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quinta-feira, abril 06, 2017

Virgílio Varela



Conheci o Virgílio Varela em outubro de 1974, quando, depois da dissolução da Junta de Salvação Nacional criada em 25 de abril, onde eu assessorava o general Galvão de Melo nas questões da extinção da PIDE/DGS, fui trabalhar para a 2ª Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas, chefiada pelo então brigadeiro Pedro Cardoso. 

O Varela, como lhe chamávamos, era por ali uma figura agitada e sorridente, sempre bem disposta, de convívio muito agradável, com o seu sotaque madeirense, trabalhador como poucos. Naquele curioso espaço no topo do Palácio da Ajuda (contar a história daqueles meses e de muita gente que ali operou nesses meses "da brasa" dava um belo livro), ambos então sob as ordens diretas do major (depois general) Espírito Santo, vivia-se uma "guerra" feliz, combinando alguma gente mais à esquerda (onde eu me situava) com quantos se mostravam inquietos com o ritmo da Revolução (como era o caso do Virgílio Varela).

(Era um tempo em que havia tempo para tudo: eu trabalhava desde as 8.30 da manhã na Ciesa NCK, ia almoçar à messe de Pedrouços e, entre as 13 e as 19 horas, "fazia a tropa" no EMGFA. Pelo meio, nesse ano de 1975, escrevi com um amigo um livro sobre "O caso República" e ia fazendo as provas de admissão ao MNE, onde ingressei em Agosto.) 

O Varela trazia colada à pele a imagem da heroicidade que revelara nas Caldas da Rainha, em 16 de março desse ano, quando prendeu o comandante do regimento, amotinou a unidade e comandou a coluna que procurou chegar a Lisboa. Como consequência do movimento ter falhado, foi depois preso por algum tempo na Trafaria, de onde sairia no 25 de abril, em que logo teve atividade operacional relevante. Era tido como um fiel spinolista, sendo que o nosso trabalho em conjunto se processou já após a demissão de Spínola de Presidente da República, em 28 de setembro de 1974. Na sequência do 11 de março de 1975, voltaria a ser detido, por algumas semanas, por acusações de implicação no golpe que Spínola encabeçou nessa data.

Perdemo-nos de vista durante muitos anos. Voltei a encontrá-lo apenas uma vez, num café, já depois dele ter sido comandante da PSP de Lisboa. Falámos e eu aproveitei para "arrumar" algum "misunderstanding" que sentia que havia sobrado entre nós, na sequência da confusão do 11 de março, da dissolução da 2ª Divisão do EMGFA e da criação do SDCI (que eu passei a integrar, enquanto ele estava preso). Acabámos a conversa, franca e leal, com um abraço de amizade, coisa que agora não poderemos repetir. Morreu ontem esse generoso capitão de abril, que, para a História democrática, ganhou as sua esporas revolucionárias ainda no mês de março de 1974.

segunda-feira, março 20, 2017

Rockfeller

A morte, hoje, do milionário David Rockfeller, aos 101 anos, trouxe-me à memória um episódio ocorrido numa viagem de Mário Soares a Nova Iorque, nos anos 70. Foi-me contado, não há muito tempo, por alguém que acompanhou Soares a um encontro com uma figura, já bastante idosa, também da família Rockfeller. 

Na altura, Mário Soares procurava concitar apoio a Portugal por parte de entidades do setor financeiro americano, tendo em atenção o prestígio que criara como figura de credenciais democráticas, no Portugal ainda algo convulso desses tempos. O Rockfeller milionário com quem então se encontrou é que, muito provavelmente, tinha um escasso conhecimento da História recente de Portugal, pelo que talvez não tivesse sido a pessoa mais adequada...

Nessa reunião, Mário Soares explanou as suas razões, devidamente traduzido para inglês por um colaborador. O seu interlocutor parecia um pouco "aloof", mas quem o acompanhava tomava as necessárias notas, pelo que a utilidade do encontro parecia assegurada. No final, o idoso Rockfeller disse umas palavras de circunstância e a reunião terminou. Quando ambos tinham acabado de se cumprimentar, o americano "deixou cair", em jeito de derradeira mensagem: "My best regards to doctor Salazar". 

Soares só ouviu a última palavra e perguntou, já na porta, para um dos integrantes da delegação: "Ele disse qualquer coisa, no fim, sobre Salazar. O que é que foi ?". "Não foi nada de importante...", retorquiu-lhe o colaborador.

quarta-feira, março 01, 2017

Diplomata de Abril

«Nada mata mais um escritor do que obrigá-lo a representar um país», disse um dia Julio Cortázar, citado por José Fernandes Fafe nas «Conversas durante anos» (Almedina 2002) que António Silva com ele teve. Não para concordar necessariamente com a asserção, mas para questionar ironicamente essa dicotomia nem sempre fácil de assumir. Na limitada abertura a quadros exteriores à carreira diplomática tradicional, que o poder democrático subsequente à ditadura decidiu levar a cabo a partir de 1974, José Fernandes Fafe, ao lado de Coimbra Martins, Álvaro Guerra e José Cutileiro, figura entre as personalidades oriundas da área cultural que vieram a ser escolhidas.

Ser o nosso novo homem em Havana foi o desafio que Mário Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros, lhe lançou, quem sabe se lembrado de uma viagem clandestina que ambos haviam feito à ilha de Fidel, em meados dos anos 60. Fafe partilhava, há muito, uma sedução geracional pela revolta que havia deposto Baptista. Uma simpatia que tinha menos de ideológico – Fafe era um socialista moderado, com um pendor liberal – e bastante mais de romântico. Ele fora «David Alport», o pseudónimo com que assinou, para escapar ao crivo da ditadura portuguesa, aquela que é hoje considerada uma das primeiras biografias de Che Guevara. 

O novo embaixador beneficiava da boa vontade política junto do regime cubano, num tempo em que alguns militares e outras figuras da Revolução portuguesa se deliciavam em romagens à terra dos heróis do «Granma». A memória das Necessidades guarda a ideia de que a densidade objetiva das nossas relações com Cuba estava, à época, algo aquém daquilo que uma figura com o prestígio e os excelentes contactos de Fernandes Fafe poderia ter proporcionado

Daí que, para essa memória coletiva da nossa ação externa, o seu posto seguinte, o México, se tenha consagrado como um ponto particularmente alto – eu diria, na perspetiva de um profissional da casa, aquele que o tornou verdadeiramente «one of us». A profunda interação cultural que aí conseguiu levar a cabo, com presença constante na imprensa e nos meios da cultura, viria a ser muito marcante, num  país onde a imagem das ditaduras ibéricas permanecia ainda forte, com culturas de exílio a misturarem-se com os novos tempos. Mas seria ainda no México que Fernandes Fafe se iria «libertar» do estigma redutor que, um pouco por todo o mundo, sempre persegue as figuras da cultura convertidas à diplomacia: no forte impulso que deu às relações económicas bilaterais, nomeadamente aquando da sensível questão do abastecimento petrolífero a Portugal, as «esporas» de um embaixador completo viriam a assentar definitivamente a Fernandes Fafe.

Mas a cultura, com naturalidade, regressaria ao seu horizonte. Por um par de anos, o papel de embaixador itinerante para esse domínio caiu-lhe que nem uma luva. Diga-se que, com o brasileiro Celso Cunha e Lindley Cintra, Fernandes Fafe foi então um dos autores de um estudo sobre uma estratégia para a Lingua Portuguesa que ainda hoje ganharia em ser revisitado. Foi, aliás, nessa qualidade que o cruzei pela primeira vez, ao tempo em que eu próprio era diplomata em Angola.

Acabaria por ser também um país de lusófono, Cabo Verde, o seu terceiro posto de destino. Um país onde trabalhou muito e bem, como todos reconhecem. Cultura e economia foram pontos fortes dessa sua ação, marcada também pela dinamização do apoio às várias instituições do país, através das estruturas congéneres portuguesas. O êxito atual de Cabo Verde, o seu papel de «benchmark» para a África, rima muito com essa sua linha de trabalho.

A carreira de Fernandes Fafe viria a reencontrar a América Latina naquele que seria o seu último posto: Buenos Aires. Um desafio aos 63 anos, numa embaixada onde teria, contudo, um mandato curto. Dois anos depois, como mandava a lei, regressava a Lisboa.

José Fernandes Fafe foi um diplomata de abril, uma figura que levou o seu prestígio intelectual para as estruturas da política externa portuguesa. Serviu o país com brilho, empenhamento e qualidade. O seu desaparecimento, aos 90 anos, é um momento triste para a nossa diplomacia.

(Artigo hoje publicado no "Jornal de Letras")

sábado, abril 28, 2012

Conquistas de abril


Éramos quatro, entrámos pé-ante-pé, pelas escadas, evitando o elevador. O prédio era "ao Califa", ali na estrada de Benfica. A informação era muito segura: o Cordeiro, um sinistro inspetor da PIDE, ter-se-ia safado do cerco da António Maria Cardoso e podia estar refugiado em casa ou prestes a aceder a ela. Se iria resistir ou não, isso era o que se ia ver, e não nos sossegava mesmo nada. 

No terceiro andar esquerdo, batemos à porta e preparámos as armas, mimando a coreografia que víamos nos filmes, com a “expertise” operacional de quem vinha da administração militar. De dentro, uma voz feminina perguntou quem era..

"Forças Armadas”, respondemos, num plural majestático que estava a ter momentos de glória ímpar nessas horas, logo após o 25 de abril. 

A porta abriu-se, lenta, com a cara fechada de uma mulher de meia-idade a aflorar. Logo atrás, face angustiada, via-se uma rapariga mais nova, na casa dos 20 anos. Entrámos e o ambiente foi de compreensível frieza, com respostas algo agrestes, de uma dignidade ferida, sem remissão. 

Eram a mulher e a filha do inspetor. Procurámos ser muito corretos, embora firmes e incisivos nas questões, até para dar ares de uma determinação que disfarçasse o nosso imenso nervosismo. Que não, que o inspetor não estava, o que uma busca à casa logo confirmou, e não sabiam onde poderia encontrar-se ou se viria até à noite. Mas, pela conversa e outros dados circunstanciais, ficámos com a suspeição de que o Cordeiro ainda poderia chegar. Como nos tinham dito. Dispusémo-nos a deixar cair a noite, esperando o fugitivo Cordeiro. 

Estudámos a situação e, em discreto conciliábulo, pensámos que seria melhor isolar as duas mulheres, afastando-as do telefone negro na mesa da sala, não fosse elas serem tentadas a dar alarme, caso o inspetor entretanto ligasse. Dividimo-las por dois quartos, ambas acompanhadas. Dois de nós montámos uma espera no corredor, aguardando o eventual abrir da fechadura. 

Passara já mais de uma hora, quando, no imenso silêncio que ali se vivia, se ouviram, de um dos quartos, uns ruídos estranhos, parecendo gemidos ou choro, de súbito calados. 

"Tu não queres ver que o Silvestre perdeu a pachorra e decidiu dar dois tabefes à filha do pide, para lhe sacar o paradeiro do pai?!", exclamou o Branco

Não acreditei. Esse não era o estilo do Silvestre, um miliciano de Económicas, muito educado, com pinta de galã. Atravessei o curto corredor, abri a porta do quarto: lá estavam eles, sentados na cama, ela a vestir-se, sorridente e algo encavacada, com o Silvestre, já a puxar por um cigarro. 

Era um belo início da aliança povo-MFA

quarta-feira, abril 25, 2012

Os partidos e o 25 de abril

Hoje, dia 25 de abril, convidei para um almoço na embaixada  dois representantes em França de cada um dos cinco partidos políticos que hoje têm representação na nossa Assembleia da República. Durante cerca de duas horas, revisitámos, celebrando-a, a data fundacional da democracia que nos rege, numa discussão serena, onde não deixaram de estar presentes as divergências de que se constitui a diversidade da nossa vida política. Mas onde também ficou evidente, acima dessas diferenças, o quanto Portugal deve a quem o libertou de uma ditadura que criou um triste interregno, de cerca de meio século, numa vida democrática que havia sido iniciada em 1820.

A política é uma atividade nobre que, em grande parte, se objetiva através da ação dos partidos políticos, entidades congregadoras de vontades e portadoras de projetos de sociedade, por natureza contraditórios entre si. Nos últimos tempos, em Portugal, mas não só, a atividade partidária tem vindo a ser denegrida, nos simplismo de um discurso de matriz populista, identificada como um mero exercício de lóbi, como espaço para o carreirismo pessoal, para a concretização de algumas negociatas e para agendas que, muitas vezes, estão longe da prossecução do interesse público que deveria ser o centro da sua atividade. É muito provável que, numa certa medida, essa acusação possa ter alguma sustentação na realidade, justificando assim todos os esforços que possam ser feitos para uma regeneração do nosso sistema partidário. Mas que fique claro: sem os partidos políticos, estes ou outros, não há democracia.

O meu convite de hoje destinou-se, assim, a homenagear os partidos políticos portugueses, com uma saudação particular para aqueles que, nomeadamente em França, já existiam antes do 25 de abril e através de cuja ação militante, muitas vezes em condições bem difíceis, também foi possível ajudar a concretizá-lo.

terça-feira, abril 24, 2012

Com cravos, sempre!

Correndo o risco de parecer pretensioso, mas atenta a discussão em torno das comemorações do 25 de abril, apetece-me respigar o que aqui publiquei, em 25 de abril de 2010:

"Em Portugal, o 25 de abril é oficialmente celebrado com uma sessão de discursos políticos e partidários na Assembleia da República. Todos os anos, para além da aturada observação jornalística de quem leva ou não um cravo ao peito, a atenção pública volta-se para o tom e exegese dessas intervenções, que invariavelmente utilizam a comemoração abrilista para tratar a realidade da conjuntura política do presente. Assim, aquilo que poderia ser um espaço de proclamação de elegias à liberdade conquistada nessa data acaba por se transformar numa arena de severo combate político, com as diversas leituras de "abril" a servirem de arma de arremesso, mais ou menos subliminares. Julgo que ninguém, com sinceridade, acreditará que essa maratona declaratória contribui, minimamente, para louvar as virtualidades da Revolução e para cativar novas gerações para o culto desse momento fundacional da nossa democracia.

Noutro registo, menos plural e um pouco mais "biaisé", um grupo de muito respeitáveis militares que fizeram a Revolução de abril, acompanhados por figuras da nossa história política (quase sempre já) passada, acolitados por incontornáveis representantes de forças políticas e sindicais de lateralização óbvia, desce a avenida da Liberdade, aí já com total abundância de cravos e com a exibição de slogans que fazem parte do património típico da memória revolucionária. Ninguém negará, contudo, que o tom peculiar dessa manifestação acaba por excluir muitos outros, para quem a memória da Revolução se exprime em moldes mais serenos e menos polítizados. 

Na simples mas inalienável qualidade de cidadão, quero deixar aqui expresso, com a total consciência do peso do que escrevo, que considero que ambos os eventos acabam por funcionar, objetivamente, contra o 25 de Abril. 

Comemorar o 25 de Abril, celebrar essa magnífica Revolução que, por uma vez, quase que fez o milagre impossível de unir o país, deveria consubstanciar-se apenas na organização de festas populares por todo o país, com música, com bailes, com juventude, com alegria e, sempre, sem discursos e sem slogans. Como, aqui em França se faz com o "14 juillet". Ah! e com muitos cravos, para quem os quisesse e os apreciasse. A liberdade também se faz da possibilidade dessa opção. 

Mas que não reste a menor dúvida: nesta data, estive, estou e sempre estarei de cravo vermelho ao peito.".

Amanhã, na Embaixada de Portugal em Paris, reunirei, num almoço, representantes de todas as forças políticas com expressão na Assembleia da nossa República. Os partidos não esgotam a democracia, mas, sem eles, ela não existiria.

sábado, março 10, 2012

11 de Março de 1975

A tensão fora imensa durante todo o dia. Recordo os caças a passar a meio da manhã sobre Belém (que eu via da varanda da Ciesa-NCK, onde eu tinha o meu emprego matinal), as notícias do ataque aéreo e terrestre ao regimento do RALIS, o almoço rápido e pesado na messe do Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, e uma infindável tarde, prenhe de boatos, telefonemas e dúvidas, passada entre a 2ª divisão do EMGFA, no palácio da Ajuda, e o então Instituto de Sociologia Militar, na calçada das Necessidades.

Era o dia 11 de Março de 1975. Spínola havia provocado a revolta contra o MFA em Tancos, mandara avançar forças sobre Lisboa, convencido que poderia conseguir um levantamento de outras unidades, descontentes com a progressão radical da revolução. A tensão político-militar tinha atingido o seu ponto extremo e culminaria com a patética rendição dos pára-quedistas em frente ao RALIS, com a fuga de Spínola para Espanha, a prenunciar que muita coisa poderia mudar a partir de então. Não sabíamos, porém, o quê e como. 

A tarde acabou e eu regressei a casa, a ouvir a rádio e a ver, pela enésima vez, as imagens da televisão. Por um pressentimento de que algo iria passar-se ainda nesse dia, voltei ao Instituto de Sociologia Militar, depois de jantar. Começaram a aparecer por lá alguns milicianos do Exército, como eu e o Agostinho Roseta, militares da Marinha, gente vinda do RALIS, estes últimos a descrever com emoção os eventos da manhã. E apareceram algumas figuras gradas do MFA, próximas do PCP, como Ramiro Correia e Dinis de Almeida.

De repente, como que por acaso, começou a consensualizar-se uma onda de revolta pelo facto do “Conselho dos Vinte”, que funcionava como órgão militar máximo desde a extinção da Junta de Salvação Nacional, estar “placidamente reunido nos tapetes de Belém”, como alguém disse. Aparentemente, ao que nos chegava, o Conselho estaria apenas disposto a reflectir sobre a crise, sem cuidar de afastar ou punir alguns culpados óbvios, senão por acção, pelo menos por indesculpável omissão ou complacência com os “conspiradores spinolistas”, como o nosso radicalismo simplificava os revoltosos do dia.

Para muitos dos exaltados presentes, a lista dos responsáveis já era longa, desde os serviços de informação militar até certas figuras da hierarquia militar e à "reaccionária" direcção da televisão, o que significava, para alguns, querer atingir Ramalho Eanes, o general que, meses mais tarde, seria o comandante operacional do contra-golpe de 25 de Novembro de 1975.

Aí pelas 11 horas da noite, forma-se, no seio do "pessoal" que discutia a situação, uma ideia imparável: ir a Belém, interromper o “Conselho dos Vinte” e exigir uma reunião extraordinária da Assembleia do MFA, para essa mesma noite.

Dito e feito. Aí avançámos nós rumo à Presidência da República. Entrei ao volante do meu carro pelo pátio das Damas, à Ajuda, sem nenhum impedimento dos polícias do portão, amedrontados pelo aparato da fila de viaturas. A meu lado ia o Agostinho Roseta, dois desconhecidos oficiais da Marinha de boleia no banco de trás, a quem, estranhamente, não arrancámos grandes palavras em todo o trajeto.

Depois, foi o povoléu de roldão pelos corredores, qual entrada no Palácio de Inverno, com escadas que notei que desciam e subiam de seguida, até que entrámos numa sala, onde demos de cara com o almirante Rosa Coutinho. O Conselho devia estar interrompido e o almirante, com o seu sorriso largo, olhando o nosso tom decidido e grave, lançou, divertido: “Até parece que vêm fazer um golpe de Estado!”.

Foi então que se ouviu uma voz, saída de uma cadeira à esquerda da porta por onde entráramos, e em quem não havíamos ainda reparado: “Eu não lhe dizia, meu almirante, que a rapaziada acabava por aparecer por cá?!”. Era uma figura muito conhecida do MFA, desde sempre muito ligadao ao PCP.

Nesse instante, olhei para o Agostinho Roseta e ambos concluímos, em silêncio, estarmos a fazer o papel de “inocentes úteis” numa manobra muito bem urdida pelo "partido" e pela “esquerda militar” que lhe era afeta.

Depois, as coisas precipitaram-se. Saímos para uma sala maior, os membros do Conselho acabaram por se juntar à tropa "amotinada" que nós éramos, houve uma dura troca de palavras durante um quarto de hora, com Vasco Lourenço a tentar ser a força moderadora do lado dos conselheiros, tendo o presidente Costa Gomes acedido, finalmente, à realização da Assembleia – esse areópago de cerca de 240 militares que era uma espécie de parlamento da revolução.

Meia hora mais tarde, perante o entusiasmo de muitos e o visível incómodo de alguns, estávamos a reunir, de volta à calçada das Necessidades, aquela que ficou conhecida como a “assembleia selvagem” de 11 de Março, uma Assembleia do MFA convocada em termos mais do que duvidosos e com uma composição mais do que nunca “ad hoc” – de que a melhor prova era a minha própria presença, que dela não fazia parte formal, embora, noutra qualidade, tivesse estado presente em reuniões anteriores, o que voltaria a repetir-se até julho.

Aquela foi a noite dos confrontos verbais extremos, de um apelo pateta e isolado a fuzilamentos de “traidores”, de uma imensidão de intervenções dramáticas, em que até eu não deixei de meter a minha breve colherada oratória.

Às sete da manhã, estava a tomar pequeno almoço com o José Rebelo, então correspondente do “Le Monde”, sedento de notícias, numa leitaria ao Saldanha.

O dia correu numa imensa agitação e, na noite desse já 12 de Março, ajudei a votar, numa assembleia do Exército, os nomes para o Conselho da Revolução, que a reunião “selvagem” da véspera criara. A minha legitimidade para participar nesse exercício era mais do que duvidosa, mas os tempos eram o que eram.

Antes, porém, num intervalo, fui procurado pela mesma figura que na véspera encontrara em Belém, a qual, a pretexto de felicitar-me por uma intervenção feita momentos antes, me deu a ler, para consideração e eventual apoio, uma proposta com nomes para figurarem como representantes do Exército naquele novo Conselho. O nome do próprio constava da lista.

Olhei para ele, “escaldado” pela cena de Belém, e retorqui apenas: “Não acha essa lista demasiado óbvia?”. Voltou-me as costas. Eu podia continuar a ser inocente, mas havia coisas para as quais já não me prestava a ser útil.

quinta-feira, dezembro 29, 2011

Havel e Corvacho

Neste final de ano, morreram Václav Havel e Eurico Corvacho.

Visitei Havel em Praga, acompanhando António Guterres, no final dos anos 90. Conheci pessoalmente Corvacho, em 1974/75, nos tempos do MFA.

A morte de Václav Havel mereceu grandes e merecidos títulos. O herói da Revolução "de veludo", um humanista e um democrata, concitou loas de todos os quadrantes. Contrariamente a Alexander Dubček, Havel escapou à habitual tragédia das figuras-charneira da História e viu, em vida, consagrado o seu papel. Intelectual e escritor, apoiou o caminho do seu país em direção à União Europeia, depois da partilha da Checoslováquia. E morreu em glória.

Muito menos leitores deste blogue ouviram falar de Eurico Corvacho. Foi um militar de abril, próximo da "esquerda militar", o grupo que então mais se ligou ao Partido Comunista Português. Foi comandante da Região Militar Norte e a sua imagem surgiu pela primeira vez aos portugueses, pela televisão, a denunciar a atividade de um grupo de extrema-direita que se opunha à Revolução, o ELP - Exército de Libertação de Portugal. Foi membro do Conselho da Revolução. E morreu esquecido.

Havel e Corvacho tinham pouco a ver um com o outro? O discurso maniqueu, tão no "l'air du temps", dirá que Havel quis a democracia para o seu país e que Corvacho apenas queria implantar uma nova ditadura. Eu digo que, cada um, à sua maneira, teve uma ideia de liberdade para o seu país. A História favoreceu aquele que, afinal, tinha razão. Ainda bem.

sexta-feira, dezembro 02, 2011

Refundar a Europa (3)

O debate no painel em que participei no Congresso sobre o "25 anos na União Europeia" não foi isento de polémica. A política agrícola portuguesa para a Europa foi um dos temas mais controversos, com João Cravinho e eu próprio a não concordarmos com a abordagem de Rosado Fernandes, o que, aliás, esteve longe de ser uma surpresa. Devo dizer que, discordando genericamente da leitura que o antigo deputado europeu e dirigente da CAP faz sobre o "saldo" da nossa presença na Europa, respeito a sua perspetiva soberanista e reconheço nela uma genuinidade que me não é indiferente.

Rosado Fernandes e eu próprio repetiríamos uma outra cordial conflitualidade, quando o professor universitário disse que tinha optado por ser deputado ao Parlamento europeu para que Portugal "se visse livre o MFA".

Não resisti à provocação e disse que o Comandante Costa Correia, destacada figura do Movimento das Forças Armadas, presente na sala, e eu próprio, ambos militares no dia 25 de abril de 1974, embora com graus muito diferenciados de responsabilidade, tínhamos uma imenso orgulho na "herança do MFA". Não o disse, mas poderia tê-lo dito, que Portugal apenas foi admitido como membro das comunidades europeias depois da Revolução ter aberto o país à liberdade que a ditadura lhe negava. 

segunda-feira, setembro 19, 2011

O MES

Acabo de receber uma "convocatória" para um almoço em Lisboa, a 12 de novembro. Nessa data se celebrarão 30 anos passados sobre um jantar com que um partido decidiu encerrar a sua (já então muito escassa) atividade. Comemorar um jantar com um almoço é uma saudável redundância gastronómica.

Assim, e se tudo correr como espero, lá irei de Paris a Lisboa, para estar presente nesse repasto (escolham um sítio de decente amesendação, por favor!) onde muitos nos encontraremos, sem nostalgias nem proclamações, para lembrar essa "improvável aventura" a que, para sempre, ligámos a nossa juventude e a nossa esperança.

É claro que não estaremos todos por lá: alguns já se foram, outros saíram para outros destinos, uns poucos, ainda, deixaram-se tomar pela indiferença. Mas seremos mais do que os suficientes para nos revermos nessa ideia que continua a unir-nos, muito para além das conjunturas e dos percursos que cada um decidiu seguir.

O partido de que acima falei, o MES, o "Movimento da Esquerda Socialista" (ironizava, ao tempo, um amigo de outras ondas políticas: "mas há uma direita socialista?"), juntou muito boa gente nesses tempos pós-abril, pessoas vindas das lutas académicas, do sindicalismo menos alinhado, do catolicismo inquieto. Gente que não se revia noutras linhas então dominantes no mercado das opções políticas. Com o tempo, cada um de nós escolheu o seu caminho, embora a grande maioria quase sempre para o mesmo lado. Alguns revemo-nos de tempos a tempos, outros quase nunca se encontram. Mas, para sempre, somos todos, com imenso orgulho, "do MES".

Um dia, ao tempo do primeiro governo Guterres, o então primeiro-ministro, numa viagem de trabalho ao estrangeiro, em que o Augusto Mateus e eu o acompanhávamos, perguntou: "Neste governo, há uns seis ou sete antigos militantes do MES, não é?". Olhei para o Augusto e respondi, sem ter a certeza exata do que afirmava: "Um pouco mais, julgo que somos aí uns 14". António Guterres olhou para nós, verdadeiramente surpreendido. Nunca se havia dado conta que, em pouco mais de 40 ministros e secretários de Estado havia essa elevada percentagem de antigos membros do MES. Creio que, por um segundo, deve ter pensado que convivia com uma eventual "quinta coluna". O que estaria bem longe da verdade.

A inexorável lógica quantitativa do voto nunca foi o forte do MES. Como alguém diria, mais tarde, o nosso voto era um "voto de qualidade" ou a expressão de uma "imensa minoria". Em 1975, nas primeiras eleições, para a assembleia constituinte, no auge da sua expressão política, as urnas conferiram ao MES uns impressivos 1,02% de votos, o que conduziu um seu dirigente a uma declaração que ficou histórica: "Com esta votação, só temos condições para crescer...". Nesses tempos de façanhudos dirigentes políticos, cheios de pronunciamentos de rotunda gravidade, o MES teve sempre muito poucos votos mas imenso humor.

segunda-feira, maio 23, 2011

Notícias da lavoura

No auge dos tempos revolucionários de 1975, o Alentejo vivia sob as movimentações da Reforma Agrária, com a ocupação das propriedades rurais e o ataque aos respetivos detentores - os "grandes agrários", tidos como historicamente responsáveis por graves injustiças sociais e económicas, autorizadas e protegidas pela lei e pela repressão policial, durante a recém-abolida ditadura. "A terra a quem a trabalha" era o lema que dava corpo a um movimento tendente a forçar uma reversão de poder, onde o Partido Comunista Português teve grande influência, nele se destacando a criação das UCP's (Unidades Coletivas de Produção), estruturas emblemáticas no novo modelo produtivo em expansão nas grandes propriedades. A realidade agrária alentejana iria ter impactos muito fortes nos equilíbrios da governação do país, podendo considerar-se que, durante vários anos, marcou fortemente a evolução da política interna portuguesa, muito embora o saldo final de toda essa turbulência tenha ficado muito longe dos objetivos revolucionários originais.

Com a Reforma Agrária a marcar então, quase quotidianamente, a agenda política nacional, passava-se, na televisão portuguesa, um fenómeno bizarro, quase marginal mas que, visto à distância, não deixa de ter alguma curiosidade. Sobrevindo do tempo anterior ao 25 de abril, mantinha-se na grelha de emissão da RTP o programa "TV Rural", dirigido pelo engº Sousa Veloso, uma figura sorridente e cordial, que anos de presença regular no écran haviam transformado num visitante virtual da casa de todos os portugueses. E de que falavam os programas de Veloso? Da "outra" vida rural, da "lavoura", de experiências agrícolas e de práticas de produção tidas por exemplares. Enquanto no Alentejo arrancavam as campanhas mobilizadoras para a viabilização produtiva das UCP's ou das novas cooperativas, Sousa Veloso mostrava-nos, impávido aos ventos da Revolução, a glória da pêra-rocha do oeste, a safra desse ano dos melões de Almeirim, os resultados do combate ao míldio nas uvas do Dão ou as novas técnicas usadas no azeite da terra quente transmontana. Nem uma palavra sobre o Alentejo!

O blogue de um embaixador de Portugal, neste "verão quente" da política portuguesa, pode, por razões que a obviedade explica, ser comparado ao "TV Rural" de Sousa Veloso. Digo isto para que não estranhem que, nestes tempos mais próximos, eu me continue aqui a ocupar apenas da minha "lavoura".

sábado, abril 23, 2011

Otelo

Algumas pessoas espantam-se com afirmações recentes de Otelo Saraiva de Carvalho. 

Vale a pena notar que nada de isto é novo. Todos os anos, pela primavera de abril, alguma imprensa vai desencantar Otelo, que, honra lhe seja!, não se furta a aproveitar esse warholiano nicho de cíclica visibilidade para dizer umas coisas ao lado do "politicamente correto". Já faz parte da "saison". Os "abrilistas" entram em agonia, os seus detratores deliciam-se com o que acham serem os deslizes do ex-militar. Passa abril e Otelo volta a desaparecer. Até para o ano.

Não podemos pedir que Otelo não fale, porque todos nós devemos a Otelo a possibilidade de dizermos aquilo que nos vem à alma, até mesmo dizer que, "assim", o 25 de abril não terá valido a pena, que seria bom se a democracia pudesse contar com alguém com a inteligência de Salazar - como se houvesse figuras de neutral sapiência que, qual Fouché, serviriam todos os regimes.

Conheço mal Otelo Saraiva de Carvalho mas, diga-se desde já, tenho, face a ele, toda a gratidão do mundo. Por tudo o que fez por nós, há 37 anos. Algumas pessoas não perceberão isso. Problema delas, como dizem os brasileiros.

Um dia, em inícios de 1983, em Luanda, cruzei-me com Otelo num hotel. Não nos víamos desde o "verão quente", dos corredores do MFA, de idas ao Alto do Duque. Convidei-o a vir almoçar no dia seguinte a minha casa, com o João Sobral Costa, um amigo comum, um gigante de bondade que, como capitão da Força Aérea, havia feito parte do grupo ocupante do Rádio Clube Português, na noite de 25 de abril, e que trabalhava então em Angola. Sugeri que se nos juntasse o Arlindo Ferreira, outro capitão de abril, que estava em Luanda para outras "guerras" (e que já faleceu). Por aquelas "makas" (uso uma expressão angolana) em que a família militar (e a de abril ainda mais) é useira e vezeira, não se reuniu consenso para o Arlindo se nos juntar.

No dia do almoço, vim à porta de casa buscar Otelo, que ia acompanhado da mulher e de uma figura que não vem para o caso (mas que talvez pudesse explicar muita coisa). A minha residência era no "compound" da Embaixada, onde também funcionavam os serviços e o consulado-geral, na então rua Karl Marx, que antes fora chamada de Vasco da Gama e que, hoje em dia, é avenida de Portugal (evolução toponímica que daria para um mestrado...). 

A grande maioria dos funcionários da nossa missão diplomática em Luanda era constituída por antigos quadros da administração colonial, que tinham visto o percurso da sua vida perturbado pelo 25 de abril e pela independência do país que, em geral, sofriam bem mais do que celebravam. Não era, assim, legítimo pedir-lhes que entoassem loas à chegada do estratega da Pontinha. Um deles, boquiaberto, perguntou-me: "É o...?", sem ousar dizer o nome. Era, confirmei-lhe, e, nesse segundo, devo ter caído uns furos na sua escala de consideração, bem como na de outros a quem terá contado a inconveniente frequentação social do jovem diplomata que eu então era.

Esse almoço com Otelo foi uma ocasião que recordo como bastante simpática. Ele e o João Sobral Costa, que haviam sido vedetas de um filme onde eu só fiz umas "pontas" como figurante, conflituaram versões sobre o "documento do COPCON" (demoraria muito explicar aqui o que isso foi) e outras cenas desses tempos movimentados. Recordo-me de lhes ter lido extratos de um livro que Otelo não conhecia, escrito por um certo militar, onde se criticava o seu "silêncio" durante a célebre "assembleia selvagem" do MFA, em 11 de março de 1975. Rimo-nos todos, porque, como eu era ali o único que podia atestar, Otelo, de facto, não tinha então falado porque... não havia estado presente nessa tão badalada reunião!

Otelo chegara a Luanda vindo de Maputo. Iria partir dali para a Líbia. Alguma coisa importante, da sua vida e da sua história pessoal futura, iria ter a ver com essa viagem.

Otelo Saraiva de Carvalho é uma figura reconhecidamente controversa. Será. Porém, para mim, será sempre muito mais do que isso. Ponto.

Em tempo: Otelo Saraiva de Carvalho acaba de publicar "O dia inicial", um livro que conta, hora a hora, a sua leitura do 25 de abril. Li-o rapidamente mas, com franqueza, não me pareceu muito interessante. Além disso, as pequenas notas pessoais inseridas no final são de um impressionismo demasiado ligeiro. O seu velho "Alvorada em Abril" continua a ser muito mais curioso.  

sexta-feira, janeiro 14, 2011

"A última missão"

Nos idos de 1974, creio que no mês de Agosto, era eu adjunto da Junta de Salvação Nacional, fui um dia apresentado a um oficial pára-quedista que tinha como missão estruturar um grupo de milicianos que, no quadro da "intelligence" militar, deveriam refletir sobre a realidade nacional. Vinha convidar-me para integrar esse núcleo, que ficaria sediado no Palácio da Ajuda, onde hoje é o ministério da Cultura. Lembro-me de ter hesitado, por várias razões. Acabei por fazer parte do grupo em Outubro de 1974, já depois da desaparição da Junta.

Esse oficial era o major Moura Calheiros, um homem de fala suave e sorriso sereno e, ao que sei, também então estudante em "Económicas". O grupo viria a ser composto por gente muito diversa, curiosamente com orientações políticas bem distintas, do então PPD ao MES, do PS ao CDS, alguns sem partido conhecido. E, curiosamente, que eu saiba, ninguém do PCP. Profissionalmente, havia de tudo: futuros diplomatas, como o João Lima Pimentel e eu; economistas, como Agostinho Roseta, António Romão, Brandão de Brito, António Alves Martins, Carlos Figueira, Junqueira Lopes,  Jorge Calheiros, António Luís Neto; engenheiros, como Armando Sevinate Pinto ou Otto Uwe Leichsenring; licenciados em Direito, como Abel Gomes de Almeida, Rocha Pimentel, Sampaio Caramelo ou Alexandre Pinto Monteiro. Mas também um psicólogo, Vitor Moita, e um jornalista, Simões Ilharco, bem como pessoas oriundas de outras áreas profissionais. Durante alguns meses, nesse setor da 2ª Divisão do EMGFA, dirigido pelo depois general Gabriel Espírito Santo, produzimos vasta reflexão sobre o país mutante em que então vivíamos, "briefávamos" diariamente os nossos superiores e preparávamos textos de análise para a chefia da Revolução. Depois do 11 de Março, esse serviço foi extinto e seguimos vias militares diferentes, em especial no "verão quente" que se seguiu. Antes de sermos todos "mandados para casa", no segundo semestre desse ano, porque os milicianos já não eram necessários. 

Ao longo do ano de 1975, fui encontrando o major Calheiros pelos corredores do MFA, em dias exaltantes e noites exaltadas. Já funcionário diplomático, tive ecos das dificuldades da sua tarefa no âmbito dos pára-quedistas de Tancos, no quadro do 25 de Novembro.  Nunca mais ouvi falar dele.

Há semanas, li uma referência a um livro seu. Foi-me difícil adquiri-lo. São quase 700 páginas de uma memória dos tempos da guerra colonial, tendo como pretexto a sua integração numa missão de resgate dos restos mortais de companheiros, caídos em combate na Guiné. É um texto de tocante simplicidade, que revisita - com olhos de profissional militar, mas com uma visão humana muito serena e compreensiva - os tempos da luta e os seus ambientes, comparando figuras e situações de ontem e de hoje, da sociedade da África descolonizada e do que sobreviveu da memória de Portugal nesses palcos da nossa última aventura pelo mundo.

sexta-feira, novembro 26, 2010

25 de novembro

Para alguns, será talvez um pouco estranho estar a escrever sobre uma data, dois dias depois da passagem da mesma. Mas, a pedido "de várias famílias" (como se dizia, noutro tempo, noutra imprensa), aqui fica a minha memória breve do 25 de novembro de 1975, já 35 anos depois dessa data.

O chamado "25 de novembro" configura uma espécie de resultante  final de toda a grande confrontação político-militar que se viveu ao longo do ano de 1975, em especial entre Março e Novembro, mas que tinha tido já afloramentos conflituais na questão da lei da "unicidade sindical" e nas discussões em torno do plano económico coordenado por Melo Antunes.

No "11 de março" desse ano, um setor ultra-conservador português, liderado pelo general António de Spínola, havia caído na "ratoeira" de tentar um golpe de Estado, sem preparação, o qual, de certo modo, havia sido antecipado pela chamada "esquerda militar", que então dominava as Forças Armadas. Recordo-me bem da frase proferida pelo almirante Rosa Coutinho, durante a assembleia do Movimento das Forças Armadas, nessa célebre noite: "Sabíamos que estavam a preparar qualquer coisa, assustaram-se e nós ficámos à espera que saltassem. E eles saltaram". Na sequência desse frustrado movimento, a Revolução portuguesa acelerou-se, foram decretadas nacionalizações e foi criado o Conselho da Revolução.

Já no "25 de novembro", seria o desespero de certos setores militares de extrema-esquerda, aliados à ambição irrealista de algumas estruturas civis, que levou a que viessem a cometer um erro simétrico: tentar um golpe militar, sem para tal terem criado um mínimo de condições para o seu sucesso. Neste caso, acabou mesmo por ser a esquerda militar moderada, pela voz de Melo Antunes, que impediu que alguns setores conservadores mais radicais, e outros conjunturalmente radicalizados, viessem a "explorar o sucesso" e, em especial, a promover a ilegalização do Partido Comunista - objetivo que chegou a ser encarado - ao afirmar que "a participação do PCP na construção do socialismo é indispensável".

Entre o "11 de março" e o "25 de novembro", muita água correu sob as pontes políticas da vida portuguesa. Após a forte viragem à esquerda provocada pela derrota do golpe conservador de Março, tiveram lugar eleições para a Assembleia Constituinte, o resultado das quais mostrou, à evidência, que a opinião votante do país estava, esmagadoramente, num registo bem mais moderado do que aquele que prevalecia na respetiva gestão política. A legitimidade revolucionária era, pela primeira vez, posta em causa pela legitimidade eleitoral e esse confronto não deixaria de ter consequências. Fruto da agudização das tensões, o Partido Socialista e o então Partido Popular Democrático (hoje PSD) viriam a abandonar, sucessivamente, o IV governo provisório.

O primeiro-ministro, general Vasco Gonçalves, cujo isolamento dentro das Forças Armadas se tornara crescente - e que era considerado como muito dependente do Partido Comunista Português (PCP) - decidiu então formar um novo governo (o V governo provisório) com uma representação política muito limitada, formado pelo PCP e por personalidades, civis e militares, os quais, na prática, eram seus "compagnons de route". Essa fórmula fracassou e, por essa altura, um conjunto moderado de militares - "o grupo dos nove" - afirmou-se como uma crescente alternativa à chamada "esquerda militar" (ligada ao PCP).

Vasco Gonçalves foi afastado e um conjunto diverso de circunstâncias (algumas com caráter bem caricato) acabou por colocar à frente de um novo governo pluripartidário o almirante Pinheiro de Azevedo. Os bloqueios político-sociais prolongaram-se por alguns meses, até que a já referida insensata aventura de alguns militares de extrema-esquerda, com a cumplicidade mais ou menos explícita de setores político-partidários, acabou por provocar uma confrontação, para a qual os setores moderados e conservadores das Forças Armada se haviam, entretanto, preparado. O contra-golpe vitorioso deu-lhes o poder militar e a solução pluripartidária de governo pôde prosseguir até às eleições legislativas de abril do ano seguinte.

O "25 de novembro" terá sido a derrota do "25 de abril", como alguns teimam em dizer? O "25 de novembro" abriu caminho a um desequilíbrio nas Forças Armadas que acabou por vitimar, política e militarmente, os setores moderados que foram responsáveis pelo seu êxito? Ou o "25 de Novembro" representou, no fundo, o "25 de Abril" possível na Europa de então?

Neste retrato, alguns podem dizer que falta a questão colonial e os jogos táticos que, no parecer de muitos, estiveram por detrás de certos "timings" desse fantástico "verão quente". Essa seria uma longa história, na qual seria talvez interessante fazer intervir também os interesses de Moscovo, de Washington e de certas capitais europeias. Mas, mais importante do que revisitar todas as teorias da conspiração - que existiu, vinda de vários setores -, talvez devamos convir em que a história do 25 de novembro acabou bastante bem. Essa é hoje, pelo menos, a minha opinião.

quinta-feira, julho 29, 2010

Outra "República"

Há 35 anos exatos, o António Pinto Rodrigues chegou uma noite a minha casa, em Lisboa, com uma ideia "genial". O "caso República" estava no auge, a polémica em torno da saída forçada de Raul Rego e dos restantes membros socialistas do jornal, tomado de assalto por uma linha radical, havia-se transformado num acontecimento internacional. Que tal publicar um livro "rápido", com um dossiê sobre o assunto? O mercado estava maduro...

Para quem o não conheça, convém começar por dizer que o António era e é um empreendedor nato, com ideias sempre a transbordar, às vezes só travadas por essa trágica parede de desilusão que é a realidade das coisas.

"Quem edita? Estás a brincar... Toda a gente quereria editar um livro desses, mas nessa é que não caímos: editamos nós! Vamos ganhar uma pipa de massa! Arranjamos uma tipografia, assinamos umas letras e damos ao Lopes do Souto para distribuir. É dinheiro em caixa. Vai por mim!". E eu fui.

A conversa com Lopes do Souto, uma figura consagrada da distribuição, que o António já conhecia, não me deixou sossegado: "Olhem que o mercado está saturado de livros políticos. Estamos no pico do Verão. Isto desatualiza-se rapidamente".

Qual quê! O António não se deixava ir nestas cantigas desanimadoras: "Estes gajos são uns medricas. Isto está para lavar e durar! Vai ser um êxito. E, para evitar a chatice das reedições, fazemos já 12 mil exemplares". A edição deste tipo de livros raramente excedia 1500 exemplares, mas o entusiasmo do António, que tinha trabalhado no ramo, calou as minhas dúvidas - num tempo em que eu estava mais ocupado a fazer a estranha transição entre ser militar do PREC e passar a diplomata dos Negócios Estrangeiros, em cujo concurso de entrada fora entretanto apurado.

Em duas noites, escrevi o texto que estruturava o livro. Hoje, sorrio ao observar a linguagem e o estilo dessa longa introdução, que é menos uma reflexão ponderada sobre o "caso" em si e, muito mais, um belo retrato de mim mesmo, nesses tempos. O livro ficou artesanal, com tipo e papel bem pobres, estrutura estilo "recorta-e-cola", com alguns depoimentos recolhidos à pressa, outros pirateados da comunicação social. Salvava-se a capa, com alguma graça. As gralhas foram mais do que muitas,  mas, apesar de tudo, muito menos que os milhares de exemplares que ficaram por vender e que, a certa altura, já nem sabíamos onde guardar.

Claro que, de imediato, veio a fatura. As letras venciam-se e nós tínhamos de as reformar, dos nossos próprios pobres salários da época. Era "fiador" o então sogro do António, José Palla e Carmo. Foi bastante duro, durante vários meses.

Depois, o António e eu fomos viver por esse mundo fora, encontrando-nos a espaços, amigos para sempre, tendo como "obra" comum "O Caso República". E a memória ímpar desse mítico verão de 1975.

Ah! não vale a pena procurarem um exemplar de "O Caso República". Está esgotadíssimo!

quarta-feira, junho 02, 2010

Rosa Coutinho (1926-2010)

Há figuras a que a História associa sempre a polémica. O almirante Rosa Coutinho, que agora desapareceu, era uma dessas figuras.

Rosa Coutinho era uma personalidade desconhecida do país quando, na noite de 25 de Abril de 1974, apareceu na televisão como um dos membros da Junta de Salvação Nacional. Recordo-me da curiosidade com que, nessa noite, nos estúdios da RTP, os oficiais milicianos que, como eu, se encontravam atrás das câmaras, olhavam essa figura sorridente, calva e calma, que a Marinha tinha escolhido como um dos seus dois representantes.

Vim a conhecê-lo pessoalmente mais tarde, nos corredores da Junta, onde eu exercia funções de assessor. Era uma pessoa muito cordial e agradável no trato. Com a crise que sobreveio no governo-geral de Angola, logo em Agosto de 1974, Rosa Coutinho seguiu para Luanda, para substituir o general Silvino Silvério Marques. Rapidamente a sua ação passou a ser contestada por setores portugueses locais, que colaram as suas opções de governo à estratégia do MPLA, considerando-o, em muitas dessas denúncias, como uma figura próxima dos comunistas portugueses.

No ano seguinte, em 11 de Março, depois da tentativa de golpe militar de António de Spínola, recordo bem uma cena tensa que se passou no Palácio de Belém, ao princípio da noite, durante a qual Rosa Coutinho apoiou a realização da famosa "assembleia selvagem" do MFA. Na longa madrugada que se seguiria, devo reconhecer que o almirante foi das vozes mais serenas, tendo então adiantado uma explicação para a aventura spinolista, que cito de memória: "Sabíamos que estavam a preparar qualquer coisa, assustaram-se e nós ficámos à espera que saltassem. E eles saltaram". Muito do que foi o 11 de Março pode aqui encontrar uma explicação. Mais tarde, em 25 de Novembro, dizem-me que terá tido um papel apaziguador e atenuador de tensões, se bem que não fizesse segredo do lado para o qual o seu coração pendia.

Desde sempre que a internet e as caixas informáticas de comentários dos jornais estão cheias de comentários insultuosos sobre Rosa Coutinho, talvez a personalidade mais vilipendiada de todas quantos intervieram no processo de descolonização. Com efeito, ele terá sido a principal "bête noire" de quantos sairam de África, num registo de tragédia, durante esse período. Só a História poderá julgar, com serenidade, o papel do almirante Rosa Coutinho em todo o processo do 25 de Abril.

sábado, maio 01, 2010

"1º de Maio vermelho"

Hoje, vistas as coisas à distância, tudo nos parece ridículo, mas, há 36 anos, a ameaça feita pelo MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado) de fazer um "1º de maio vermelho", com alguma possível violência à mistura, assustou o Movimento das Forças Armadas (MFA). Alvo crescente da repressão policial, o MRPP fora já responsável, nos meses antes de Abril, por algumas ações de rua, dedicadas à luta contra a guerra colonial, com confrontos relativamente fortes.

O anúncio dessa movimentação no Dia do Trabalhador havia sido feito ainda antes do 25 de Abril, mas todos estávamos conscientes que os "eme-erres" haviam interpretado o golpe militar como um mero rearranjo de "forças da burguesia", sem qualquer impacto nos "interesses profundos das classes trabalhadoras". E o facto de insistirem em organizar uma forte movimentação no dia 1 de Maio, não obstante ter entretanto ocorrido o movimento democrático do 25 de Abril, não sossegava alguns militares.

Não cabe aqui, por ora, fazer o historial do MRPP, um grupo criado em 1970 e com uma génese diferente da dos restantes movimentos que, em Portugal, se reclamavam do maoísmo. Muito ativo no meio académico, com particular expressão em Lisboa, dispunha de uma simpatia clara em sectores da imprensa, bem como em algumas estruturas sindicais de serviços. Conhecido por um grafismo colorido, que se espalhava por folhetos, jornais clandestinos e por muitas paredes, o MRPP era, visivelmente, a principal força política que não saudara a Revolução.

A circunstância de ter o Partido Comunista Português como um alvo prioritário da sua ação, antes e após o 25 de abril, levaria algumas forças bem mais conservadoras a ver o MRPP com alguma simpatia tática, que ficou bem patente nos primeiros anos da Revolução de Abril. A posterior evolução política de alguns antigos membros do MRPP viria a provar que essa aliança tinha também algo de potencialmente estratégico. Para simplificar, e citando a análise da minha amiga Diana Andringa, ela própria ex-MRPP, há a perceção de que a grande maioria de quantos eram seus militantes antes do 25 de Abril acabou "à esquerda" na vida política portuguesa; os que aderiram após o 25 de Abril, muito marcados que foram pelo combate ao PCP, tenderam maioritariamente a fazer uma opção mais conservadora. Esta conclusão pode não ser uma verdade absoluta, mas é capaz de ser a base para uma boa leitura.

Mas voltemos ao 1º de Maio de 1974. O ambiente de confiança que o 25 de abril criara no país poderia ser afetado, na perspetiva de alguns dos militares por ele responsáveis, se acaso o MRPP viesse a promover algumas ações violentas. A confiança pública na Revolução e a própria estabilidade que o país pretendia projetar externamente poderiam ficar em causa se viessem a ocorrer incidentes graves. Que fazer, então? Talvez  seja difícil de acreditar nos dias de hoje - depois do que efetivamente se passou em Portugal, no dia 1º de maio de 1974 - mas uma ideia inicial, que chegou a ser pensada em meios militares, foi tentar encontrar uma maneira de evitar que os portugueses saíssem de casa nesse dia... 

Com o objetivo de tentar discutir a utilização da RTP com esse objetivo, o MFA convocou uma reunião para a Escola Prática de Administração Militar (EPAM), no dia 27 de Abril. Nela reuniu um impressionante grupo de intelectuais, num "brainstorming" chefiado pelo capitão Teófilo Bento, com António Reis e eu próprio a acolitá-lo. Pela sala espalhavam-se figuras como Luis de Sttau Monteiro, Mário Castrim, Luis Francisco Rebelo, Álvaro Guerra, Manuel Jorge Veloso, Manuel Ferreira, Adelino Gomes, Orlando da Costa e creio que duas ou três dezenas mais de figuras cimeiras da nossa vida cultural e jornalística. O debate foi longo, as propostas choveram sobre o modo como a televisão podia vir a ser utilizada para "trabalhar" os primeiros tempos da Revolução. Porém, a ideia de a tornar um instrumento para evitar a saída às ruas no 1º de maio foi, ao que me lembro, rapidamente abandonada. Era, de facto, uma mera questão de bom senso...

Para a história, convém apenas notar: o MRPP lá comemorou, a partir do Rossio, o seu "1º de maio vermelho". Com muitos slogans e sem violência. E o 1º de maio de 1974 acabou, para todo o Portugal, por ser uma coisa bem diferente, como todos recordam.

domingo, abril 25, 2010

Ainda Marselha e os "retornados"

A sina dos "pieds noirs", esses franceses forçados a regressar à metrópole europeia, vindos da África magrebina independente nos anos 60 do século passado, foi algo que sempre me interessou, por ser um fenómeno político e social revelador dos limites da capacidade de integração em França. Durante várias conversas que na passada semana tive em Marselha, a "porta da França" que se tornou o destino dessa comunidade desenraizada, procurei perceber se o fenómeno subsistia e em que moldes. Verifiquei, com alguma surpresa, que permanecem ainda fortes traços essenciais desses núcleos, agora coexistindo, embora sempre bem separados, com as significativas comunidades magrebinas que dão a certas ruas e praças de Marselha ares de bairros transplantados de Argel.

Dei comigo a pensar que, no caso da descolonização portuguesa, esse mesmo fenómeno teve um destino bem diverso. Os "retornados" da África colonial portuguesa que se acolheram na Europa, quase sempre em condições económicas pessoais muitos precárias, expostos a um ambiente político que estava longe de lhes ser simpático, num tempo económico português de crise e falta de investimento, com escassíssimos apoios oficiais (lembram-se do IARN e dos hóteis ocupados, a compensarem a crise turística?), souberam "virar-se" e integrar-se de forma magnífica na sociedade portuguesa. As redes familiares e, essencialmente, a sua "garra" e vontade de reconstruir a sua vida fizeram milagres. Hoje, já ninguém se lembra nem fala dos "retornados", praticamente não se refere que alguém veio ou não de África nos idos dos anos 70.

E, no entanto, o caso português era potencialmente muito mais grave: se compararmos as centenas de milhares de "retornados" que chegaram a Portugal, face a uma população com a nossa dimensão, com a muito inferior percentagem de "pied-noirs" no seio de uma sociedade forte e desenvolvida como a francesa, acho que encontramos fortes razões para que nos devamos congratular. 

Neste tempo em que parece endémico o comprazimento em acentuar das desgraças pátrias, talvez o processo de absorção dos "retornados" nos ajude a ter algum orgulho no país que temos.   

Abril (8) - Razões de abril

Abril (7) - Razões de abril

Confesso os figos

Ontem, uma prima ofereceu-me duas sacas de figos secos. Não lhes digo quantos já comi. Há poucas coisas no mundo gustativo de que eu goste m...