com liberdade.

Muito obrigado, Manuel Alegre.

25 de abril sempre!

Viva Portugal

segunda-feira, abril 24, 2017

"Portugal Amordaçado"

O "Expresso" decidiu republicar, em pequenos volumes, a versão portuguesa do "Portugal Amordaçado", o "testemunho" (era assim que vinha escrito na edição francesa) escrito por Mário Soares enquanto esteve no exílio, originariamente publicado em França pela Calmann-Lévi, em inícios de 1972. É uma bela homenagem ao pai da nossa democracia, neste primeiro 25 de abril que passaremos sem ele.

O livro é uma leitura pessoal da luta contra a ditadura, com uma história muito detalhada dos grandes momentos desse confronto. Soares, que está nessa luta desde muito jovem, percorre com grande equilíbrio histórico todo esse tempo. A escrita é muito agradável e no tratamento dos factos nota-se a pena de um historiador de formação académica (Soares colaborou com algumas entradas no "Dicionário da História de Portugal", de Joel Serrão). Pela primeira vez com alguma objetividade e rigor, era feita uma "desmontagem" do regime salazarista, subscrita por um dos principais protagonistas da oposição. Antes, havia muito poucos trabalhos de conjunto sobre o oposição ao Estado Novo. Apenas o PCP e o MRPP tinham ensaiado as suas próprias "histórias", em leituras naturalmente algo sectárias.

Comprei o livro no dia 1° de maio de 1972, na sua versão francesa ("Le Portugal Baillonné - Témoignage"), como tenho assinalado no volume que possuo. Tenho quase a certeza de ter feito a aquisição na Livraria Barata, na Avenida de Roma, então uma loja muito pequena, muito diferente da que hoje por lá existe. Mas também poderia ter sido na Moraes, ao Chiado, ou na Opinião, na Rua da Trindade - nesta última livraria eu costumava passar ao final da tarde, depois de sair do meu emprego na Caixa Geral de Depósitos. Essas eram as três livrarias onde, que me recorde, mantinha contactos para a obtenção de livros que se sabia que a polícia podia vir a "recolher".

Mário Soares escreveu o livro em diversos tempos do seu exílio (1969/1974) tendo-o terminado, ao que parece, em Itália, numa casa junto a um lago, emprestada por Mário Ruivo. Um dia comentei isto, que é conhecido, com Maria Barroso e notei, na sua cara, um ar de desagrado. "O Mário, nos fins de semana, durante esse período, ia a Roma, a casa do Mário Ruivo. Mas nunca gostei muito daquilo: parece que o Ruivo fazia por lá umas festas, tinha por lá umas amigas..." Mário Soares riu-se muito quando, mais tarde, lhe contei a observação da mulher...

quarta-feira, abril 12, 2017

Morrer na cama

O seu nome não interessa para aqui. Era um grande (imenso) amigo da minha família, lá por Vila Real. Oposicionista declarado ao Estado Novo, assinara as famosas listas do MUD e, por virtude disso, teve problemas sérios na sua carreira de funcionário público. Era uma pessoa muito divertida, alegre, de cuja simpática companhia, em muitas noites lá em casa, ao tempo da minha juventude, me recordo sempre.

Salazar era o seu ódio de estimação. Detestava o ditador com todas as suas forças. A "situação" estragara-lhe a vida, perseguira-o e ele, claro, não perdoava. Na sua linguagem superlativa e colorida de oposicionista radical - não era comunista, era apenas "do reviralho" - apodava o "botas" de Santa Comba de tudo quanto eram nomes depreciativos.

Um dia de Verão de 1968, surgiu-nos visivelmente feliz: "Já sabem a novidade?! Dizem que o "botas" está com os pés para a cova! Caiu, ao que parece".

A tragédia pessoal do ditador, naquele instante, não permitia, humanamente, que comungássemos abertamente da sua satisfação, se bem que, quer eu quer o meu pai, sentíssemos que uma era de esperança podia abrir-se a partir dela.

Mas o nosso amigo, nessa noite, estava imparável. E continuou: "Mas, cá no fundo, estou triste!". Ao ouvir isto, invadiu-nos um sentimento de estranheza. Seria algum remorso pelo gozo que o acidente de Salazar lhe dava?, pensei eu. Qual quê! Não era nada disso! "É que o bandido vai morrer na cama! Devia ter levado com uma bomba, com um tiro, por todo o mal que fez a tanta gente, pelas prisões, pelas torturas, pela miséria a que condenou este país! Mas não, lá está ele no hospital, rodeado daquela canalha política, cheio de médicos à volta. E vai acabar por morrer na cama! É uma grande injustiça!" Rimo-nos muito deste extremismo, com muita verdade pelo meio, que exorcizava uma vida de revolta.

Salazar ainda demoraria mais de um ano a morrer, mas não tenho nota de como esse amigo reagiu, na circunstância. Apenas sei que a alegria com que, anos mais tarde, recebeu o 25 de abril iria ser rapidamente ultrapassada. Por questões no âmbito profissional, entrou em conflito com estruturas sindicais ou de trabalhadores e teve pesados dissabores. De feroz oposicionista passou a ser, em poucos meses, um afirmado direitista, embora, creio, sem a menor atividade partidária. A esquerda transformar-se-ia na sua "bête noire" e o seu espírito azedou muito, com o avançar da idade. De muito divertido passou a sardónico, sarcástico e ácido: a sua intolerância mudara de sinal. Progressivamente, deixou de aparecer lá por casa, e, embora sem um mínimo de acrimónia no relacionamento pessoal, afastou-se bastante. Os meus pais sentiram e lamentaram isso.

Um dia, ao tempo em que eu estava num governo socialista, cruzei-o num restaurante: "Então agora andas metido com esses gajos!" Ele tinha suficiente confiança comigo, a quem conhecia desde criança, para me dizer isso naquele tom. Eu não tive coragem, pela diferença de idades e pelo respeito que lhe devia, para lhe responder o que me apetecia. Sem exceção, toda a minha família que ele conhecia desapareceu entretanto. Ele também mudou há muito de cidade. Nunca mais o vi e, confesso, tenho alguma pena. Afinal, em comum, tivémos alguns anos de forte amizade e muita estima. E isso não é pouco. A ser vivo, o que duvido, será já muito idoso.

sábado, abril 08, 2017

O trono e os perdigões


A Monarquia acabou em Portugal em 5 de outubro de 1910, com a implantação da República - a segunda surgida na Europa, depois da França, descontado o caso especial da Suíça.

O último rei de Portugal, o jovem dom Manuel, acompanhado da sua mãe Amélia, exilou-se então perto de Londres, onde viria a morrer em 1932.

Não deixou descendentes, tendo, ainda em vida, concordado em que, para o caso de uma hipotética restauração do regime, fosse retomado o ramo familiar do rei dom Miguel. Este, curiosamente, havia sido derrotado no terreno das armas pelo ascendente direto de dom Manuel, dom Pedro IV, sob acusação de usurpador do trono.

Depois de terem tentado sem sucesso, durante a primeira República, derrubar militarmente o novo regime, com o natural apoio do soberano exilado, os monárquicos portugueses colocaram todas as suas esperanças na possibilidade da Ditadura Militar, implantada em 1926, poder vir a abrir caminho à ansiada retoma do sistema.

Durante o Estado Novo, Salazar, cujas simpatias pela Monarquia eram evidentes, jogou com o apoio dos esperançados monárquicos para consolidar o seu poder. Tudo indica que o pragmatismo o terá levado, contudo, a considerar que o risco de provocar um abalo constitucional, pela reintrodução da Monarquia, era grande. Por isso, no único momento da vida do Estado Novo em que a questão se colocou de forma mais clara para alguns setores do regime - aquando da morte do presidente Carmona, em 1951 -, optou por afastar em definitivo a possibilidade de uma restauração monárquica.

Curiosamente, seria Marcelo Caetano, que havia sido um propagandista monárquico, a titular essa sua posição, no Congresso da União Nacional então realizado. Verdadeiramente, a hipótese de restauração da Monarquia portuguesa morreu aí, em termos de exequibilidade.

Essa atitude de Salazar, que foi muito sentida no campo monárquico, o qual, contudo, maioritariamente nunca dele se afastou, viria a abrir caminho à progressiva gestação de uma linha monárquica democrática contra o Estado Novo.

Entretanto, Salazar, depois de ter tido diversos gestos de simpatia para com a mãe do último rei, e em jeito de compensação, autorizou a que o representante da família Bragança regressasse a Portugal, de onde esse ramo fora banido pela República.

O seu descendente, dom Duarte, dito "duque de Bragança" (os títulos nobiliárquicos foram abolidos por lei, logo em 1910, e só subsistem hoje nos círculos saudosistas da Monarquia e por cortesia social que alguns entendem dever manter) é filho dessa figura, de dom Duarte Nuno, do ramo miguelista dos Bragança, nascido na Áustria e que sempre falou mal português (o que, há quem diga, terá sido um argumento mais para justificar a sua não consideração como potencial rei).

Leio hoje na imprensa que um grupo de monárquicos e outras pessoas que, não o sendo necessariamente, a eles se associaram, pretende institucionalizar na lei um lugar protocolar para o representante da família Bragança.

Ao atual representante dessa família, reconhecido pela esmagadora maioria dos monárquicos portugueses (embora não por todos) como a pessoa que, numa hipotética restauração da Monarquia, poderia vir a assumir o trono, tem vindo a ser concedida alguma atenção e a atribuição informal de lugares protocolares, em cerimónias oficiais, facto que, não raramente, provocou reações de desagrado por parte de titulares de cargos da República, confrontados com exageros cometidos nessa discricionariedade casuística.

São sempre decisões "ad hoc", regidas pelas regras da educação e do bom-senso (e às vezes, da falta dele) e, não vale a pena escondê-lo, pela curiosa circunstância de, creio que quase sem exceção, a chefia do Protocolo de Estado, numa divertida e nunca assumida "conspiração", ser quase sempre confiada a diplomatas com propensão monárquica. A regra, contudo, já consuetudinariamente consagrada, tem sido convidar dom Duarte para muitas cerimónias, variando apenas o lugar que lhe é atribuído.

O leitor deve estar a estranhar a palavra "perdigões" no título deste texto. Eu explico.

Ainda ao tempo do Estado Novo, a expressão era utilizada no Protocolo de Estado para designar aquele género de figuras para as quais, não existindo um lugar automático na lista oficial de personalidades, com hierarquia protocolar entre si, havia que "encaixar", em especial nos banquetes e em certas cerimónias de natureza oficial ou semi-oficial. Esse é um problema permanente com que ainda hoje o Protocolo de Estado se defronta, face à frequente delicadeza que decorre das decisões que é obrigado a assumir neste domínio.

Num certo tempo do "marcelismo" dos anos 70, a esse tipo de figuras, cartas "fora do baralho" protocolar, alguém passou a dar a designação de "perdigões". Porquê? Porque Azeredo Perdigão, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, era uma das recorrentes personalidades desse género, para as quais sempre era importante encontrar um lugar protocolar, à luz do bom-senso.

De certo modo, o que a iniciativa dos monárquicos pretende evitar é que dom Duarte continue a ser um "perdigão" protocolar e que, de caminho, a importância da sua família para a História de Portugal seja reconhecida de forma oficial nas cadeiras das cerimónias - já que o assento no trono já lá vai há muito.

Um século passado sobre o fim da Monarquia e quase meio século decorrido sobre o termo ao banimento, num gesto de grandeza histórica por parte da nossa República, que decorre da constatação objetiva da inocuidade política atual do herdeiro da família Bragança, acomodando o gosto que isso pode dar aos ainda crentes caseiros na fé monárquica, não me chocaria* que o protocolo da República se livrasse de um "perdigão" e desse um lugar, sem exageros nem excessos, ao primogénito da família que, entre 1640 e 1910, se sentou no trono português. E escrevo isto como "feroz" republicano que sou.

* (escrevi "não me chocaria". Espero que alguns plumitivos que só sabem ler "as gordas" não venham dizer que faço parte dos proponentes da solução)

sexta-feira, março 24, 2017

24 de março


Gostei de ouvir o ministro Manuel Heitor, na intervenção que fez hoje no auditório da UTAD, recordar a data de hoje, o dia 24 de março, Dia do Estudante.

O Dia do Estudante não é nenhum pretexto para borga e copos, não é uma data lúdica e inconsequente, ocasião para festarolas. É uma data com uma história política. 

Em 1962, foi precisamente a circunstância do governo de então não ter permitido a sua comemoração no dia 24 de março (alguém sabe o porquê de ser essa a data?) que foi a origem da chamada "crise académica", com greves, prisões e o afastamento posterior da universidade de muitos estudantes e alguns professores.

Na sequência dessa repressão, Marcelo Caetano, já há três anos fora do governo, demitiu-se do cargo de reitor da Universidade de Lisboa, iniciando a "travessia do deserto" que, seis anos depois, o levaria ao lugar de Salazar. É assim uma ironia constatar que a sua (imerecida) fama de "liberal" lhe havia ficado do "24 de março" de 1962.

Repito: foi bonito ouvir o ministro falar na data mas, confesso, interroguei-me a mim mesmo sobre quantas pessoas, naquele largo auditório, tinham o 24 de março como uma etapa fundadora da nossa democracia.

E será que haveria alguém por ali que se recordasse da "República 24 de março", uma casa alugado por estudantes de esquerda, que existia no Porto, perto do Largo de S. Lázaro, na segunda metade dos anos 60?

Turras

Os mais novos não conhecem o termo. Os "turras" era a expressão simplificada que, no início da guerra colonial em Angola, qualificava aqueles a quem o regime chamava "terroristas" - isto é, todos quantos lutavam de armas na mão pela independência das colónias portuguesas, das quais se sentiam mais cidadãos do que portugueses. 

Nos idos de 1961, a palavra "turras" andava na boca de toda a gente e sempre desconfiei que a expressão "tugas" representou contraponto fonético de resposta nacionalista para designar os "portugas" brancos (devia escrever "europeus"?) de quem os independentistas se queriam ver livres.

Os "turras" eram portugueses? Na maioria, claro que sim, "jus solis" e "jus sanguinis", como a rapaziada do Direito gosta de dizer no latim que lhe nobilita os pareceres. 
Porquê? Porque eram nascidos no Portugal de lei, fihos de portugueses de lei. Mas seria mesmo assim? Ou não se daria o caso de os pais serem "assimilados", essa deliciosa fórmula racista que o Estado Novo consagrou, como que a dar a "honra" do aportuguesamento a quem vivia nas suas Angolas? E os "turras" brancos, de que o MPLA estava entãbatulhado.

Lembrei-me disto ao ouvir Theresa May dizer que o autor do atentado era "britânico de nascimento". É deliciosa, esta "de nascimento". O assassino das cinco pessoas em Londres era tão "britânico" e europeu como o anormal que hoje, em Barcelos, matou quatro. Este era "tuga" e, se calhar, também será "turra", ao olhar de alguns.

Posso estar enganado, mas com o caminhar para esta sofisticação no léxico, que conduz alguns a discriminar entre os cidadãos de lei do mesmo país, regredimos ao tempo dos "filhos de algo", que a corruptela veio a designar já não sei como - e a que um decreto pós 5 de outubro pôs termo. Definitivo.

quarta-feira, janeiro 25, 2017

A cidade de Ontem

Ao ler que a Santos Júnior, polícia-mor de um dos períodos mais sinistros da ditadura, foi atribuído o nome de uma rua em Coja (se fosse em Corja, não me admirava), dei comigo a pensar se, de facto, não seria justo, para cultivo de uma certa memória afetiva, ser criada, algures no nosso país, uma cidade que tivesse o nome de Ontem. Para aí irem viver poderiam ser convidados, em prioridade, todos quantos, nas redes sociais e nas caixas de comentários dos sites e jornais, permanecem fiéis a um saudoso passado em que, pelos vistos, se sentiam tão felizes. Mas muitos outros seriam elegíveis, como se intui em colunas de jornais e até em certas tribunas políticas residuais. Em Ontem, o Diário da Manhã e o Novidades dariam, ao alvorecer, as notícias a que os seus cidadãos tinham direito - mas nem mais uma, ou, então, "factos alternativos", como fazem as relações públicas de Trump! E iríamos vê-los felizes, cara ao sol, sentados na esplanada do Café do Aljube, com vistas para a Praça do Tarrafal (no centro da praça, em dias de calor haveria um lugar a que chamariam "frigideira"), à qual se acederia pela grande Avenida Oliveira Salazar, de sentido único, que, lá bem ao fundo, conduzia ao Beco Américo Tomaz (com Z). No Centro Social Silva Pais, não muito distante, ouvir-se-ia a Emissora Nacional que os "senhores óvintes" quisessem, obrigatoriamente abrindo com "Uma Casa Portuguesa" ("a alegria da pobreza está nesta grande riqueza de dar e ficar contente"). Na Alameda Barbieri Cardoso, ficaria a Livraria Lápis Azul, que só venderia livros rigorosamente conformes aos cânones do antigo e benquisto regime, sendo de todo excluídos aqueles em que as palavras "liberdade", "democracia" e "povo" pudessem surgir. Em Ontem, Pide seria o nome de uma associação de beneficência, com o Centro de Artes "Estátua", recuperando a tradição de uma instituição com uma benéfica ação que tão deturpada tem sido - embora, felizmente, já haja por estes dias um grupo dedicado de rapazes da historiografia que começa a tentar mudar tais erróneas perceções. O fotógrafo oficial da cidade de Ontem, um tal Rosa Casaco, faria os retratos à maneira, de preferência um "photomathon" com frente e duas laterais, numa moda estética lamentavelmente caída em desuso. E, por falar em "casaco", iria ser com certeza um sucesso o alfaite o local, o conhecido "Vira Casacas", que tanto trabalho tinha tido no 25 de abril. Perguntará o leitor: E a Justiça? E a Saúde? Quem assistiria nesses domínios os habitantes de Ontem? A Justiça, ora essa!, estaria a cargo dessas vestais do direito que eram os juízes dos Tribunais Plenários! E a Saúde, essa não poderia ficar em melhores mãos do que de esses dignos seguidores de Hipócrates que eram os médicos do Tarrafal, de Peniche e de Caxias. Mas não se fala da Educação? Não, porque em Ontem ela não seria necessária, orgulhosa do analfabetismo sadio que outrora imperava. E, sejamos óbvios, os que fossem educados só por engano é que iram viver para Ontem. Resta a ordem pública? Nem por isso! Bastava ficar por lá o capitão Maltez (nunca percebi porque nunca foi promovido, ou, se calhar, foi, depois do 25 de abril e ninguém nos avisou) e nem uma agulha bulia na serena melancolia da paz dos cemitérios. Ah! E, em Ontem, haveria também uma Colónia de Férias (então eles passavam lá sem ter uma coloniazita...). Pela certa, finalmente, a cidade não enjeitaria uma geminação com Santa Comba ou com a angolana São Nicolau, porque há memórias que calam fundo - e calar é algo que Ontem saberia sempre fazer. Um ponto muito importante seria permitir que os cidadãos pudessem sair de Ontem sempre que lhes apetecesse. Não há, porém, a certeza de que isso, necessariamente, lhes agradasse, porque a liberdade é, no fundo, aquilo que eles menos apreciam. Enfim, Ontem é, talvez, o futuro que alguns desejariam. Por que não fazer-lhes a vontade? Será que para a criação desta urbe da saudade se arranja, finalmente, uma maioria decente na Assembleia da República?

quarta-feira, dezembro 26, 2012

António de Figueiredo

Há semanas, uma das mais fiéis amigas deste blogue, Helena Oneto, referiu-se, num comentário, a António de Figueiredo (1929-2006), um jornalista português que passou grande parte da sua vida em Londres. Decidi lembrá-lo hoje.

Para a minha geração, António de Figueiredo era um nome mítico do jornalismo português que, no estrangeiro, que se opunha ao Estado Novo. Representante do general Humberto Delgado em Londres, a partir de 1959, havia trabalhado na secção portuguesa da BBC e no "The Guardian", tendo artigos dispersos por imensas outras publicações. Em 1961, tinha ficado histórico o seu "Portugal and its Empire: the truth" e, em 1975, foi muito divulgado o livro que publicou na Penguin, "Portugal: fifty years of dictatorship". Amigo de Basil Davidson, dedicou, como este, uma grande atenção à luta anti-colonial e anti-apartheid, sendo internacionalmente reconhecido como um especialista na matéria. Após 1974, e de quando em vez, textos seus surgiram na imprensa portuguesa.

Um dia, em Londres, creio que em 1990, o Eugénio Lisboa (com ou sem o Rui Knopfli, já não recordo bem), levaram-me a almoçar com ele a um restaurante italiano de Knightsbridge, onde o Eugénio era "habitué". Ambos haviam conhecido Figueiredo em Moçambique, para onde fora viver aos 17 anos e se iniciou no jornalismo. Envolvido na luta oposicionista em Lourenço Marques, viria a ser preso na sequência das "eleições" perdidas pelo "general sem medo", sendo depois expulso para Portugal. No ano seguinte, rumou a Londres, onde ficou até à sua morte, em 2006.

António de Figueiredo movimentava-se com alguma dificuldade, devido a uma doença de espinha que o limitava. Tinha uma memória fantástica, histórias curiosas sobre o mundo que rodeou o "general sem medo" e sobre o ambiente da oposição à ditadura portuguesa em Londres. Não era aquilo a que se chama um homem naturalmente simpático. Havia nele uma certa amargura e alguma acidez crítica, talvez fruto de uma vida que não fora fácil e do que me pareceu ser a falta de um reconhecimento público, em Portugal, pelo papel político que desempenhara contra a ditadura.

Dois anos mais tarde, convidou-me para ir beber um chá a sua casa, nos arredores de Londres. Era uma residência modesta, onde vivia num mundo de livros, uma imensa e riquíssima biblioteca sobre África, construída ao longo de décadas. Esforçava-se por organizá-la, a fim de poder vender uma parte dela a um comprador público em Portugal, mas as suas condições físicas tornavam difícil a tarefa. Com sorte, consegui arranjar forma de custear um jovem colaborador, que com ele levou a cabo esse trabalho. Julgo que o negócio se concluiu e que António de Figueiredo pôde beneficiar desses recursos, uma soma considerável para a época, nos últimos anos da sua vida. Ainda tive o gosto de testemunhar, em 1993, o almoço em Belgrave Square em que o presidente Mário Soares o distinguiu com a "Ordem da Liberdade". Um gesto que, estou certo, muito apreciou.

Vale a pena ver o que o "The Guardian" escreveu por ocasião da sua morte. Porque não consegui encontrar nenhuma fotografia de António de Figueiredo, deixo a capa do seu conhecido livro de 1961.

sábado, setembro 22, 2012

Manifestação


A manifestação patriótica corria a preceito, naquele entusiasmo encenado com que o Estado Novo conseguia, numa sustentada coreografia, colocar o povo nas praças, para as fotografias que, no dia seguinte, "A Voz", o "Novidades", o "Diário da Manhã" (que a oposição citava sempre sem o til) e o inefável "Diário de Notícias" trariam na primeira página, a testemunhar o "inquebrantável apoio de Portugal à política de Salazar". O qual, diga-se, raramente se dignava estar presente nesses exercícios, deixando ao "venerando Chefe de Estado", Américo Tomaz, a função de pobre catalisador das emoções orquestradas. "Paletes" de autocarros, pagas pelo erário, arrebanhavam patriotas ocasionais, de fato e gravata, através das cidades, vilas e aldeias, que eram dispensados dos empregos e tinham ração garantida para o dia, empunhando faixas que espelhavam a imensa diversidade dos "sindicatos" do regime.

Não fosse tudo isso ter, por detrás, uma longa ditadura e uma sangrenta guerra colonial e até poderia ter alguma graça, dando origem a comédias a preto-e-branco. Não sendo as coisas assim, não podendo Peponne discutir com don Camillo, o humor político disponível tinha de ser procurado nos ridículos do regime.

Nesse dia, naquela Braga de onde o efémero Gomes da Costa arrancara num famigerado Maio, concelebrava a mobilização das hostes António Santos da Cunha, uma avantajada figura da "situação", homem de voz tonitruante, que, durante anos, desempenhou as funções com que o regime controlava as coisas por lá: foi presidente da União Nacional, presidente da Câmara municipal e Governador civil. Já não recordo em qual destas duas últimas funções atuava na ocasião em que, como era hábito, ressoavam, nos discursos, saídos da velha varanda bracarense onde aquelas cenas sempre se oficiavam, as imaginativas referências ao Portugal "pluricontinental e pluriracial" ou "do Minho a Timor" (o que vinha geograficamente a jeito), as loas à sabedoria histórica do "senhor presidente do Conselho", no meio do gongorismo retórico com que o regime organizava a turbamulta tresmalhada, sob o olhar fardado dos polícias e os ouvidos, atentos e dispersos, dos "pides".

António Santos da Cunha atiçava, nessas horas, o patriotismo oficioso, com intervenções entre os vários discursos, feitas de menções às figuras presentes ou a quantos fosse importante lembrar na ocasião, apelando às hostes para, individual e nominalmente, os saudarem. O ausente Salazar e o chefe de Estado recolhiam, como era natural, o grosso da coluna dos aplausos e dos "vivas", mas os ministros e outros dignitários presentes recebiam também, à escala da sua importância, uma quota-parte dessas conclamações. Tudo era feito com conta e peso, medido o nível das personagens. Santos da Cunha, que era um hábil profissional desses instantes, sabia bem o que fazia, organizando sempre em pormenor essa estudada improvisação.

Um qualquer obscuro subsecretário de Estado (o Estado Novo só criou a figura de "secretário de Estado" bastante tarde), vindo de Lisboa na comitiva do "venerando chefe de Estado", ter-lhe-á, a certo momento da manifestação, lançado um olhar inquisitivo, como que a demandar que o seu nome também fosse sufragado pelo vozeirão do edil e pelo subsequente eco da multidão. Santos da Cunha olhou-o, e não conseguindo atenuar o seu tom habitual, sossegou-o, à distância, com os "bês" do Norte, numa frase que ficou no anedotário da "situação":

- O "bibinha" de Vocência, senhor subsecretário de Estado, sai já a seguir, esteja descansado!

Desse povo e desse tempo de "bibinhas", deixo uma bela e clássica fotografia de Gérard Castello-Lopes.

quinta-feira, agosto 23, 2012

Goa

Goa foi um tema que sempre me fascinou, menos pela inegável importância histórica da nossa presença na costa indiana e muito mais pela natureza, que sempre vi como muito ambígua, da relação de Portugal com aquela terra e aquela gente. Há uns anos, essa curiosidade levou-me mesmo a passar por lá uns dias. E, devo dizer com franqueza, saí mais confundido do que estava quando lá cheguei.

No final de 2011, passou exatamente meio século desde que a União Indiana invadiu as últimas possessões que Portugal mantinha na costa do Malabar: Goa, Damão e Diu. Dois enclaves, Dradrá e Nagar Haveli, já haviam sido absorvidos pelo governo de Nova Delhi, em 1954. Uma curta batalha militar veio encerrar uma mais longa batalha jurídico-diplomática, com que o governo ditatorial português pretendia contrariar o processo descolonizador. A perda do Estado da Índia representou um trauma muito importante num país que, nesse ano, já havia assistido às trágicas consequências da sublevação em Angola. O colonialismo português entrava no seu declínio e, com ele, o próprio regime.

Mas, à época, diga-se em abono da verdade, nem só os dirigentes do Estado Novo se recusavam a aceitar o fim do império: grande parte da opinião pública portuguesa, mesmo dentre quantos se opunham a Salazar, mantinha uma atitude favorável (ou, pelo menos, não desfavorável) à manutenção dessa parcela do "ultramar português". Mesmo no seio das forças organizadas da Oposição, essa atitude dominava, convém dizê-lo. Recordo-me bem da emoção provocada em Vila Real, em fins de 1961, aquando da "queda" do Estado da Índia, pela invasão das tropas do "Pandita Nehru".

(Nunca me saiu da cabeça a ideia que criei de que a reiterada utilização adjetivada que a propaganda do regime fazia da palavra "Pandita" - designação elogiosa indiana que era atribuída a Nehru e que, em rigor, significa homem sábio e educado - tinha a ver com a sua similitude sonora com "bandido", tal como, anos mais tarde, aconteceu na América com as expressões "Saddam" e "Satan". Os cartazes com palavras de ordem que diziam "Abaixo o Pandita" e coisas similares assim parece provarem).

Tenho na memória a visão do meu professor de História, dr. Carlos Sanches, não sei bem em que qualidade, a discursar na varanda do Governo Civil de Vila Real, para umas centenas de pessoas que, com patrióticos cartazes, manifestavam o seu pesar pelos acontecimentos. Eu estava ali com o meu pai, um eterno anti-salazarista, mas que estava solidário com a defesa do Estado da Índia.

Na altura, a censura aos media não deixou revelar as dissenções havidas entre o governador-geral Vassalo e Silva e o executivo de Lisboa, com a "heroicidade" de Salazar a mandar, da comodidade de S. Bento, o célebre e gongórico telegrama, redigido para a História e para o "livro branco": "Não haverá nem vencedores nem vencidos, só heróis e mártires". Lembro-me da emoção com que então se ouvia falar do afundamento do aviso Afonso de Albuquerque, bem como da "defesa heróica" levada a cabo pelas forças militares portuguesas em Goa. Só muito mais tarde vieram a conhecer-se as condições miseráveis em que estavam as nossas tropas no terreno e no total irrealismo que representaria uma luta até ao último homem. A vilificação de Vassalo e Silva (a ironia estadonovista nas conversas sugeria a sua "cobardia", ao tratá-lo como "bacilo salvo") foi a escapatória fácil encontrada pela ditadura para justificar a derrota militar, a qual, como disse, era uma outra face da inevitável derrota política da teimosia na manutenção do sonho imperial, de que Índia "portuguesa" era a primeira peça do dominó a cair.

Como atrás disse, há uns anos, passei uns dias em Goa. A Índia era a zona da fixação colonial portuguesa que me criava (e ainda cria) maiores interrogações. Sabia do modo ofendido como os habitantes de Goa, Damão e Diu tinham entendido a aplicação ao território do Ato Colonial, logo no início do Estado Novo. Li, mais tarde, textos escritos por goeses divididos entre a fidelidade a um Portugal que os tratara menos bem e a atração por uma União Indiana que lhes abria caminho a uma ligação a um grande Estado descolonizado, então "farol" para muitos povos. E percebera, também, a desilusão que muitos goeses haviam acabado por sentir, ao verem a sua identidade violentada por uma integração algo traumática, desrespeitadora da sua sensibilidade cultural e até religiosa. Não sei o suficiente sobre o assunto para poder ter uma opinião segura, mas recomendo muito que, quem possa, vá a Goa e por lá tente entender aquela gente que ficou "a meio da ponte"...

Nessa viagem, entre outras surpresas, tive uma experiência curiosa. Como acontece com muitos turistas portugueses, procurei visitar algumas das antigas casas senhoriais do tempo da Índia "portuguesa", hoje maioritariamente transformadas numa espécie de museus, as mais das vezes tristes, que espelham uma decadência serena e digna. E onde, em geral, se fala de Portugal sem acrimónia, mas também sem especial nostalgia, como falamos de longínquos membros desaparecidos da família, com defeitos e virtudes. Mais do que de Portugal, do que alguns goeses parece terem saudades é da sociedade goesa do passado, o que são coisas muito diferentes.

A certo ponto da minha estada, ao aproximarmo-nos de uma dessas casas, fui informado pelo motorista que ela não era visitável, salvo com diligências que eu não tinha tempo de empreender. O mesmo motorista chamou-me, entranto, a atenção para uma senhora que estava a sair da casa, dizendo saber que era ela a proprietária. Pedi para parar o carro e dirigi-me à senhora, que deveria mais de 80 anos. Fi-lo em inglês. A senhora olhou para mim e, num português impecável, respondeu-me: "Mas por que é que está a falar-me em inglês? Eu falo português. Eu fui deputada à Assembleia Nacional!". Chamava-se Lurdes Figueiredo e, logo recordei, fizera parte de um grupo de deputados, de um género a que os brasileiros chamam "biónicos", que haviam sido designados pelo Estado Novo para representar o Estado da Índia, no areópago de S. Bento, ao tempo em que o general França Borges era uma espécie de governador-geral no exílio... em Lisboa. Creio que duraram até ao 25 de abril, se não me engano.

Fiquei sempre com muita pena de não ter tido a oportunidade de falar longamente com aquela senhora, para tentar perceber um pouco mais desse tempo estranho, de um Portugal em transição, em trágico final de império. 

Tão estranho que o motorista que me transportava, um hindu que não falava uma palavra de português e que havia nascido já bem depois do fim da Índia dita portuguesa, me pediu para lhe mandar, de Lisboa, autocolantes com o nosso escudo ou a nossa bandeira, para si e para oferecer aos amigos, que achavam muita graça usar nos automóveis. As bizarras malhas que o império tece...  

terça-feira, agosto 21, 2012

Asilo

Por um daqueles mistérios que as relações internacionais encerram, Cuba mantinha em Lisboa uma representação diplomática no tempo da (nossa) ditadura, dedicada à promoção comercial. Nenhum outro país do mundo comunista o fazia, com exceção da Jugoslávia. Era num (julgo que 2º) andar perto da Estefânia, que, além de outros ocupantes, tinha uma loja de artigos elétricos no rés-do-chão. Recordo-me bem de por lá ter passado, no final dos anos 60, a procurar recolher alguma "literatura" política (no que eram de um parco proselitismo, registe-se).

Fugido do hospital Curry Cabral, onde estava internado sob prisão, Manuel Serra, um dos protagonistas do chamado "golpe da Sé"*, um frustrado movimento insurrecional contra o salazarismo ocorrido em 1959, que antes havia sido sujeito a bárbaras torturas da polícia política, obtivera um dia asilo nessa representação cubana. A PIDE montou tocaia permanente ao local e os seus agentes passaram a revezar-se, no passeio do prédio, vigiando a porta, para impedir uma fuga de Serra. Este assomava, com regularidade, à varanda, com um ar provocatório, fumando charuto, com uma cabeleira longa e uma barba que há muito tinha deixado crescer, o que lhe dava um ar de guerrilheiro da Sierra Maestra, aliás bem adequado ao sítio de acolhimento. A provocação ia mais longe: Serra cuidava em expelir, com maestria e pontaria, algumas secreções bucais na direção dos "pides", acertando por vezes em alguns deles. E fazia esta "graça" com irritante regularidade... 

Um dia de 1960, a cena repetiu-se e um "pide", mais distraído, recebeu um desses "brindes" do barbudo galhofeiro da varanda, na ocasião vestido com uma vistosa camisa encarnada (Serra preferiria dizer vermelha, pela certa). Mal o "pide", furioso, acabava de se limpar, saiu da porta ao lado do estabelecimento comercial um padre**, de sotaina e cabeção, que, simpaticamente, o saudou com um cumprimento de cabeça. Esse sacerdote pálido, de cabelo curto e empastado, todo de negro vestido, caminhou lentamente para o jardim Constantino, desaparecendo nesse final de manhã de Lisboa.

O que o "pide" não sabia é que o "padre" era, nem mais nem menos, Manuel Serra, o qual, em poucos segundos havia cortado as barbas e o cabelo, mudado de roupa e descido as escadas. Para se escapulir, contara com o contraste entre um aprumado "sacerdote" e a imagem desgrenhada e colorida do revolucionário que permanecia na memória visual recente do polícia.

Serra conseguiu fugir para o Brasil mas, tempos depois, voltou a Portugal para integrar a direção do chamado "golpe de Beja", uma nova (e também fracassada) tentativa de derrube do regime. E voltou a ser preso, por mais sete anos, depois de fortemente torturado. Morreu há pouco mais de dois anos, como então registei aqui.

A propósito: não creio que a polícia londrina caia no truque do "padre", se Julien Assenge o vier a tentar.


* Agradeço a Helena Oneto a lembrança de úteis ligações, que permitem um melhor esclarecimento sobre o "golpe da Sé" e o "golpe de Beja".

** A indicação de que Manuel Serra ia vestido de padre foi-me dada, há muitos anos, por um amigo que me dizia que conhecia bem o caso. Verifico, contudo, que, segundo a maioria das versões, esse é o traje que terá sido utilizado na fuga do Curry Cabral e não é plausível que o mesmo disfarce tenha sido usado duas vezes.

quarta-feira, junho 27, 2012

Júlio Montalvão Machado

Júlio Montalvão Machado, de cuja morte me avisaram há pouco, era um homem amável e sereno, sempre com um sorriso de pessoa com quem a vida estava bem. O seu compromisso com a liberdade tornou-o um perseguido durante o Estado Novo, período em que foi impedido de exercer, como médico, quaisquer funções públicas. Conhecemo-nos em 1969, nas lutas oposicionistas contra o Estado Novo, na campanha para as "eleições" para a Assembleia Nacional. Recordo-me bem de me ter dito, quando lhe fui apresentado: "Tenho grande gosto em conhecê-lo. O seu avô foi um dos maiores amigos do meu pai". Curiosamente, nessa campanha, acabámos por ter algumas divergências doutrinárias, por diferentes perspetivas sobre a questão colonial. Onde isso tudo vai... 

Depois do 25 de abril, cruzámo-nos muitas vezes e sempre pude apreciar nele o homem de diálogo e o espírito culto que o transformava numa das grandes e respeitadas figuras de Chaves e em todo o distrito de Vila Real - cidade onde, aliás, tal como eu, nascera.

Há algum tempo, os amigos comuns António Ramos e Alexandre Chaves organizaram com ele um agradável jantar no Forte de S. Francisco, onde trocámos histórias, nesse jeito tão transmontano de perder as horas da noite, ganhando-as na conversa amena. Foi a última vez que conversámos. E é com muita pena que agora o vejo desaparecer. 

segunda-feira, maio 28, 2012

Paris e o 28 de maio

Ainda a tempo de "comemorar" o dia de hoje, aqui deixo a imagem da casa - no nº 192 do boulevard de La Villete, em Paris - onde viveu, entre 1927 e 1932, José Domingues dos Santos (1885-1958), primeiro-ministro da I República. Na prática, esta casa funcionou como sede informal da "Liga de Defesa da República", mais conhecida como "Liga de Paris".

A "Liga" foi uma estrutura oposicionista à ditadura militar implantada em Portugal em 28 de maio de 1926, que congregou personalidades como Afonso Costa, Jaime Cortesão, António Sérgio, Raul Proença, Bernardino Machado, Álvaro de Castro, Jaime de Morais e muitos outros. Sobre a atividade deste grupo de exilados, tomei a iniciativa de organizar na Embaixada, inserido nas comemorações do centenário da República, um colóquio com historiadores portugueses e franceses.

quarta-feira, maio 23, 2012

Velharias

Não tenho por hábito regular fazer aqui apologia de outros blogues. Mas, desta vez, não resisto. Um amigo chamou a minha atenção para este magnífico Restos de Colecção, onde se recolhem coisas antigas (como o próprio "c" na palavra "colecção"). 

Este cartaz da União Nacional é imperdível, por todas as razões, em especial por essas em que o leitor está a pensar...

terça-feira, abril 17, 2012

O tempo dos outros

O título deste post é o de um livro de Adriano Moreira, publicado nos anos 60 do século passado.

(Recordo-me de o ter utilizado como epígrafe equívoca de um artigo em "A Voz de Trás-os-Montes", em outubro de 1969, quando a Oposição democrática, que se opunha ao já então decadente marcelismo, aproveitava, com ansiedade, o estreito espaço de manobra pública que a censura da época lhe dava. Como um dos efémeros "porta-vozes" dessa mesma Oposição, em Vila Real, inundei o jornal de vários textos, até que a paciência do censor local, o capitão Medeiros, se esgotou e fui finalmente privado dessa tribuna, para aberto desagrado do diretor do jornal, (o então padre) Henrique Maria dos Santos*).

Lembrei-me deste título hoje, a propósito da imensa curiosidade com que o corpo diplomático acreditado em Paris acompanha as declarações dos responsáveis que a candidatura de François Hollande, o principal "challenger" do atual presidente, mantém para os vários setores governativos, em caso de vitória. Neste tempo que, segundo muitas sondagens, poderá vir a ser por aqui "o tempo dos outros", é importante podermos garantir às nossas autoridades uma previsão daquilo que uma possível nova administração pode vir a fazer, se acaso o resultado das urnas lhe vier a ser favorável. O respeito que é devido aos poderes instituídos, bem como à possibilidade de serem reconduzidos, pela livre expressão da vontade dos franceses, não deve nem pode limitar o nosso interesse e legitimidade em estarmos preparados para todas as eventuais alternativas. 

Com alguma ironia - sem a qual de há muito não sei viver -, costumo dizer que, basicamente, só há três circunstâncias em que os embaixadores têm por certo que as suas comunicações são lidas, com algum interesse, nas respetivas capitais: quando há crises nas relações bilaterais, quando há golpes de Estado nos países onde estão acreditados ou quando há localmente eleições marcadas por algum grau de indecisão quanto aos resultados. No dia de hoje, não sendo embaixador espanhol em Buenos Aires, nem estando na ingrata posição do meu colega em posto em Bissau, resta-me assumir o popular risco de opinar sobre a campanha presidencial francesa - na esperança, quiçá vã, de alguns dentre quantos me leem em Lisboa não tendam a dar mais crédito ao que, sobre o tema, vão escrevendo o "Financial Times", o "International Herald Tribune" ou mesmo o "Le Monde".

Em tempo: um comentador informou que Henrique Maria dos Santos faleceu em 13 de abril, quatro dias antes deste post em que eu falava da sua louvável abertura de espírito, nesses tempos complexos.

quarta-feira, março 21, 2012

Crise académica de 1962


Comemoram-se, por estes dias, os 50 anos do movimento de agitação universitária que ficou conhecido, entre nós, pela “crise académica de 1962”. No ano anterior, a ditadura tinha passado pelo seu “annus horribilis”, desde o início da guerra em Angola até à perda da soberania sobre a possessões na costa da Índia, passando por diversos outros episódios que abalaram o regime, como o “golpe de Beja” ou o assalto ao paquete Santa Maria. No meio de tudo isto, Salazar conseguiu sobreviver ao “golpe Botelho Moniz”, uma tentativa de “pronunciamento” palaciano, cujo fracasso pode ter sido responsável pelos 13 anos de guerra colonial que se seguiram - uma triste aventura nacional contra a História.

Em Lisboa, nesse início de 1962, o mundo universitário iniciou um ciclo de inquietação que, com surtos irregulares, nunca mais iria parar, até ao 25 de Abril. Era essa a juventude que o regime ia utilizar como tropa de choque nas guerras coloniais, inicialmente em Angola (1961), depois em Moçambique e na Guiné (1964). Atravessada pelos ventos de liberdade que haviam soprado forte aquando da candidatura de Humberto Delgado (1958), com o “putchismo” militar a espreitar nas Revoltas da Sé (1959) e de Beja (fim de 1961), a “crise" de 1962 demonstrou também que o episódio Botelho Moniz não havia esgotado as tensões dentro do próprio regime: a demissão de Marcelo Caetano, de reitor da universidade de Lisboa, em solidariedade com os estudantes, fazia transparecer algum mal-estar e revelava que alguns preparavam já o pós-salazarismo.

A crise académica de 1962 é já vivida num interessante compósito ideológico que, a partir daí, vai passar a marcar o mundo associativo universitário. Do cultivo dos valores do republicanismo tradicional, que até então estivera sempre no eixo de toda a luta oposicionista, os novos tempos mostravam a prevalência de uma agenda cada vez mais socializante, com uma forte e tendencialmente hegemónica presença do PCP, mesclada com um catolicismo radical emergente e até alguma sedução pelo modelo castrista (bem presente na LUAR). Só a partir de 1962, com a cisão marxista-leninista protagonizada por Francisco Martins Rodrigues, é que os grupos maoístas viriam a imiscuir-se nessa luta.

Basta olhar para as lideranças académicas de 1962 para podermos entender o que aí vinha. Ao lado de Jorge Sampaio, de uma esquerda marxista não-alinhada, apareciam nomes como Vítor Wengorovius, ligado à nova “inquietação” católica (nascida, organizativamente, depois da “carta do Bispo do Porto” e do "documento dos 101”), Eurico Figueiredo, importante quadro do PCP, ou José Medeiros Ferreira, que seria candidato da "oposição democrática" às "eleições" legislativas de 1965, em cujo perfil político se projetava já o socialismo democrático, que haveria de dar origem ao PS, mais de uma década mais tarde. Com exceção dos maoístas, pode dizer-se que na crise de 1962 estão presentes as linhas fundamentais da movimentação política oposicionista dos anos seguintes, que iriam ter expressão organizada (e dividida) nas "eleições" legislativas de 1969 e, de uma forma singularmente bastante unitária, no exercício idêntico em 1973.

A crise académica de 1962 não se ter ficou por Lisboa, alastrando também às comunidades académicas de Coimbra e do Porto, onde, a partir de então, nas associações ou nas "pró-associações", as movimentações políticas entraram num crescendo. Todo o mundo universitário português, a partir desse ano charneira de 1962, se tornou num palco fundamental para a luta política contra o regime.  

segunda-feira, março 19, 2012

Paris, março de 1973

Naquele mês de março de 1973, vim a Paris, por cerca de uma quinzena de dias, para "ver" as eleições legislativas desse ano. Eu entrava no serviço militar obrigatório no final desse mês, por um período de tempo que poderia vir a ser superior a três anos, pelo que havia decidido oferecer a mim mesmo umas curtas "férias políticas", tiradas no banco onde então trabalhava.

Paris fervilhava. A "rive gauche" aparecia, a essa nossa geração lusitana de então, como o centro de um mundo do futuro, do qual a ida para a "tropa" nos iria afastar, por muito tempo. O dinheiro disponível era escasso, os livros eram a nossa principal perdição, com a "Joie de Lire", a que sempre chamávamos "a Maspero", a surgir como a principal "meca", embora, para um familiar maoísta que me acompanhava, o destino de eleição fosse então a livraria Fenix, no boulevard Sebastopol (que hoje ainda existe, contrariamente à primeira). Para além dos comícios políticos, na "Mutualité" e em certos teatros de bairro, ia-se obsessivamente (e quase por "obrigação" cultural) a algum cinema que não passava em Portugal, frequentava-se espetáculos musicais ou teatrais gratuitos, comprava-se o "Le Monde" como uma espécie de ritual vespertino, ia-se pelas universidades onde tínhamos amigos como estudantes. Verdade seja que, para além da muita conversa e do flanar, pouco mais se fazia, mas, por algum mistério, os dias estavam sempre bem cheios.  

Na Cité Universitaire, por onde dormi uns dias na "Maison de Norvège", graças ao Joaquim Pais de Brito, cruzavamo-nos com cambodjanos entrapados, por aí recém-envolvidos numa trágica confrontação, fruto da deslocalização da sua guerra civil, com mortos e feridos em Paris.

Uma tarde, na universidade de Vincennes, fui ouvir uma aula de Nicos Poulantzas. O seu "Fascismo e ditadura" era então uma "bíblia" laica, muito em voga entre nós. A certa altura, e para minha grande admiração, vejo-o interpelado por uma figura de bigode farfalhudo, que lembrava o "pai dos povos": "Cher Nicos, je suis tout à fait en désaccord avec toi...". Alguém me esclareceu: o interpelante era português e chamava-se Silva Marques. Não o conhecia, mas logo me recordei da famosa "carta aberta" que, anos antes, Silva Marques enviara aos militantes do PCP, demitindo-se, com fragor ideológico, do lugar de principal responsável do partido na margem sul. (Mais tarde, vim a reencontrá-lo como deputado do PSD, nos anos 90). Nessa mesma tarde de Vincennes, depois da aula, fui-lhe apresentado. Na conversa, perguntei-lhe por um amigo, que presumia comum e que sabia estar por Paris. Grave, retorquiu-me: "Você é da PIDE?". Fiquei supreendido com a reação. E indignado. E disse-lho, logo apoiado por quem mo apresentara. Silva Marques, didático, explicou: "Só os provocadores é que costumam perguntar assim por alguém que está na clandestinidade". Fiquei a saber. Mas imaginava lá eu que o meu amigo andava clandestino...

Num outro dia, também em Vincennes, o José Carlos Serras Gago, com quem muito andávamos nesses dias de Paris, começou a afastar-se de nós num corredor, dizendo que ia a ver uma outra aula: "de quem?", já que aquilo parecia uma parada de vedetas da cultura. "Bachelard", foi a resposta. E lá desapareceu, numa esquina. Uáu! O Bachelard! O homem da epistemologia, de quem eu tinha folheado alguns textos, nesse tempo em que julgávamos poder "ir a todas". Mas logo me surgiu a dúvida: o Bachelard ainda seria vivo? Não havia ainda o Google à mão para tirar teimas mas, tinha quase a certeza!, o Bachelard, com a sua patriarcal barba branca, já deixara este mundo há uns anos. O Serras Gago levara-nos, "à certa". Horas depois, à saída, confrontei-o: "Com que então, o Bachelard!? Foste à campa?". O José Carlos, sereno, esclareceu que ele nunca tinha dito que era "o" Bachelard. Ele fora à aula de filosofia de Suzanne Bachelard, filha do filósofo e, também ela, filósofa (morreu em 2007). E, comigo mais calado, partimos, de metro, de volta à Cité universitaire, onde o Zé Carlos pousava na "Maison du Danemark".

Sem surpresas, a política continuava a andar à nossa volta, muito para além da campanha eleitoral. Através do João Fatela e do António Gomes, por indicação do António Massano, fomos uma noite a um apartamento a Colombes, conhecer outros "amigos de amigos". À volta de umas garrafas de vinho, falámos por algumas horas do Portugal distante de que se haviam exilado e de que sentiam evidentes saudades. O tempo dessas pessoas era contado: não havia noitadas, porque começavam a trabalhar de madrugada. Sem que isso desse origem a perguntas, recordo que havia lá por casa pilhas de documentos da LUAR (Liga de União e de Ação Revolucionária), que então tinha Palma Inácio, preso em Portugal, como figura cimeira. Onde estará hoje toda essa gente dessa noite de Colombes? 

Foi também assim esse meu mês de Março, em Paris, em 1973. Há 39 anos, quase dia por dia.

sexta-feira, março 16, 2012

Marcas

A singular iniciativa do município de Santa Comba de lançar a "marca Salazar" constitui a prova provada de que estes nossos dias de sobrevida em tempos de "troika", para além de refletirem um estado objetivo de pobreza material do país, revelam a existência de um imenso défice de pobreza de espírito, para a qual nenhum empréstimo de ética ou vergonha está por aí disponível.

Entrevista à revista "Must"

Aque horas se costuma levantar?  Em regra, tarde. Desde que saí da função pública, recusei todos os convites para atividades “from-nine-to-f...