quinta-feira, janeiro 31, 2019

Limian cheese

Há uns anos, em Brasíla, em casa de um político local (pessoa cujo futuro institucional, curiosamente, se decidirá nas próximas horas), veio à conversa um episódio marcante no nosso anedotário político nacional: o “queijo limiano”. 

Para benefício dos mais jovens, vou relembrá-lo: um governo dos anos 90 (que eu integrava, diga-se) teria, segundo as “más línguas”, negociado com um deputado de um partido da oposição o seu voto a favor do orçamento de Estado desse ano. Tendo o governo 115 deputados e a oposição, na sua totalidade, outros 115, um voto bastava para desequilibrar o parlamento (no jargão político britânico, a uma assembleia assim ‘empatada” é dado o nome de “hung parliament”). De acordo com esses maldosos boatos (aliás, nunca verdadeiramente confirmados...), à época postos a correr, ao deputado (e ex-autarca) teriam sido feitas sólidas e quantificadas promessas de investimento público na sua localidade, que envolveriam novas acessibilidades e, em especial, que favoreceriam a então ameaçada permanência de uma fábrica de queijo, tipo “limiano”, muito importante para a economia e emprego da região. Bastava para tal que ele viesse a favorecer o governo com o seu (essencial) voto (ou abstenção, já não recordo bem). E isso terá acontecido. Por um mero acaso, estou certo...

Contei esta história e, em lugar de obter uma qualquer reação das pessoas que estavam à volta da mesa, deparei com um muro de desinteressado silêncio. Ninguém percebia a razão do “escândalo” que eu referira ter-se gerado na sociedade portuguesa, na altura da ocorrência desse episódio. De facto, num país e num sistema político como o do Brasil, é quase uma banal obrigação que um deputado oriente o seu sentido de voto de acordo com os interesses locais que lhe compete defender. Por ali, a lógica do voto por disciplina partidária é uma exceção, não a regra. A minha historieta sobre o “queijo limiano” não fez, assim, o menor sucesso naquela conversa.

Por que trago isto aqui, hoje? Porque acabo de ler na imprensa britânica que alguns deputados, que reiteradamente têm votado contra o acordo negociado entre a primeira-ministra Theresa May e os “27”, estarão, nas últimas horas, a ser “pescados à linha” por Downing Street, que procura obter o seu voto a troco de financiamentos para projetos de desenvolvimento nas suas respetivas regiões. Como se chamará por lá este mecanismo, no futuro: “Limian cheese”?

Maduro & Cia


Vão confusos os dias da Venezuela. A liderança de Nicolás Maduro está fragilizada internacionalmente a um ponto nunca antes visto. Por muito tempo, o seu patético e cada vez mais inaceitável regime foi sobrevivendo sob a complacência de muitos e com o apoio de uns poucos - estes últimos talvez menos interessados na pessoa de Maduro e, muito mais, tentando evitar que o país caia de novo na esfera de influência dos Estados Unidos, nessa espécie de “deve-e-haver” de poder que, mesmo depois da  Guerra Fria, continua a marcar o mundo. 

Fica a sensação de que talvez tenha sido a mudança política ocorrida no Brasil que acabou por dar uma espécie de “luz verde” à onda anti-Maduro que se gerou nas últimas semanas. Os EUA, a quem, de vez em quando, dá jeito indignarem-se através de um conflito externo no lado “do bem”, aproveitaram este tempo mais sombrio de Trump para colocarem no terreno toda a sua retórica de pressão, estando ainda por saber se ficarão por aí. Não deixa de ser curioso notar que, por décadas, a América continuou a comprar o petróleo venezuelano, o que serviu para alimentar o regime de Maduro e lhe permitiu pagar principescamente as forças armadas e as polícias repressoras. A “realpolitik” é o nome fino do cinismo político.

A União Europeia, cuja “política externa” é sempre uma média aritmética da posição dos seus principais poderes (pontualmente ponderada pelas reticências, ideológicas ou de interesses, de alguns Estados) hesitou um pouco: depois de declarar algumas platitudes, quebrou-se na tibieza de atitude por impulso de uns quantos, voltando finalmente a juntar-se num requisitório mais exigente face a Maduro. Deixar os EUA na liderança democrática do mundo é sempre um incómodo para Bruxelas, que consegue, de quando em vez, os seus momento de coragem.

Não é muito evidente o que se seguirá, a menos que as forças armadas resolvam pilotar uma transição – naturalmente, descontando uma aventura militar externa, que somaria petróleo ao fogo. O auto-proclamado presidente tem hoje, à evidência, uma maior legitimidade política do que Maduro – por muito que isso custe a alguns “maduros” cá de fora, do PT brasileiro ao PC português, todos federados por essa grande “ideologia” que é o anti-americanismo, a doença infantil de certos setores do mundo ocidental. Mas só numa interpretação abstrusa da constituição isso lhe dá direito formal ao poder. Porém, a teimosia de Maduro acaba por garantir à oposição, a cada dia que passa, a legimidade que a letra da lei lhe recusa.

(Artigo publicado em 30.1.19)

quarta-feira, janeiro 30, 2019

E Borba?


No Brasil, foram já feitas prisões e a companhia tida como responsável pela tragédia de Brumadinho anda pelas portas da amargura. 

E nós, por cá? Há alguém preso pelo acidente de Borba? E “cadê” os nomes dos (ir)responsáveis das pedreiras? Ainda andamos no “rigoroso inquérito”?

Os anos da Tabela

A Tabela Periódica dos Elementos faz 150 anos. Há por todo o mundo grandes comemorações, pelas ruas e escolas (como se vê na imagem). Conheci a tabela quando era ela bem mais nova: tinha apenas 100 anos...

Em 1968, fui estudar Engenharia Eletrotécnica para a universidade do Porto. Uma das cadeiras, logo do 1° ano, era Química Geral, ministrada por Vasco Teixeira, ao tempo dono da Porto Editora. Logo nas primeiras aulas, foi-nos apresentada a Tabela Periódica. O que era? Era uma listagem das largas dezenas de elementos químicos existentes no universo que ia sendo conhecido, num gráfico com os símbolos de duas letras.

Concluí a cadeira com uma nota baixa. Até tarde, nunca tive grande consciência da importância objetiva da tabela, que também era conhecida como de Mendeleev. Hoje percebo bem melhor o sentido daquela ordenação, a importância e simbologia prospetiva do seu arranjo gráfico, revelador de afinidades e prenunciador de descobertas futuras. A tabela é o “eixo” de toda a Química contemporânea.

Um dia de 1967, estava eu no café “Piolho”, com a Tabela em frente e a “sebenta” aberta (estudávamos por uma “Quimica General”, livro espanhol do premiado do Nobel, Linus Pauling, e por uns apontamentos comprados num primeiro andar, em frente da Leitaria Quinta do Paço), quando se sentou à mesa um colega, já mais adiantado no curso. 

Na conversa que se seguiu, veio à baila a Tabela. Na minha inconsciência, expressei a minha perplexidade quanto à real utilidade prática da mesma. Esse colega “esclareceu”: “Também nunca percebi, mas a Tabela tem-me dado um jeitão!”. Fiquei surpreendido, e ele logo explicou: “Para as palavras cruzadas: o Cobalto é CO, a prata é AG, o sódio NA. A Tabela é utilíssima...” 

O velho Mendeleev é capaz de ter morrido sem saber desta utilidade “marginal” da sua famosa tabela...

Maduro & Cia


Artigo hoje publicado no “Jornal de Notícias”. Pode ser lido aqui.

terça-feira, janeiro 29, 2019

Sumoll




Num bar, nos EUA, ele pediu uma Coca-Cola. O barman, respondeu: “Large or small? ”. O inglês não era o forte do nosso homem, que logo respondeu: “Está bem! Pode ser Sumol...”‬ 


(História verdadeira)

segunda-feira, janeiro 28, 2019

Amanhecer


... e dizia aquele meu amigo preguiçoso: “o amanhecer é uma coisa deliciosa, mas a hora a que o colocaram é que é péssima!“

domingo, janeiro 27, 2019

Assim, não vale!


Quando eu era pequeno, em jogos com amigos, a regra era termos “armas iguais”, nenhum de nós dispor de algo que desequilibrasse o jogo, que tornasse a competição “unfair”. Podia ser uma raquete melhor, umas chuteiras ou umas sapatilhas (agora diz-se uns ténis) “à maneira”. Ninguém podia ter uma qualquer vantagem comparativa. Se acaso isso acontecia, para justificarmos a nossa inferioridade, clamávamos: “assim, não vale!”

Há pouco, ao ler este texto do meu amigo José Ferreira Fernandes, lembrei-me da expressão. Anda um cristão a desenhunhar-se para escrevinhar uns textos jeitosos e, numa noite, abre a net e leva na cara com um coisa destas. Dá vontade de “recolher” a tecla, “desafiar” o lápis e passar a dedicarmo-nos à columbofilia ou a ver crescer a relva. Assim, não vale! 

Se eu fosse capaz de escrever um texto assim...

Júlia


Aos quatro anos, o sorriso (já) verde da Júlia

quinta-feira, janeiro 24, 2019

A Bica


Ontem passei e passeei pela Bica. Almocei na Liège, saí pela rua onde ficava a tasca do Martins, em que, nos anos 70, tinha mesa marcada com os meus colegas de emprego, e, sob o sol deste inverno, tomei café (em inesperada calma de gentes) numa agradável esplanada no Alto de Santa Catarina (a “dona” tinha uns olhos lindíssimos), rondei depois o ateliê do Romualdo, onde o Olívio me levou um dia a comprar dois quadros que já nem sei bem onde param, quase em frente ao bar (hoje restaurante a armar ao fino) onde charlava nos seus dias lisboetas com o Eurico Gama, não muito longe da (ex-famosa, quando a Bica se tornou moda) Bicaense (agora fechada?!), onde uma noite, desembarcado de Paris, fui jantar com o Zé Barreto, e também do Toma-Lá-Dá-Cá, em que, há uns tempos, não se comia nada mal, e por aí me veio à memória a figura pausada (sempre e apenas ao final da manhã) do Manuel de Almeida, que ali cruzei algumas vezes, e, nesse mesmo instante, por coincidência fadista, passei junto à casa onde, segundo a placa, iniciou carreira o Fernando Farinha, o “miúdo da Bica”. E saí dali a pé por São Paulo. Nunca fui um “habitué” da área, mas que a Bica tem bastante graça, lá isso tem! Percam/ganhem uma hora por lá, se puderem, e não se arrependerão.

Raças


Na minha infância, colecionei cromos para um álbum de “raças humanas”. Posso garantir que essa criança que então falava abertamente dos “pretos” e dos “índios”, não era diferente da pessoa que sou hoje. No que me toca, o respeito pelos outros, em que peço vaidosamente meças, tem barómetros mais importantes do que o ambiente que faz com que, ao escrever este artigo, me sinta obrigado a “pescar” as palavras, para fugir à severidade de alguns polícias da linguagem.

Mas é sobre outros polícias que eu quero aqui falar. Os graves incidentes – porque foram graves, não nos iludamos – que se passaram nos últimos dias entre as forças policiais e grupos de cidadãos de etnia negra (nem sei se posso dizer isto) demonstram que o problema da convivência inter-étnica está longe de resolvido em Portugal. Desde o fim do ciclo colonial, criaram-se, em especial à volta de Lisboa e em outras periferias, bolsas de pobreza em que predominam cidadãos oriundos de África ou deles descendentes. Fruto da exclusão social e da ineficácia da sua integração, essas pessoas vivem em geografias muito estigmatizadas no imaginário público. Constatar que esses ambientes sociais favorecem o surgimento de criminalidade é apenas uma obviedade. Embora perceber o que potencia o crime não deva ser caminho para desculpá-lo, entenda-se.

A atividade policial nessas zonas torna-se extraordinariamente difícil e assume por vezes formas vistas como hostis por aquelas comunidades. A nossa polícia, embora tenha evoluído muito nos últimos anos em matéria de formação, está ainda longe de poder assegurar uma rigorosa disciplina de atuação em situações de elevado stress. A cultura social de onde muitos dos seus agentes são originários, e em que o seu quotidiano se insere, continua marcada por estereótipos e preconceitos que estimulam o ocasional recurso a formas excessivas de reação, em particular se sujeitos a níveis elevados de provocação física ou verbal. Tentar entender essas condições conjunturais é diferente de fechar os olhos a abusos e à violência desproporcionada.

O que se passou nos últimos dias não pode nem deve ser visto como um mero e isolado incidente. Não somos a sociedade de “brandos costumes” com que gostamos de nos pintar. Enquanto alguns se entretêm com o jogo das palavras tabu, está a nascer por aí um país feito de ódios recalcados. Se os poderes públicos não montarem rapidamente uma ação eficaz, que comporte o binómio diálogo-justiça, a realidade, que também é política, encarregar-se-á do resto.

(Artigo ontem publicado no Jornal de Notícias”)

quarta-feira, janeiro 23, 2019

Casa Liège


Em 1929, há precisamente 90 anos, o meu pai, recém-ingressado como jovem funcionário na Caixa Geral de Depósitos, frequentava com regularidade esta “casa de pasto”, a “Casa Liège”, situada no alto do elevador da Bica. Era uma tasca de galegos, que à época dominavam a restauração lisboeta. Na sua memória atenta, talvez atiçada pela solidão e pela saudade da sua Viana do Castelo, de onde saíra para trabalhar na capital, nesses seus então 19 anos, permaneceu para sempre a imagem de um empregado galego, de seu nome Ramón, que para dentro, para a cozinha, pedia “um péxe!”. Fixei isto, desde sempre.

Já por aqui contei uma história que ele testemunhou, passada na “Liège”, que envolveu gente da vida política, intensa e tensa, que se viveu nesses dias sombrios da Ditadura Militar. Um “duelo” físico, entre Dutra Faria, à época um propagandista do nacional-sindicalista Rolão Preto, e o republicano vila-realense Carvalho Araújo, viria a marcar, na memória do meu pai, a sua história pessoal com a “Casa Liège”, que fora criada em 1926, e que está hoje nas mãos da hospitaleira família Vieira.

Tenho pena de já não poder contar entre nós com o meu amigo José Sarmento de Matos, o olissipógrafo que ontem foi objeto de uma mais do que merecida homenagem no Museu da Cidade, para ele poder opinar sobre se a “Liège” não será, de facto, nos dias de hoje, um dos mais antigos restaurantes de Lisboa.

Nos anos 80, reverenciador da sua memória, levei o meu pai, numa “romagem”, a almoçar à “Liège”. Descreveu-me então a coreografia da luta a que ali tinha assistido, nesse final dos anos 20 do século passado. Já não me lembro o que comemos, mas o objetivo da nossa visita não era, definitivamente, de natureza gastronómica. O momento fez-nos bem a ambos!

Hoje, animado pelo sol, deu-me para passar por lá, para umas pataniscas (altas mas saborosas, talvez com um pouco de óleo a mais, como expliquei à cozinheira, que se teria evitado enxugando com papel absorvente), um vinho da casa bem razoável e uma conta, depois da sobremesa, a rasar uns bem aceitáveis dez euros. A casa, felizmente, não está descaraterizada e, ao que observei, vive entre a clientela tradicional e o turismo, inevitável e desejável, do lugar. Que se conserve assim! 

Só posso desejar à Casa Liège cem anos mais de história e que, se possível, não venha a ser apanhada pela especulação imobiliária. Não sei, contudo, se não será pedir muito...

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Raças


Pode ser lido aqui o artigo que hoje publico no “Jornal de Notícias”.

terça-feira, janeiro 22, 2019

Viana


Hoje, apetece-me pôr aqui esta fotografia melancólica da ponte Eiffel, sobre o rio Lima, que “roubei”, com autorização, a Rui Bravo.

segunda-feira, janeiro 21, 2019

Ana Barata


Creio que foi em 13 de agosto de 1975 que verdadeiramente nos conhecemos, em pleno "verão quente" desse ano tão político, no dia da nossa comum entrada para as Necessidades. A Ana fazia parte do grupo muito restrito de mulheres que, naquela ocasião, puderam aceder, pela primeira vez, à carreira diplomática. Falo de Ana Barata, uma amiga e colega que acabam de me dizer que morreu.

Vi-a, faz pouco tempo, na Versailles. Seria a última vez. Era frequente encontrá-la por lá, a caminho ou saída há pouco da Gulbenkian, ela que era uma conhecida "habituée" de concertos. Tinha a música como um dos seus grandes hóbis. Em 2004, em Viena, quando se preparava para me substituir como embaixadora na OSCE, recordo-me que fomos uma noite juntos à ópera. Imagino que tenha sido bem feliz por lá.

A Ana era uma amiga que fui cruzando pelo mundo, de Madrid a Belgrado, de Londres a Bruxelas, de Zagreb a Viena. Tinha um sorriso permanente, uma atitude sempre positiva, uma gargalhada sã. Muito culta, devo-lhe preciosas indicações bibliográficas. E, muito mais do que isso: devo-lhe uma imensa solidariedade pessoal, o que não é a menor coisa na nossa vida.

Sinto uma grande pena pela sua morte. 

Trump, dois anos depois


O professor Eduardo Paz Ferreira “convocou-nos” hoje, para a Faculdade de Direito, com vista a refletir sobre Trump, dois anós após a sua posse: Luísa Meireles, Irene Pimentel, Carlos Branco, Rui Tavares, Sandra Monteiro e eu próprio. Alguns de nós tinhamos já estado por ali, a refletir sobre este mesmo assunto, precisamente há dois anos e há um ano.

Iniciei a minha intervenção dizendo que a boa notícia era o facto de Trump não ter provocado nenhuma guerra (como há dois anos se temia) e a má notícia o facto de ele ter conseguido induzir uma inédita crise de confiança à escala global (como há dois anos já se temia). 

Num nota não muito pessimista, terminei a minha intervenção afirmando que, apesar de todos os virulentos ataques de Trump ao sistema internacional de base multilateral, e não obstante o forte poder condicionante que a força dos EUA sempre objetiva em todas as circunstâncias, o quadro institucional global, com a ONU no centro, tem sobrevivido. Até quando?

A arte dos inspetores


Ontem, ao ver o grande ator cómico Rowan Atkinson a desempenhar o papel “sério” de Maigret, numa nova série televisiva, não pude deixar de me lembrar do tempo em que Raul Solnado também interpretou um inspetor, na “Balada da Praia dos Cães”. Um grande ator é sempre um grande ator.


Vamos apostar?


Há dias, uma amiga dizia-me que ia acompanhando a atitude dos britânicos face ao Brexit pela consulta, com regularidade, dos “sites” das casas de apostas no Reino Unido. Ao contrário de que acontece por cá, por lá existem apostas a propósito de tudo e de nada, desde estes episódios da vida política às datas dos casamentos dos príncipes. E se pensarmos que cada um arrisca o seu dinheiro naquilo que acha mais plausível, talvez devamos concluir que o modo como os apostadores olham os episódios em que o Brexit se vai sucessivamente declinando não deixa de ser um barómetro interessante sobre o estado daquela opinião pública. 

O caso do divórcio britânico da Europa irá, no futuro, dar origem a muitos livros. E em todos eles, estou certo, se especulará, com alguma razão, sobre como foi possível, a um país com a importância e a experiência histórica do Reino Unido, deixar-se aprisionar num tortuoso processo negocial de saída de uma estrutura institucional a que havia ligado o seu quotidiano por décadas.

É que o Brexit acabou por transformar-se, para o Reino Unido, numa verdadeira ratoeira. O referendo em que a decisão de saída foi tomada, cuja legitimidade democrática é incontestável, resultou de uma campanha muito marcada por temas emocionais, pelo potenciar de alguns medos, que uma análise serena veio a demonstrar serem completamente infundados. A isso se somou a obsessão, que era antiga, de recuperar a “soberania” e de deixar de estar “sob as ordens de Bruxelas” (como se não fossem os ministros britânicos quem também votava a legislação que ali se produz).

Escrevi atrás “ratoeira” com plena intenção. Obrigado a seguir o resultado do referendo, o governo britânico viria a deparar-se com uma missão quase impossível. Quando a poeira assentou, Londres terá percebido a imensa dificuldade daquilo a que não iria poder fugir. Foi assim obrigado a uma complexa negociação, tendo do outro lado da mesa a vontade, institucionalmente federada pela Comissão Europeia, de 27 Estados, surpreendentemente atuando em uníssono e que não lhe facilitaram a vida. Se o Reino Unido queria abandonar a UE, e porque desde logo informou que a alternativa de ficar não existia, então o pacote de condições iria ser severo. E foi.

Qualquer governo britânico, perante um resultado negocial obtido sob uma inescapável pressão, iria ter sempre uma grande dificuldade em garantir o voto maioritário de Westminster. Mas uma primeira-ministra que começara por ser a favor da permanência na UE, para depois fazer uma cambalhota, com uma maioria escassa e politicamente periclitante, era o pior interlocutor para um acordo que implicava grande sentido de compromisso e o “engolir” de alguns sapos.

Na vida profissional, aprendi que nada é pior do que negociar com uma parte marcada pela fraqueza, debilitada na sua capacidade de fazer vingar aquilo a que se comprometeu. Theresa May é isso tudo e, talvez por essa razão, só os videntes nos possam hoje ajudar a pôr o nosso dinheiro nas casas de apostas, acerca do resultado final desta imensa trapalhada em que se transformou o Brexit.

(Artigo publicado no dia 18 de janeiro de 2019)

Chover no molhado

As coisas são o que são e não o que gostaríamos que fossem. Diz-nos a TSF que, em Ferreira do Alentejo, deixou de haver jornais em papel à venda. Quantas ”Ferreiras do Alentejo” não existirão por aí, cada vez mais? Os jornais em papel estão, de facto, a desaparecer? É que se, entre os que eventualmente “sobram”, e sabe-se lá por quanto tempo, ficarem apenas o “Correio da Manhã” e os desportivos, isso diz muito do futuro da imprensa em papel no nosso país. Não vale a pena chover no molhado, mas lá que acho isto muito triste, lá isso acho. E, vale a pena dizer, não é culpa de ninguém, é a vida!

domingo, janeiro 20, 2019

Futebóis


O sofá é um grande inimigo do futebol. Dei conta disto há uma semana, quando me tirei dos meus cuidados e decidi rumar a Alvalade, para ver, ao vivo, o Sporting-Porto. 

Quantas vezes, ao longo dos últimos anos, havia reprimido esse impulso e optei por me instalar no confortável sossego das almofadas caseiras, para assistir (sempre em diferido, na televisão, nunca vejo jogos em direto do Sporting, para não me incomodar) aos jogos do meu clube! Desta vez, empurrado pelo sol de inverno que fazia, lá me decidi a ir para a bancada central, com o bilhete comprado na net duas horas antes do jogo, com uma longa fila de entrada a suportar. 

Estar num estádio não tem nada a ver com ver um jogo pela televisão - desde logo, porque as jogadas não são repetidas, o que nos alimenta até à noite a dúvida sobre se “foi mão” ou se o fora-de-jogo foi mal ou bem marcado. Mas o ambiente, a cor, o barulho, é outra coisa! É verdade que, quando olho para as claques do meu clube, para aquelas faixas com símbolos a roçar o sinistro, me pergunto o que é que eu tenho a ver com aquela gente, aliás a mesma que apoiou por anos um demente palavroso. Mas, depois, olho em volta, para homens e mulheres normais que ali vão de modo saudável, e dou conta que sou dessa “tribo”, a qual, vale a pena admitir, é tão má ou tão boa como as dos rivais, só que, por razões que cada um explicará, é a nossa.

O meu cachecol era verde escuro, sem emblema, mas ergui-o, algo relutante, ao lado dos outros, quando o entusiasmado locutor o pediu. Foi um gesto para me forçar a sentir-me ali entre “os meus”, mas o meu à-vontade era igual ao que sinto quando, nos momentos eleitorais decisivos, decido ir assistir a um comício político dos que pensam como eu. Os franceses têm uma bela expressão que qualifica esse meu conjuntural sentimento nesses momentos massificados: “mal à l’aise”. Sou assim, o que é que se há-de fazer?

Não lhes vou contar o jogo, aliás péssimo, de ambos os lados, que acabou num nulo, quando devia ter acabado com um resultado negativo para cada lado, se a justiça existisse. 

A minha bancada era, homogeneamente, de sportinguistas. Ou os que o não eram estavam calados como ratos. À minha esquerda calhou um mal-disposto desde o apito inicial, que logo qualificou o árbitro de filho de uma senhora de profissão conhecida, para logo generalizar, sem se rir: “Aliás, são todos!” Depois, foi criticando as escolhas em campo, com sugestões de constituição ótima da equipa, que “só não vê a besta do holandês”. A “besta do holandês”, para minha surpresa, não encontrou apoios em praticamente ninguém à volta, até ao final do jogo.

À minha direita, encontrei uma alma gémea. Era tanto que, a certa altura, passou a incomodar-me. Se eu clamava (mesmo não estando acompanhado, não sei estar num estádio sem comentar alto algumas jogadas, razão por que sempre detesto ser convidado para tribunas) que o corredor direito estava desguarnecido, o tipo reiterava e repetia, berrando alto, duas ou três vezes, o que eu tinha dito em voz normal: “Este senhor tem toda a razão, não está ninguém na direita, ó ceguinho!”, o que levava algumas caras a olhar para mim, esperando encontrar ali um discreto “expert”, quando eu apenas tinha sublinhado uma evidência. A meia hora do fim, caí na asneira de dizer: “Parece que estamos a jogar para o empate!” O que eu fui dizer! Foi um ror de vezes que o tipo repetiu: “Este senhor aqui é que tem razão! Estão a jogar para o empate! Calões!”. E “este senhor” sentia-lhe olhado como um guru. Só não saí um pouco mais cedo, até para evitar a molhada final, porque estava no meio da bancada, confesso.

Saí do estádio com “mixed feelings”. Desde logo, desagradado pelo resultado e, bem mais, pela fragilidade endémica da minha equipa. Mas saí satisfeito comigo mesmo, por ter vencido o comodismo. Voltarei em breve? Dependerá do sol, da paciência, da sedução do sofá, do programa alternativo que tiver. Não prometo nada, nem a mim mesmo, o que é sinal de que confio muito pouco em mim.

Se o Sporting estiver à espera de adeptos desta laia para o levar aos triunfos, está bem arranjado...

sábado, janeiro 19, 2019

Pedro Gonçalves


Houve “capitães de abril”, mas também houve “milicianos de abril”. Nesse ano de algumas coisas já muito longínquas que foi 1974, alguns de nós - civis por natureza, militares por acaso - oferecemos com entusiasmo os nossos dias à concretização de um belo sonho. Pelo caminho, cometemos alguns erros, mas fizemos outras coisas que valeram bem a pena. O saldo aí está: a sociedade livre em que vivemos. Ajudámos a mudar o país e, com imenso orgulho, contribuimos, à nossa modesta medida, para a liberdade que hoje todos partilhamos. Nenhum de nós recebeu a “Ordem da Liberdade”, nem tinha de a receber. O país não nos deve nada, nós é que, para sempre, lhe ficamos a dever a oportunidade histórica de ter podido estar num certo lugar, no tempo certo. E isso, ninguém nos tira!

Hoje, sob farta chuva, lá estivemos a despedir-nos de um de nós, de um amigo, parceiro dessa aventura, do Pedro Gonçalves. Há mais de quarenta anos que o seu sorriso, a sua bonomia, a sua graça, aquela figura alta iluminava os regulares almoços do nosso grupo de “militares de abril” - que junta alguns amigos profissionais “do quadro” a quantos, como o Pedro ou como eu, andaram, apenas por uns tempos, ”emprestados” a essa “guerras” da Revolução. Mas, todos, sem exceção, “abrilistas” ferrenhos.

Daqui a dias, quando de novo nos juntarmos, não deixaremos de fazer uma emocionada saudação à memória do Pedro Gonçalves e, tal como sabemos que ele teria gostado, lançaremos um imenso “viva o 25 de abril!”

Deixo uma fotografia incompleta do nosso grupo, com “faltas justificadas” do Carlos Contreiras, do Martins Guerreiro e do Jorge Abegão - que hoje estiveram connosco a despedir-se do Pedro. Na imagem,também não estão os mais “refratários” (já quase “desertores”) membros da tertúlia, o José Maria Brandão de Brito e o Jorge Calheiros, seguramente algures “de serviço” no dia em que ela foi tirada. O Pedro surge na fila da frente tendo no seu ombro a mão do Carlos Figueira, o “secretário-geral” perpétuo destes nossos encontros.

sexta-feira, janeiro 18, 2019

Baron Noir


Fujo quanto posso a ver séries na televisão. Porquê? Porque temo ficar “agarrado” a elas. Como fiquei agora com este “Baron Noir”, que a RTP 2 está a transmitir. Com uma realização ágil, que o mesmo é dizer, pouco francesa, servida por uma banda sonora envolvente e contemporânea, uma vez mais pouco francesa, o “Baron Noir” tem-me feito perder horas de sono (só consigo ver de madrugada), mas ganhar horas de prazer visual. Para quem, como eu, (julga que) conhece bem a vida política francesa, é muito interessante observar a coreografia cruel da sua luta política ficcionada. Uma frase que hoje ouvi num dos episódios quase que sintetiza todo espírito desta bela série: “Em política, o ódio é melhor do que um diploma”. Será mesmo assim?

quinta-feira, janeiro 17, 2019

Condomínio


“Isso é um inferno!”, exclamou um amigo, com quem tive de apressar um telefonema, quando lhe disse que ia para a Assembleia Geral do meu condomínio. E lá fui. Durou um quarto de hora. Verdade seja que haver só três condóminos - gente simpática, educada e colaborante - muito facilita. Assim, tudo foi aprovado por unanimidade e foi reeleito, por discreta aclamação, o gestor que, desde há vários anos, com obras extraordinárias e alguns inevitáveis incidentes do quotidiano à mistura, tem ajudado a levar a bom porto a administração do prédio. O nome? A modéstia não me permite divulgá-lo...

A política da forma



Na reação pública ao desafio que agora lhe foi colocado, Rui Rio voltou a suscitar, num tom até um pouco a despropósito, a questão da forma de estar na política. Reagia assim às críticas que lhe são regularmente feitas de que o seu estilo de liderança não é mobilizador e que, se persistir ir por esse caminho, o PSD se arrisca a ter um resultado desastroso nas próximas eleições legislativas e, ainda antes, nas europeias.

Não sendo um observador independente na matéria, creio possível fazer um exercício analítico relativamente objetivo. E tentar responder às questões: quem terá razão? Rui Rio ou os seus críticos?

Rio deu, desde o primeiro momento, sinais de querer introduzir uma nova atitude no debate político: não fazer oposição só para mostrar que está contra o “outro lado”, criticar apenas quando tem razões para tal, apoiar quando entender que o adversário esteve certo, caminhar sempre que possível no sentido de compromissos de regime. Todos concordarão que esta atitude introduz uma clivagem clara no modo de estar dos líderes partidários portugueses - e não só no PSD. Dir-se-á que apenas António José Seguro tentou ir um pouco por esse caminho, até ao momento em que terá percebido que essa postura não lhe trazia quaisquer dividendos ou reconhecimento público.

Um ano depois de ter assumido funções, o líder do PSD já se deve ter dado conta de que essa forma de atuar, no imediato, não lhe irá render muitos votos. Estará Rio a negar assim a realidade objetiva dos factos? 

Se repararmos bem, salvo em algumas notas despiciendas de pormenor, os mais vocais críticos de Rui Rio nada apresentam de concreto, em termos de propostas políticas, como base para a sua contestação. (Alguns acusam-nos de estar apenas a lutar por lugares). O que criticam é a forma, é a ausência de agressividade, é a não personalização de ataques na pessoa do primeiro-ministro, como a líder do CDS faz a toda a hora. A oposição feita por Rio parece-lhes “mole”, não congregadora dos votantes potenciais do PSD.

Acho que Rio tem razão, mas os seus críticos também. Rio tem uma visão “decente” da política que, a vingar, nos faria caminhar para um país bem melhor, mais moderno, com bem menos tricas e bastante mais verdade. Montenegro e os saudosos de Passos Coelho argumentam que, a atuar desta forma, o PSD se afasta inexoravelmente do poder. E, implicitamente, concluem: a vida política em Portugal é o que é! Ninguém chega ao poder de outra maneira. O que também não deixa de ser uma verdade possível. 

A “monarquia” do Norte


Morreu em 1925, com 52 anos. Chamava-se António Emílio da Costa e era meu avô. 

Na família do meu pai, sobreviveu para sempre um grande orgulho pelo facto desse republicano maçónico ter combatido, de arma na mão, a tentativa “talassa” de restaurar o regime que, quase nove anos antes, havia caído na Rotunda. E ganhou.

Há precisamente 100 anos, teve lugar essa tentativa de golpe contra a República, que ficou conhecido pelo nome, quase irónico, de “monarquia” do Norte. E que falhou, claro.

quarta-feira, janeiro 16, 2019

Incomuns nos Comuns



Nestes dias de debates sobre o Brexit, a Câmara dos Comuns britânica tem estado muito em evidência. 

Do lado esquerdo de quem entra, fica o partido no poder e o seu governo, do lado direito sentam-se os deputados dos partidos a que a fórmula (ainda) em vigor chama "Her Majesty's Most Loyal Opposition". Mas não todos: a Câmara dos Comuns não tem lugares suficientes para acomodar os seus 650 membros, pelo que, nas sessões mais concorridas, alguns usam os degraus das escadas e uma multidão de outros tem de ficar de pé. Alguns, por tradição respeitada, têm o seu lugar assegurado, a maioria senta-se onde pode, sempre colocando-se do seu "lado".

Duas dicas para se entender melhor a complexa coreografia verbal da câmara: quando alguém se refere a um "honorable gentleman" (com exceção do “speaker”, o presidente, não se pode referir o nome das pessoas, mas pode usar-se o nome da "constituency" eleitoral que elas representam) quer significar um membro da bancada que se lhe opõe. Pelo contrário, se o orador falar em "honorable friend" está a indicar um membro da sua própria bancada. Se acaso se ouvir a palavra "right" (como em "right honorable friend/gentleman"), isso significa que se trata de alguém que faz parte do "Privy Council" da raínha, um orgão de aconselhamento em que ingressam, de forma vitalícia, por seleção, alguns membros do parlamento mais qualificados.

Churchill, quando primeiro-ministro, usava uma fórmula irónica para descrever a câmara: à sua frente sentavam-se os "adversários", atrás de si (na bancada do seu partido) estavam os "inimigos". Theresa May deve estar a sentir isso bem, por esses dias...

Deixo-os com uma história de que fui testemunha, passada nessa sala, junto ao "dispatch box", aquele centro de mesa com caixas de madeira e livros, de onde falam o governo e o "shadow cabinet” (o ”governo sombra”), que é o "frontbench" (banco da frente) da oposição - por contraste com o "backbench", constituído por todos os deputados, de ambas as alas, que se sentam nas filas traseiras.

Em 1993, durante a sua visita de Estado ao Reino Unido, o então presidente Mário Soares fez uma visita informal à Câmara dos Comuns, numa hora em que esta não estava em sessão, passeando-se com a comitiva por toda a sala. 

A certo passo, notei que o acompanhante oficial que o Palácio de Buckingham tinha designado para estar com o presidente português ao longo de toda a visita, um aristrocrata, membro da Câmara dos Lordes, demonstrava um inusitado e quase turístico interesse pelos pormenores do mobiliário e pelo conjunto de símbolos que ocupam a mesa central, em frente aos quais governo e oposição se degladiam. 

Talvez porque eu notasse visivelmente essa sua atitude, a certa altura, aproximou-se de mim e disse-me: "Sabe, sinto-me um pouco emocionado!". No instante, não percebi bem a razão dessa emoção. "É que, como membro da Câmara dos Lordes, estou formalmente impedido de visitar a Câmara dos Comuns e, em toda a minha vida, esta é a primeira vez que consigo entrar aqui." 

Estas também são as peculiaridades do sistema político britânico.

“Fake news” ou “wishful thinking”?


Uma edição falsa do “The Washington Post” está a circular hoje pela capital americana, anunciando a demissão de Trump. Traz em título o que muitos desejariam.

Não pode ser só ele a ter direito a dizer mentiras...

Armando Vara


A justiça portuguesa concluiu que Armando Vara cometeu vários crimes de tráfico de influências. Todas as instâncias judiciais foram unânimes, pelo que a decisão, além de inapelável, tem uma legitimidade irrecusável. Armando Vara continua a dizer-se inocente, alguns acham que a pena que lhe foi determinada pode ser algo desproporcionada, mas é óbvio que isso agora é irrelevante, atenta a unanimidade da justiça.

A nossa justiça não tinha sido, até agora, muito eficaz em matéria de crimes de "colarinho branco". Mais do que isso, o crime de tráfico de influências, que surge muito ligado à corrupção, tinha sempre passado "por entre os pingos da chuva", talvez por ter como "primo" distante a "cunha", esse arraigado hábito lusitano (e não só). Ver este tipo de crimes começar a ser punido significa um claro avanço social, um salto de modernidade e de transparência pública com que todos nos devemos congratular - todos aqueles que lutam por uma sociedade mais decente.

Armando Vara vai agora preso. É perfeitamente natural que as pessoas fiquem satisfeitas com a circunstância da justiça se ir cumprir. Mas percebo bastante menos o gozo alarve que se prende ao sentido de humilhação pessoal que se quer somar a este facto. Como se não bastasse Armando Vara ir pagar pelos crimes que cometeu, a alguns parece importante objetivar nele uma espécie de vindicta social. O que se lê por estes dias nas redes sociais e em alguma "imprensa" prova que, mais do que sentido de justiça, alguns setores da nossa sociedade vivem marcados pelo desejo de vingança - esse que é um sentimento mesquinho, típico da mediocridade humana.

A política da forma


Hoje, publico no JN, um artigo sob o título em epígrafe que pode ser lido aqui.

terça-feira, janeiro 15, 2019

Não é Thatcher quem quer


Em novembro de 1990, tive a sorte de estar presente nas galerias da Câmara dos Comuns durante o último discurso parlamentar de Margareth Thatcher. Ferida de morte pelas sucessivas traições e por erros próprios, Thatcher tinha-se tornado um peso para os conservadores. Mas a sua força, naquela sua memorável intervenção, quase que parecia intacta. Nunca suportei a arrogância de Thatcher, figura que politicamente sempre detestei. Mas a sua classe, como personalidade política, era incontestável.

Ao ouvir agora Theresa May, e sem mais comentários, só quero dizer: não é Thatcher quem quer...

Querem um conselho?

Querem um conselho? Nunca se disponibilizem para rever o texto de uma intervenção que tenham feito de improviso! Mas nunca deixem que a sua transcrição escrita seja publicada sem a reverem! Há uma imensa contradição nisto? Claro que há, mas ela é apenas produto da minha “raiva” comigo mesmo. Eu explico. É a quarta ou quinta vez que caio nesta asneira: faço uma palestra, a intervenção é gravada, alguém teve um imenso trabalho para pôr aquilo em texto e, por fim, ainda antes da publicação em livro, é-me simpaticamente pedido que faça uma revisão daquilo que disse. E é então que entro, invariavelmente, em pânico. O que me tinha parecido uma coisa que “até tinha corrido bastante bem”, foi, afinal, um chorrilho de imprecisões, de frases inacabadas, de parágrafos incompletos, de palavras mal colocadas, de concordâncias mal feitas. É assim preciso rever tudo, ao pormenor, sem o que o texto publicado com o meu nome me faria passar por uma verdadeira vergonha. E é então que recomeça a tal reescrita, que me demora - estimo eu, pela minha experiência - cerca de três vezes mais do que o tempo que gastaria se tivesse escrito o texto de raíz. Aconteceu-me isso há três meses, está-me a acontecer por estas horas. Nunca por nunca vou repetir alguma vez mais o erro de falar de improviso sabendo, à partida, que isso irá ser objeto de uma posterior publicação. E aconselho quem aqui me ler a não cometer um erro idêntico. Temos de ser uns para os outros, como se diz na minha terra, não é?

segunda-feira, janeiro 14, 2019

Segunda-feira



Jorge Palma ironizou um dia, no “Deixa-me rir!”, sobre a pessoa que “domingo sabe de cor o que vai dizer segunda-feira”. Por ter ouvido mal a letra da canção, habituei-me sempre a colocar a palavra “fazer” naquele “dizer”. E sentia-me ali retratado. É que, por muito tempo, creio que como bastante gente, aproveitei os fins-de-semana para construir imensas listas de coisas a executar na semana que se iria seguir. Só que, invariavelmente, quando na segunda-feira iniciava, com toda a boa vontade, esse rol de deveres auto-impostos, dava-me conta de que esse novo dia afinal não era um “feriado”, que ele próprio criava novas solicitações, novas urgências, choviam telefonemas, obrigando a lista tão laboriosamente feita a ir caindo num relativo esquecimento. Não raramente me senti frustrado com essa eterna incapacidade de gerir convenientemente o meu quotidiano.

Com a nova vida que a (relativa) reforma me trouxe, a minha agenda anda agora um pouco mais regular, embora muito, mesmo muito, cheia. Ontem, domingo, ao cair do dia, lá tinha feito a minha lista: vários telefonemas, uma conta a pagar, muitos emails em atraso, uns artigos por ler, um livro que me “faz falta”, etc. Eram só 34 items! Hoje acordei “de peito feito” para concretizar muitas dessas obrigações. Ora bem: acabo o dia a constatar que, afinal, quase tudo (embora não tudo) o que estava em atraso em atraso ficou.

De uma coisa tenho a certeza: no próximo fim de semana tudo se passará da mesma forma. Afinal, se há um vício antigo é que nunca desistimos de nos enganar a nós mesmos. No que me toca, porém, há uma agora substancial diferença face ao passado: não me preocupo tanto, e dou conta de que vivo feliz assim. 

domingo, janeiro 13, 2019

Uma pérola rara

Deliciem-se com esta pérola de verdadeiro delírio: ”Foram as esquerdas, depois do 25 de abril, que construíram o mito de que o Estado Novo era de direita para legitimarem o seu poder e sobretudo limitarem a legitimidade das direitas”.

Escreve isto no “Observador” João Marques de Almeida, que foi diretor do Instituto de Defesa Nacional durante o governo de Durão Barroso.

sábado, janeiro 12, 2019

Os jornais e a net

A mudança que teve lugar nos últimos anos, da leitura de jornais para a visualização dos textos na net, acabou por ter uma consequência curiosa. Ao ler um jornal em papel, só a meia dúzia de maduros passava pela cabeça enviar algo para as Cartas ao Diretor. Com a net, cada um reage de imediato nas caixas de comentários, às vezes só “porque sim”, mesmo que não tenha nada de interessante para dizer. 

A facilidade com que as redes sociais abrem espaço à espontaneidade, à reação a quente, reduz a reflexão, a maturação das coisas, simplificando e caricaturando as ideias. E aumenta o potencial de contraste de posições.

Note-se: não estou a tomar partido contra ou a favor de nada. Estou simplesmente a constatar o que me parece ser um facto.

sexta-feira, janeiro 11, 2019

“Tintin a nonante ans!”


Tintin faz agora 90 anos. Este fim de semana, por entre muita coisa que tenho para fazer, vou tentar encontrar tempo para me deliciar a rever alguns dos seus álbuns - de que, felizmente, tenho uma coleção completa, com várias versões que foram evoluindo com o tempo, ao sabor do politicamente correto. E ainda tenho imensa livralhada sobre Tintin, inclusivé um glossário das interjeições e insultos do Capitão Haddock. A “tintinofilia” é uma doença incurável.

Hergé, na criação das suas personagens, não prestou muita atenção a figuras portuguesas. Há apenas três: o professor Pedro João dos Santos, da Universidade de Coimbra, um anónimo jornalista do “Diário de Lisboa” e a melhor de todas, um português das arábias, uma figura que honra a diplomacia económica e que a Aicep, se tivesse humor e coragem, já há muito deveria ter elegido como o seu ícone: o Oliveira da Figueira, capaz de vender um par de skys no deserto do Saara.

Grande Tintin, grande Hergé! Nem pelo facto de Hergé ter sido, tristemente, um colaboracionista, lhe retira o mérito de ser um génio, a quem sou eterno devedor de muitas horas de genuíno prazer.

O bardo


Nuno Pacheco é um excelente e muito estimável jornalista do “Público”, que regularmente se dedica, como hoje uma vez mais faz naquele jornal, a zurzir o Acordo Ortográfico, apontando incoerências (algumas bem verdadeiras) por parte dos seus crescentes seguidores.

Na produção destes seus artigos monotemáticos (que, somados, já davam um livro, que quiçá seria chatote, pela repetição argumentativa), não sei se Nuno Pacheco se dá conta de que cada vez mais se assemelha àquele antigo ministro da Informação do Iraque que, a espaços, surgia por bairros esconsos da Bagdad ocupada, a afirmar, com um sorriso tão amarelo como as areias do deserto, que afinal tudo estava bem, sob controlo de Saddam Hussein, e que as tropas da potência invasora estavam “à bica” de uma derrota memorável, na “mãe de todas as guerras”. Não está, Nuno Pacheco: a guerra está perdida, como já percebeu. Aliás, ao usar hoje a expressão “só a morte é irreversível”, deixa uma subliminar e necrológica prova de que a Servilusa está prestes a assistir derradeiramente a antiga linguagem.

Posso estar enganado (e prometo não perguntar aos vários amigos que tenho lá pelo “Público”), mas tenho a sensação de que, mais dia menos dia, a Nuno Pacheco vai acabar por acontecer o destino de Assurancetourix, o bardo da aldeia de Asterix...

A bola de papel


Ontem, esteve “na moda”, nas redes sociais, ironizar sobre a ideia anunciada pelo município lisboeta de passar a punir, com multas, quem deitar periscas de tabaco ou pastilhas elásticas para o chão. Foi o bom e o bonito! Logo surgiram fotografias de sacos de lixo e carros em segunda fila, numa forma de “whataboutism” que, lá no fundo, quer dizer: “enquanto houver um carro mal estacionado, o município não tem legitimidade de nos chatear com essas regras de civilidade”, considerando-as talvez uma bizarria, como se houvesse uma qualquer prioridade temporal na observância das normas de educação e respeito social.

Lembrei-me então de algo que um dia se passou comigo na Noruega, quando para lá fui viver, em 1979. Eram as primeiras semanas da minha vida no estrangeiro e essa é talvez a razão por que fixei bem o incidente.

Eu tinha ido a uma estação de correios em Bogstadvein, perto da embaixada, levantar uma carta registada. À saída, abri ansiosamente o envelope, que logo amachuquei numa bola, ao mesmo tempo que caminhava pelo passeio. Com a atenção concentrada na leitura da carta, tenho quase a certeza de que foi deliberadamente que deitei ao chão, numa esquina, a pequena bola de papel. Continuei a andar. Uns segundos depois, ouvi a voz de uma mulher dizer algo alto, em norueguês. Era para mim. Tratava-se de uma senhora bastante idosa, a quem devo ter retorquido com uma interjeição qualquer em inglês, talvez “what?”. E foi também em inglês que ela me respondeu, entregando-me a bola de papel, como se de algo valioso se tratasse: “Deixou cair isto. É seu”. Fiquei “passado”! 

Aprendi a lição. E tenho absoluta certeza de que, nestes quase 40 anos que passaram desde esse dia, nunca mais deitei um papel ao chão numa rua.

quinta-feira, janeiro 10, 2019

Crise protocolar


Às vezes, sinto-me tentado a contar por aqui algumas histórias “proibidas”. Tenho mesmo uma lista de algumas. Parte delas são, porém, eternamente interditas à partilha. Ou porque poderiam pôr em causa pessoas que o não merecem (e não fazê-lo é uma regra que nunca infringirei) ou porque relevam da confidencialidade devida às funções oficiais que ocupei ou, muito simplesmente, porque fazê-lo trairia a confiança daqueles com quem partilhei certas ocasiões. Há ainda aquelas historietas que ficam numa espécie de “zona cinzenta”. Esta é uma delas.

A que hoje vou contar, e que só a mim compromete, foi perdendo o seu caráter sensível com a passagem do tempo. E hoje, creio, já pode ser revelada.

Estávamos no mês de janeiro de 2008. O Cônsul-Geral de Portugal no Rio havia decidido organizar um jantar de gala, com fins de beneficência, no Palácio de São Clemente, a sua bela moradia no Botafogo, que já foi embaixada de Portugal, quando a capital era no Rio de Janeiro.

Havíamos conseguido fazer deslocar propositadamente de Brasília para o evento, que envolvia uma imensidão de gente, o vice-presidente da República e a sua mulher, José Alencar, uma pessoa com quem eu teria, até à sua morte, uma boa relação de amizade. O jantar seria co-presidido por ele e por mim.

Fomos de Brasília para o Rio na manhã do dia do jantar. Para não sermos “pesados” numa casa que estava numa polvorosa organizativa, decidimos hospedarmo-nos por uma noite no hotel Pestana do Rio. Passei uma bela tarde a ler na varanda, com vista sobre a Avenida Atlântica e, já bastante em cima da hora do jantar, e apenas por um mero acaso, deitei um olhar pelo elaborado convite que havia sido desenhado para a ocasião... e entrei em choque!

O convite dizia que o jantar era de “smoking” e eu só tinha trazido um fato escuro. Era absolutamente inadequado (Álvaro Cunhal fazia-o sempre nos jantares da Ajuda, mas eu não era Cunhal) ocupar um lugar de honra com o vice-presidente do Brasil, com este vestido a preceito e comigo a envergar um traje “um furo abaixo” daquele que a ocasião exigia. Estávamos em cima da hora: já não havia tempo para alugar um “smoking”. Que fazer?

Só havia uma solução: “adoecer”. Pretextando uma grave crise digestiva, faltei ao jantar, pedindo ao Cônsul-Geral, não só que me substituísse, mas que pedisse por mim desculpa à importante figura de Estado presente. E, à hora em que a “fina flor” do Rio dava entrada na festa para a qual tinha pago uma boa quantia, porque destinada a uma instituição de caridade, estava eu, com a maior discrição, a jantar num ignoto restaurante nas imediações do Pestana, esperando que ninguém me reconhecesse.

A minha “doença” iria ter uma outra consequência negativa, também de vulto. Para o dia seguinte, eu tinha comprado um bilhete para ir ver, no Maracanã, um Fla-Flu, um jogo do Flamengo contra o Fluminense, uma histórica partida de futebol, a que sempre tinha sonhado assistir. Ora, “doente” como eu estava, tendo mesmo nessa manhã havido um simpático telefonema da mulher de José de Alencar para a minha, a inteirar-se do meu estado de saúde, estava fora de causa poder vir a assistir ao prélio na “catedral” brasileira do futebol. E lá regressei ao final da tarde a Brasília, cabisbaixo, onde, nas horas e dias seguintes, recebi vários simpáticos telefonemas de gente da comunidade portuguesa e do “social” carioca a enviar-me votos de melhoras. 

Devo dizer que, a partir deste incidente, passei a ter uma maior atenção com os cartões de convite. Mentir socialmente é uma arte que todos aprendemos na vida diplomática, mas há ocasiões em que, de facto, mesmo sem estarmos doentes, nos sentimos bem mal. Foi o caso.

O Brexit que aí vem


Nada indica que a votação que, daqui a dias, terá lugar no parlamento britânico, para tentar ratificar o acordo entre Londres e os “vinte e sete”, para uma saída negociada do Reino Unido da União Europeia, venha a ter um resultado favorável a tal acordo. Pelo contrário, todos os sinais apontam em sentido inverso. Uma surpresa seria, contudo, muito bem vinda.

O governo de Theresa May, criado para “pilotar” o Brexit, não terá sido capaz de sustentar uma frente que lhe permita agora validar internamente o esforço negocial. Com isso, fica a ideia de que vai também para o lixo todo o excelente trabalho conduzido pela equipa chefiada por Michel Barnier, que obteve aquilo que seria um magnífico resultado ... se o Reino Unido viesse a aprovar o acordo.

Todo o esforço negocial terá sido, assim, em vão? Não creio. Voltemos um pouco atrás, ao tempo que sucedeu ao referendo que desencadeou o Brexit. Lembremo-nos do sentimento de quase pânico que atravessou então a Europa, levando a histéricas e pouco prudentes declarações de vários responsáveis, colando a vontade democrática de Londres a uma espécie de traição, adjetivada ao absurdo e ao quase insultuoso. Os mercados, interpretando esse desvario, deram então sinais de forte instabilidade e de tensão. Depois, acalmaram. Com o tempo, o trabalho da equipa de Barnier terá sido capaz de decompor a nova realidade, segmentá-la e, na medida do humanamente possível, medir o essencial do que estava em causa “nos papéis do divórcio”. E os mercados sabem isso.

Hoje, perante a perspetiva de um Brexit sem acordo, embora seja inevitável que algum nervosismo possa vir a atravessar de novo os meios económicos, parece que ninguém acredita que isso possa ser o fator desencadeador de um pânico em cadeia, de consequências catastróficas. O trabalho negocial terá tido o interessante mérito de permitir antecipar certos efeitos, pelo menos no que toca aos “vinte e sete”. Muito menos claro parece ser o cenário para o próprio Reino Unido, que inevitavelmente vai entrar num mundo novo e imprevisível. 

A gestão do que aí virá não vai ser fácil. O bom senso aponta para que, a um eventual vazio negocial, não venha a somar-se uma acrimónia irresponsável, de ambos os lados. É do interesse comum que, perante um provável impasse, se recomece de imediato o trabalho entre as partes, tentando criar pontes onde for possível estabelecê-las. Os vizinhos não saem do sítio e, com ou sem Brexit, o Reino Unido é um vizinho próximo com que teremos de nos entender.

quarta-feira, janeiro 09, 2019

Chirac e os “embaixadores da Europa”

Há dias, li uma notícia que dava conta de que o representante diplomático da União Europeia junto dos Estados Unidos tinha sido “downgraded” no protocolo de Washington: a partir dos últimos meses do ano passado deixou de ser convidado para certas cerimónias e o seu lugar na ordem protocolar foi “baixado” para o fundo da tabela, colocado em conjunto com algumas estruturas multilaterais de nível muito inferior.

Depois do Tratado de Lisboa, com o surgimento da “personalidade jurídica” internacional da União Europeia, os seus delegados, oriundos do Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE), passaram a ter o estatuto de chefes de missão diplomática, exatamente a par com os embaixadores dos Estados membros. A sua aceitação está hoje generalizada um pouco por todo o mundo e é vista como incontroversa, pelo que esta atitude americana foi interpretada como uma óbvia provocação, fruto da acrimónia existente na administração Trump face à UE.

A representação externa da União, que passou a congregar no SEAE quadros oriundos da Comissão Europeia, do Secretariado-Geral do Conselho e dos Estados membros, alterou significativamente o modelo de representação externa da União, anteriormente limitado às delegações técnicas da Comissão. Estas últimas tinham um estatuto algo híbrido, mas de nível diplomático formalmente baixo. Não obstante, em especial em Estados muito dependentes da ajuda comunitária (e não são tão poucos como isso), a importância local do delegado da Comissão, por quem passavam muitas das ajudas financeiras, era imensa. Não raramente, eram tratados como “embaixadores” e, embora não o sendo, nunca dei conta de que algum recusasse ser considerado como tal...

O que agora se passa. em Washington trouxe-me à memória um episódio, ocorrido em 2000. Eu tinha ido a Paris com António Guterres, no quadro da presidência portuguesa da UE, para um almoço de trabalho no Eliseu, com o presidente Jacques Chirac. Era amplamente sabido que, para Chirac, a Comissão Europeia era uma espécie de “bête noire” europeia: a sua autonomia, os seus poderes e a liberdade de atuação que crescentemente assumia nos assuntos comunitários eram algo a que uma certa França, sempre muito ciosa da sua soberania, e que Chirac bem representava, tinha horror.

Num certo momento da conversa, Chirac contou a Guterres que tinha ido um dia a um país africano e que, na “receiving line” das personalidades que o esperavam à saída do avião, ouviu a certa altura alguém apresentar-se: “Eu sou o embaixador da Europa”. Chirac, contou-nos o próprio, estacou, olhou o homem do alto do seu 1,90 m, e retorquiu-lhe, em voz bem forte e sonante, por forma a ser bem ouvido em redor: “Você não é embaixador de nada! Você é apenas um funcionário nosso”. O efeito sobre o delegado da Comissão deve ter sido grande, pelo seguinte comentário de Chirac: “Nem imaginas, António, como o homem ficou! Estava tão pálido que eu receei que desmaiasse...”

Quando li a notícia sobre a “bofetada” protocolar dada agora pelos americanos ao representante diplomático europeu, não consegui deixar de pensar que, se acaso o estado de saúde de Jacques Chirac o não impedisse hoje de estar a par do que quer que se passe pelo mundo, seguramente que sorriria imenso perante estes revés da política centralizada em Bruxelas, que nunca lhe agradou.

O Brexit que aí vem


Pode ler aqui, o texto que hoje publico no JN.

terça-feira, janeiro 08, 2019

As gravatas de Sobel


Ontem, num site americano, li que Clifford Sobel foi nomeado como consultor de Trump para a área dos serviços secretos. Pensei para mim: o nome “rings a bell”. Fui ver ao Google e lá estava: tinha sido antigo embaixador no Brasil.

Um dia de 2008, em Brasília, o novo embaixador americano, que acabara de chegar e eu ainda não conhecia, pediu para me ver. Chamava-se Clifford Sobel. Na prática diplomática, os embaixadores que arribam aos postos fazem uma visita de cortesia a alguns dos seus colegas. Não a todos, como é óbvio, mas àqueles que podem ter maior importância para o seu país ou para o país onde estão acreditados. Portugal, no Brasil, é um desses países.

Mandei dizer que, ao invés de uma reunião no escritório, tinha muito gosto em convidá-lo para almoçar. Na volta, mandou perguntar se podia trazer a mulher, ao que naturalmente anuí. Era um homem simpático, um “businessman” feito diplomata (já o tinha sido na Holanda), com um sentido de conversa muito prático. A senhora era também muito agradável, parecendo-me quase tão profissional como o marido. (Vim depois a apurar que ela fora uma importante “fundraiser” da campanha de George W. Bush). Para a mesa, para minha grande surpresa, o embaixador levou um caderno. Mas a surpresa ia ser ainda maior: a mulher levava outro caderno. O almoço teve alguma graça. Fui sujeito a uma bateria de perguntas, com base de notas que traziam, por parte de ambos os membros do casal, essencialmente sobre a vida política brasileira: se A era mais importante do que B, quem mandava aqui ou acolá, quem seria corrupto ou honesto, a orientação política de vários importantes jornalistas, etc. 

“Disseram-me que você sabe tudo sobre a vida política deste país”, justificou ele, elogioso. Lembro-me de lhe ter dito que, como todo o diplomata num posto no exterior, eu estava de facto a chegar ao ponto em que começava a achar que já sabia bastante da realidade local - momento perigoso que passava a recomendar a minha mudança de posto, porque, quando estamos convencidos de que sabemos quase tudo, deixamos de ver o que chega de “novo”. Não é por acaso que, em regra, todos os diplomatas mudam ao final de quatro ou cinco anos. Eu próprio iria sair meses depois.

Porque pensava que a conversa com o meu novo colega americano e a sua mulher ia ser social, tinha convidado para o almoço a jornalista Maria João Avillez, que estava de passagem por Brasília, e que me recordo ficou siderada pelo verdadeiro “exame” político a que fui sujeito.

A saída, preguei a Clifford Sobel um leve “susto”: perguntei-lhe se gostava de gravatas. Tendo ele dito que sim, que gostava muito, aconselhei-o a não dizer o seu nome se entrasse numa loja brasileira para comprar gravatas. Perplexo, perguntou-me porquê. Expliquei-lhe que o mais importante rabi brasileiro também se chamava Sobel e, cerca de um ano antes, fizera capa de todos os jornais brasileiros, com fotografia, por ter sido preso por roubar cinco gravatas na Louis Vuitton... precisamente nos Estados Unidos, tendo sido obrigado a demitir-se das suas funções religiosas. 

Os embaixadores americanos saíram de minha casa algo pensativos...

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...