O inferno das máscaras retira a naturalidade às relações humanas e, em especial, à alegria dos encontros fortuitos. (Claro que sei que tem que ser assim! - e isto é um aviso para quantos tresleem tudo o que se escreve!). Damos de frente (ia dizer “de caras”, mas, afinal, é só “meia” cara) com pessoas que julgamos conhecer e, a menos que um de nós arrisque identificar-se (mas é um tanto ridículo se, afinal, a pessoa acaba por não ser quem julgamos), ficamos a olhar-nos de modo estranho, até que desistimos desse consumar esse potencial “descobrimento” aventuroso.
Há poucas horas, numa cerimónia oficial a que funções, também oficiais (é verdade, ainda as tenho, mas não são pagas, para que conste), me levaram, fiquei ao lado de uma senhora idosa (a senhora em causa, como já irão notar, tem mais 23 anos do que eu, o que me permite esgueirar-me com alguma “juventude” relativa por esta historieta).
Fizemos um cumprimento leve com a cabeça e coloquei a minha própria a pensar: quem poderá ser esta senhora? Ela estava ali em funções similares às minhas. Aquele cabelo! A cerimónia ainda não tinha começado.
Só um minuto depois, é que se me fez luz.
Aquela senhora tinha sido minha professora de Geografia, na faculdade, em 1968/69. Era a professora catedrática Raquel Soeiro de Brito, discípula de Orlando Ribeiro e, sem contestação, uma das figuras mais marcantes daquela especialidade académica a nível nacional.
Há cinco anos, num tempo em que ainda não andávamos neste baile pandémico de máscaras e num dia em que ambos tínhamos tomado posse das funções que ainda hoje ocupamos, a professora Raquel Soeiro de Brito tinha tido a gentileza de atravessar uma sala do Palácio de Belém para vir ter com este seu antigo aluno, a quem saudou com generosa simpatia. Fiquei encantado com o seu gesto!
Falámos então desses tempos antigos no Palácio Burnay, na Junqueira, numa escola onde preponderava Adriano Moreira, tendo ela lembrado que, no seio do corpo docente, eu tinha uma imagem de “revolucionário” (era dirigente estudantil e tive por ali alguns conflitos, mas, na realidade, eu era um “paz de alma”, ao lado de outros).
A professora Raquel Soeiro de Brito é hoje uma senhora de 96 anos, com um aberto e agradável sorriso (lembro-me bem dele, do tempo sem máscaras e a fotografia prova-o). Na ocasião, devo dizer que não consegui ter coragem de dizer-lhe que, como professora, há mais de meio século, ela projetava, com aquele seu ar quase nórdico, uma imagem um pouco intimidante e que dela recordava umas graças cortantes, das quais alguns colegas eram frequente alvo.
Há pouco, quando pensei relembrar-lhe quem eu era, para o que me preparava para tirar a minha máscara por um instante, o “dono da casa” entrou no espaço onde estávamos, a cerimónia teve início e eu perdi assim o ensejo de saudar, como devia, a minha antiga professora de Geografia.
É que gostaria de lhe ter dito que, se no exame que fiz no fim das aulas teóricas não passei então de um mísero e justo 13, eu viria, afinal, a ter o privilégio de uma imensidão de “aulas práticas”, na muita geografia de algum mundo por onde a vida me fez andar.