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segunda-feira, setembro 24, 2012

Diplomacia social

Ontem, no comemoração do dia nacional de uma grande potência, tive ocasião de comprovar, uma vez mais, que, na ordem internacional, sendo todos os países juridicamente iguais, alguns há que são bem mais "iguais" do que outros.

As festas nacionais dos países mais importantes estão sempre, um pouco por todo o mundo, recheadas de atuais ou antigas estrelas políticas (do governo e oposição), empresariais e até culturais, desejosas de aproveitar o melhor possível esses momentos, testemunhando com a sua presença o interesse por Estados que sabem relevantes à escala global, com os quais, por exemplo, os melhores negócios se fazem. Além disso, tais ocasiões acabam também por ser "social gatherings", para contactos e, vá lá!, também para alguns serem vistos, fotografados para revistas e relevados perante os "olheiros" avaliadores da hierarquia social. Esses são também momento áureos para o infernal bando dos "pique assiettes", que mendigam convites e sempre avançam, socialmente famélicos, sobre as mesas das vitualhas e bebidas.

Numa cidade como Paris, onde há quase centena e meia de embaixadas ou representações internacionais (no meu caso, somadas às muitas outras que atuam junto da UNESCO), e porque têm muito mais que fazer, os próprios diplomatas acabam por ser obrigados a fazer uma criteriosa seleção dos eventos a que esforçadamente comparecem. Aqui entre nós que ninguém nos lê, para os diplomatas com maior rodagem, os cocktails representam, regra geral, longos minutos de padecimento, de conversas sem particular objeto nem grande sentido, para além dos temíveis efeitos dietéticos ou hepáticos, para quem se não souber controlar. Aqui ou ali, é verdade, encontra-se nessas ocasiões alguém de interesse, a quem se aproveita para passar alguma mensagem ou perguntar alguma informação, sendo que isso tem de ser feito em rápidos segundos, porque logo nos cai em cima um outro conviva, que introduzimos ao primeiro através do já clássico "não sei se já conhece...?" (eu deixo quase sempre os nomes em suspenso, esperando que ambos se apresentem, não vá ter uma "branca" com a identificação de um deles). A melhor "técnica" é, instantes depois, deixar os dois recém-apresentados à fala e, pretextando uma qualquer razão, zarpar logo para outra, tendo a porta de saída como supremo objetivo a atingir. 

Desde há muitos anos que, cada vez mais, sou uma avis rara neste tipo de ocasiões, que frequento com grande parcimónia. Dou atenção prioritária a países com especiais relações com Portugal e, às vezes, às amizades mantidas com alguns chefes de missão. Mas, devo dizer, com muito maior probabilidade me desloco a uma festa nacional de um pequeno país africano ou asiático, de um minúsculo Estado caribenho ou centro-americano, ou mesmo de uma remota ilha do Pacífico, do que sou visto na imensa mole humana que se acotovela nas escadarias de acesso às festas dos grandes países, que por aqui sempre convocam o "tout Paris".

Esclareço que, para além de assumir esta minha atitude com o prazer de ajudar a que colegas de Estado menos populares vejam a sua ocasião social menos "desertificada", não me é indiferente o facto da minha presença acabar por ser bastante apreciada e notada, não raramente atenuando a tristeza de verem a sua festa quase vazia. Por vezes, tive já tal atitude retribuída com uma atenção particular quando interesses portugueses estiveram em jogo, quando, mais tarde, tive demandas a fazer a esses colegas no plano das nossas relações bilaterais ou a solicitação de votos em organizações internacionais.

A diplomacia social é um tema muito mais interessante do que frequentemente se julga.

sexta-feira, setembro 21, 2012

Portugal no Brasil

Começou o ano de Portugal no Brasil. 

Nos tempos que correm, não há, compreensivelmente, muitos meios para executar um programa à altura daquilo que se desejaria. Mas todas as oportunidades são poucas para ajudar a fixar na sociedade brasileira a imagem do país que hoje realmente somos e que os brasileiros, na últimas duas décadas, aprenderam a conhecer muito melhor - o Portugal para onde muitos vieram trabalhar e aquele que, numa conjuntura de algum sucesso, mandou para o Brasil capitais e gente qualificada. Nem tudo correu sempre bem, em ambas as aventuras. Mas muito de positivo ficou desse novo ciclo de intenso intercâmbio e o presente aí está a prová-lo.

Às vezes, nos meus tempos de Brasil, ao notar as caricaturas que de Portugal ainda por lá subsistiam, costumava ironizar e dizer que, ao chegarem ao aeroporto de Lisboa, alguns brasileiros ficavam surpreendidos por não serem recebidos por uma velhinha de ar triste, nazareticamente vestida de preto, talvez com algum bigode, a cantar o fado e envolvida num cheiro a sardinhas assadas. Somos o que somos, mas estamos muito longe de tudo isso. E os brasileiros, hoje, sabem-no.

Viva o ano de Portugal no Brasil!

quinta-feira, agosto 16, 2012

Ciganos

A questão do tratamento dado aos ciganos em França está na ordem do dia. Hoje como ontem. O assunto já foi aqui abordado neste texto, escrito precisamente há dois anos, pelo que não tenho mais a dizer. A não ser contar agora uma pequena história.

Lembro-me que era um fim de semana, aí por 1997. Eu estava parado, a guiar o meu carro, no semáforo da rua Barata Salgueiro com a avenida da Liberdade. Aproximou-se uma mulher cigana, de saias longas, com uma criança desgrenhada ao colo, de mão estendida. Abri o vidro para lhe dar alguma coisa e ouvi da sua boca uma expressão que, no início não entendi, mas que ela repetiu: "Bósnia-Herzegovina".

Eu era responsável pelos Assuntos europeus, no governo da altura. Mas - devo confessar, com toda a honestidade e sem esconder esta fragilidade - estava muito longe de supor que, naquela época, as migrações ciganas do centro da Europa tivessem já chegado às ruas de Lisboa. O encontro com aquela pobre mulher, saída de tão longe para tentar atenuar a sua pobreza em Portugal, foi, para mim, uma imensa surpresa, que nunca mais me saiu da cabeça. Desde logo, aprendi que estar no governo nem sempre é sinónimo de estar atento a todas as coisas.  

Justiça e África

Não deixa de ser curioso, e ousado, o que Patrick Besson escreve hoje no "Le Point" a propósito do julgamento pelo Tribunal Penal Internacional de dirigentes africanos acusados de crimes contra a humanidade: "Essa terá sido a grande novidade jurídica dos séculos XX e XXI: fazer julgar africanos nos Países Baixos pelos filhos procuradores e pelas filhas juízes de todos os povos que os colonizaram (ingleses, franceses, alemães, holandeses, italianos...)"

sexta-feira, junho 29, 2012

Património

A igreja da Natividade, em Belém, foi inscrita, há minutos, na lista do Património da UNESCO, através de um procedimento de urgência, a solicitação do mais novo membro da organização, a Palestina. A sala da Duma de São Petersburgo desfez-se em aplausos - embora, com certeza, menos retumbantes do que aqueles que Lenine por aqui, neste mesmo local, arrancou, há umas boas décadas atrás.

No minuto seguinte, foi a vez do Monte Carmelo ser inscrito na lista, sob proposta de Israel. A sala não foi tão entusiasta, mas não deixou de aclamar o novo bem agora proclamado no seu valor universal. Salomão, com a sua justiça, não faria melhor.

As organizações internacionais são isto mesmo: espaços onde, mais do que o equilíbrio, se procura e pratica algum equilibrismo. Mas seria errado pensar que este tipo de liturgias e coreografias é, em si mesmo, negativo. Estes compromissos, às vezes cínicos, outras vezes oportunistas, são a chave da sobrevivência do mundo multilateral, refletindo as suas limitações mas, ao mesmo tempo, consagrando os pequenos passos que fazem avançar esse mundo, que muito tem feito pela paz e pelo entendimento entre os povos.

quinta-feira, junho 28, 2012

Álvaro Vasconcelos

Até há poucos dias, Álvaro de Vasconcelos foi, em Paris, diretor do Institute for Security Studies, uma estrutura promotora de estudos e reflexões que, a meu ver, a União Europeia deveria e poderia ter utilizado bem mais e melhor. Alguns dos trabalhos produzidos por este instituto têm uma qualidade e uma profundidade que mereceriam um melhor tratamento e, em especial, que fossem tidos em conta no desenho de algumas das políticas da União na sua dimensão externa. O trabalho desenvolvido pelo Álvaro de Vasconcelos e pela sua equipa, de um modo discreto mas bem eficaz, deve merecer o apreço de todos quantos se preocupam com as relações externas europeias, nas quais assenta muito do seu futuro como potência à escala global. E, registe-se, o seu papel à frente do ISS prestigiou muito Portugal.

Conheço o Álvaro Vasconcelos há muitos anos, desde que ele criou, em Portugal, o Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI), um importante "think tank" de reflexão estratégica. Com ele, e com as pessoas de grande qualidade que soube mobilizar em torno daquele instituto português, participei em muitos debates, em Portugal e no estrangeiro, em especial centrados sobre o futuro desejável para as instituições europeias e as suas dimensões externas. Ironicamente, lembro-me de ter assumido, nesses anos 90, posições bem mais "recuadas" do que as que o Álvaro, e muitos dos seus amigos, então defendíam, em especial quanto à questão do "federalismo", tema em torno do qual, curiosamente, ambos evoluimos, embora em sentidos diferentes.

Com o Álvaro, preparei o único livro editado em inglês que faz um completa cobertura sobre a postura europeia de Portugal - "Portugal, a European story" -, onde se conta muita dessa grande aventura da nossa contemporaneidade. E juntos estivemos, anos depois, num seminário sobre Segurança, no sul do Egito, num tempo em que se não sonhava ainda com as "primaveras árabes", tema de um livro que o Álvaro publicou recentemente e que muito recomendo - "Listening to unfamiliar voices: the Arab democratic wave".

terça-feira, junho 26, 2012

De Leninegrado a São Petersburgo

Há mais de 30 anos, ao tempo em que vivia em Oslo, tive a curiosidade de visitar a União Soviética. Achei que os preços das viagens eram surpreendentemente convidativos. Na véspera da minha partida, falei do assunto a um colega norueguês e logo fiquei ciente daquilo em que me metera: a agência de viagens que eu escolhera estava ligada ao Partido Comunista norueguês e, se calhar, fazia "dumping" ideológico. De facto, no grupo em que, durante duas semanas, estive incluído, muitos foram os que, logo que chegados a Leninegrado, colocaram na lapela uma imagem de Lénine...

A visita acabou por ser muito interessante, feita também por Moscovo e por Ialta, comigo sempre a tentar, para desespero da guia norueguesa, fugir ao espartilho dos programas e reagir à irracionalidade do condicionamento de movimentos. Guardo para sempre algumas recordações impressivas desse país, com uma vida que, à época, pressenti misteriosa, cinzenta e triste.

Hoje, por razões profissionais, estou em São Petersburgo - mas já não em Leninegrado. Para além do nome, muita coisa mudou por aqui, como se sabe. Mas, confesso, tentarei não deixar de revisitar, em homenagem àquilo que é a memória sentimental de uma certa geração, a estação da Finlândia, o Smolny, o Aurora e, claro, o palácio de Inverno, símbolos fortes de uma Revolução de outubro, que em dez dias abalou o mundo, e que, por sinal, foi em novembro.

segunda-feira, junho 25, 2012

Portugal no mundo

Um dos aspetos curiosos da vida como diplomata é observar o modo como Portugal é visto pelos outros, que imagem de nós está criada pelo mundo, o que ficou da nossa História em países cujo passado cruzámos. 

Há dias, ao efetuar uma diligência junto de um colega estrangeiro, e para além da eventual racionalidade daquilo que era a nossa pretensão, fui confrontado com a seguinte e espontânea reação: "Vocês podem sempre contar conosco! Eu nasci ao lado de uma fortaleza construída pelos portugueses. Desde criança que me habituei a admirar a vossa aventura pelo mundo".

Esta é uma riqueza não se mede em cifras do PIB e que, seguramente, vai durar muito para além da nossa dívida.

quinta-feira, junho 14, 2012

Armamento

Estive hoje à tarde numa grande exposição internacional de material de defesa, perto de Paris. Portugal tem lá uma empresa, fabricante de veículos de elevada qualidade, já com contratos em curso com alguns países. Esta é uma área da nossa indústria que, ao que apurei, muito deve já à aprendizagem feita pela tropas portuguesas que têm estado envolvidas em operações de paz de natureza internacional, com grande honra para as nossas Forças armadas e com grande prestígio paralelo para o nosso país - muito em especial para a nossa política externa, convirá sublinhar.

Ao atravessar os imensos espaços onde se publicitam as vantagens de uma incrível gama de produtos para uso militar e em áreas de segurança, desde carros blindados a armas ligeiras e pesadas, numa impressionante parafernália de meios sofisticados de combate, dei comigo, subitamente, algo chocado ao olhar um video, repetido num écran, no qual se via o efeito fortemente destruidor de um míssil sobre um edifício. 

Estou longe de ser um pacifista radical, sei respeitar e defender as "guerras justas" e a necessidade do uso da força para impor os valores que consideramos fundamentais a uma ordem internacional mais justa, mas devo confessar que, por um instante, senti-me menos bem ao ver aquele filme laudatório de uma arma terrivelmente letal, quiçá idêntica às que, nos dias de hoje, liquidam a fome de liberdade dos cidadãos da Síria.

O mundo é o que é, mas isso não nos impede a que, por vezes, sintamos mais fundo as suas (e as nossas) contradições.  

sábado, junho 09, 2012

DN

O "provedor do leitor" do "Diário de Notícias", o jornalista Óscar Mascarenhas, respondeu no seu jornal ao meu anterior post, no qual eu havia criticado o modo como havia sido reportada a atribuição do estatuto de persona non grata à embaixadora síria acreditada em Portugal. Fê-lo, devo notar, com grande elevação e sentido objetivo, que só posso saudar. Porque a questão merecia uma explicação complementar da minha parte, enviei-lhe a carta seguinte:

Meu Caro Óscar Mascarenhas

Registo, com agrado, o “fair play” com que o DN, por seu intermédio, aceitou a minha irritada nota sobre a questão da embaixadora síria. Entendo bem a dificuldade jornalística de “traduzir”, para um público não especializado, temáticas mais complexas. Mas a arte do jornalismo consiste, precisamente, em conseguir não perder o rigor, nesse esforço de simplificação.

Vamos à notícia:

  1.  “Portugal decidiu cortar as poucas relações diplomáticas que tinha com a Síria”. A relação diplomática entre dois países é como a gravidez de uma mulher: ou existe ou não existe, não é “muita” ou “pouca”. Pode haver mais ou menos trocas comerciais, mais ou menos relações culturais, mais ou menos visitas bilaterais, de natureza técnica ou política. Mas o vínculo diplomático entre dois países é sempre um mero reconhecimento mútuo de duas soberanias. Dois Estados podem estabelecer entre si relações diplomáticas e nem sequer terem embaixadores acreditados nas respetivas capitais. Não era esse o caso de Portugal e da Síria, que, desde há muitos anos, trocavam representantes diplomáticos mútuos. Quanto ao facto dos embaixadores serem ou não residentes nas capitais onde estão acreditados, deve notar-se que, não tendo nenhum país meios ou interesses para assegurar a abertura de missões diplomáticas por todo o mundo, a esmagadora maioria opta por acreditar embaixadores que são residentes noutras capitais (às vezes, mesmo, diplomatas que permanecem na capital do próprio país que representam). Em todo o mundo diplomático, há muitos mais embaixadores não-residentes do que residentes. Só em Paris, residem cerca de 50 embaixadores que, estando acreditados em França, representam simultaneamente os seus Estados em Portugal. E noto que há Estados com representação física em Lisboa cujas relações económicas, culturais ou outras com Portugal são bem menos relevantes do que as existentes com alguns dessoutros países.
  2. Portugal “declarou 'persona non grata' a embaixadora síria junto da Unesco, a qual representava os interesses sírios também em Portugal”. Não era a delegada permanente da Síria junto da UNESCO que estava acreditada em Portugal. Quem tinha apresentado cartas credenciais no nosso país era a embaixadora da Síria em França, que, por acaso (como é hoje o meu caso), acumulava funções como delegada permanente junto da UNESCO. Foi na primeira qualidade, e não na segunda, que a acreditação da senhora foi concedida pelo nosso país. Alguns países designam um embaixador específico para chefiar a sua missão junto da UNESCO, mas não conheço nenhum caso em que esse diplomata seja, a partir dessa qualidade, acreditado na capital de qualquer país. Pelo que foi a França, e não a UNESCO, que decidiu considerá-la “persona non grata”, precisamente pelas mesmas razões pelas quais Portugal o fez.
  3. “A declaração de 'persona non grata' de Lamia Chakkour foi decidida porque em Portugal não havia embaixador sírio acreditado”. Esta frase inserida na notícia não tem o menor sentido. A Sra. Lamia Chakkour estava acreditada em Portugal e foi precisamente por esse facto que Portugal pôde declará-la “persona non grata”. O contrário é que não seria verdade: se acaso ela não estivesse acreditada (por qualquer atraso no processo de acreditação), esse nosso gesto não poderia ter sido assumido. Se, com o texto escrito, se pretende, de forma ambígua, aludir ao facto de não haver hoje, fisicamente, uma Embaixada síria em Lisboa, então a frase torna-se ainda pior: dá ideia de que, se acaso a senhora vivesse em Portugal, o governo português não tomaria o gesto que tomou...
  4. O facto de Portugal não ter grandes relações diplomáticas com a Síria foi precisamente o que levou a diplomacia portuguesa a aceitar, em 2009, dois ex-detidos sírios de Guantánamo”. Volto a dizer que é muito pouco rigoroso utilizar o conceito de “grandes”  (ou “pequenas”) relações diplomáticas. As razões da “escolha” dos dois cidadãos sírios para serem acolhidos em Portugal são mais complexas do que a frase deixa intuir, pelo que o jornal não deveria ter enveredado por esse caminho especulativo, sem dispor de uma base informativa sólida sobre a questão. Digo isto porque foi por meu intermédio que Portugal contactou as autoridades sírias, sobre a nossa decisão de acolher dois antigos prisioneiros de Guantanamo. Não obstante as diferenças políticas que mantínhamos entre os dois países sobre algumas grandes temáticas internacionais, as relações formais com o regime de Damasco eram, à época, perfeitamente normais. E, mais importante do que isso, não tem qualquer sentido pensar-se que Portugal é um país que assume, em política externa, um cinismo como aquele que a notícia deixa pressupor.
  5. Finalmente, uma nota sobre a “elegância” do título da notícia: “Portugal corta com a embaixadora síria na UNESCO”. Com todo o respeito, parece-me uma expressão mais própria para certos certos tablóides, mas o DN é que sabe... A fórmula usada ficaria bem melhor para “Luciana Abreu corta com Djaló”.
Com toda a cordialidade
Francisco Seixas da Costa
Embaixador em França (e também no Mónaco e delegado permanente junto da UNESCO...)

quinta-feira, junho 07, 2012

Banho de bola

As próximas semanas prometem muito, em matéria de futebol. Conhecendo-me a mim próprio, já imagino as noitadas que vou ter de fazer para recuperar os jogos perdidos durante o dia, com as correspondentes olheiras matinais seguintes e reações irritadas no trabalho, por falta de sono.

Como estou em fase de intenso lóbi para alguns interesses portugueses na UNESCO, com vários encontros por dia com colegas e estruturas da organização, vou ter de estar atento aos respetivos resultados nacionais, para poder ganhar algum coeficiente acrescido de boa vontade. Não chegarei à hipocrisia de me mostrar contente com as suas eventuais vitórias, mas garanto a simpatia de os felicitar por elas.

Contrariamente à esmagadora maioria das pessoas que conheço, não sou dado à mais leve preferência em termos de países, com natural exceção da seleção portuguesa e dos Estados que falam a nossa língua. A minha atitude na observação dos jogos, para além do simples disfrute do bom futebol, é sempre a mesma, desde há muito: não consigo ter simpatia por seleções de países com regimes ditatoriais ou autoritários e desejo a vitória da equipa tida por menos favorita e por mais fraca. Às vezes, a conjugação de todos estes critérios leva a inevitáveis contradições, mas consigo resolvê-las na minha irrevelável diplomacia íntima. Raramente me desviei desta linha, que, como há tempos me dizia um velho amigo, é "a mais política maneira de ver futebol que alguma vez conheci".

Só que a vida diária de um embaixador é complicada. Como exemplo que julgo significativo, por compromissos simultâneos, não vou poder assistir, em direto, a nenhum dos jogos da seleção nacional portuguesa, na primeira fase. Nem sei se isto é bom ou mau. Logo se verá, "com toda a tranquilidade".

Em tempo: ... e "puxarei"pela Grécia, que nos derrotou na final do Europeu 2004, por todas as razões de atualidade e também pelo facto do português Fernando Santos ser o treinador da equipa.

segunda-feira, junho 04, 2012

Esquizofrenia

Sinto haver algum esquizofrenia no discurso da nossa comunicação social, quando se trata de abordar a questão do investimento estrangeiro em Portugal.

Por um lado, clama-se pela necessidade de ser criado um ambiente para o bom acolhimento dos capitais externos, como forma de carrear para a economia portuguesa fundos e massa crítica que permitam induzir crescimento e competitividade. Nessa perspetiva, diz-se ser imperioso adequar o nosso quadro legal laboral, por forma a flexibilizar o mercado de trabalho, garantindo, ao mesmo tempo, ganhos de eficácia no sistema judicial, na administração pública e em outros setores nos quais os investidores estrangeiros detetam ainda fragilidades, reduzindo-lhes a apetência para aqui operarem.

Porém, com estranha frequência, às vezes nos mesmíssimos jornais onde o que acima refiro é defendido com ardor e zelo liberal, encontro alertas e até algum pânico sobre os efeitos que a entrada maciça de capital exterior pode trazer para a economia nacional, pela perda dos centros de decisão, pelas consequências deletérias que a expansão de certos investidores estrangeiros no tecido empresarial português pode vir ter, com consequências mesmo nos equilíbrios do nosso sistema político. A tudo isto se aliam, não raramente, algumas teorias conspirativas, muitas vezes ligadas a preconceitos face aos regimes e países de onde esses capitais são originários.

Quando se disputa um jogo, aceitam-se todas as suas regras. Ou, então, não se vai a jogo. E as regras da economia liberal, boas ou más, são as que são. Podemos estar em desacordo com elas e recusá-las, cabendo então colocar sobre a mesa as alternativas que devem ser seguidas. O que não se pode é querer ter "sol na eira e chuva no nabal".

quinta-feira, maio 31, 2012

A crise síria e a crise da nossa imprensa

Sob o elegante título "Portugal corta com embaixadora síria na UNESCO", a edição on-line de um diário de referência traz hoje a seguinte "notícia":

"Portugal decidiu cortar as poucas relações diplomáticas que tinha com a Síria e declarou 'persona non grata' a embaixadora síria junto da Unesco, a qual representava os interesses sírios também em Portugal, noticiou hoje a TSF. 

A rádio diz que a decisão do Ministério dos Negócios Estrangeiros português, de Paulo Portas, foi tomada ontem à tarde e concertada com o Presidente da República Cavaco Silva. A decisão surge numa altura em que a comunidade internacional acentua o isolamento da Síria, na sequência do massacre de Houla, no qual morreram 108 pessoas. 

A declaração de 'persona non grata' de Lamia Chakkour foi decidida porque em Portugal não havia embaixador sírio acreditado. O facto de Portugal não ter grandes relações diplomáticas com a Síria foi precisamente o que levou a diplomacia portuguesa a aceitar, em 2009, dois ex-detidos sírios de Guantánamo. Nessa altura era ministro dos Negócios Estrangeiros Luís Amado. 

O último parágrafo desta notícia, cuja redação, aliás, é de antologia ("as poucas relações diplomáticas que tinha com a Síria"...) é um amontoado de disparates. Dificilmente se conseguiria colocar tantos em tão pouco espaço.

quarta-feira, maio 09, 2012

Os "Gês"

Há dias, numa conferência em Paris, Alfredo Valladão, um amigo brasileiro que, há muitos anos, é aqui professor universitário, falou sobre a relação entre o G8 (grupo que reúne os oito países mais industrializados do mundo) e o muito mais recente G20, onde esses Estados estão agora lado-a-lado com os "países emergentes" (como o Brasil ou a Índia) e um conjunto de outros de menor dimensão económica (aliás, já bem mais de 20...).

Numa graça, durante a sua intervenção, Valladão comentou: "No passado, os "emergentes" estavam no menu do G8. Agora estão a comer à mesa com eles". É pura realidade: com a sua crescente relevância à escala mundial, os "emergentes" como que forçaram os G8 a abrirem-se. 

Formalmente, o G8 continua a existir, embora a sua agenda, a regular sempre por consenso, seja cada vez menos substantiva, o que se ficará a dever, em grande parte, às reticências crescentes que chegam das bandas de Moscovo. Já o G20, que teve horas de glória mediática no auge da crise financeira, sendo um palco para afirmação de esperanças salvíficas de um novo entendimento universal, parece estar hoje em alguma "panne" decisória significativa, passado que foi, para alguns, o momento maior do susto.

Portugal, que não tem dimensão económica para poder ter ambição sequer de entrar no G20, olha para estes fóruns de designação cooptativa a uma certa distância, cabendo-lhe apenas tentar neles projetar os seus interesses, nomeadamente através da União europeia e de outros países com os quais tenha especiais relações ou identidade de posições. Mas, a prazo, o nosso país tem uma obrigação estratégica de lutar para que as decisões que possam afetar os seus interesses como país sejam reconduzidas para as estruturas multilaterais competentes, nomeadamente as Nações Unidas e as suas agências, bem como as instituições de Bretton Woods (FMI e Banco mundial). Os países mais fracos não têm nenhuma vantagem de verem decidido pelo outros o seu destino e, muito em especial, têm sempre a ganhar em que o processo decisório que os afete assente em modelos de representação democrática, controlada por regras transparentes e equitativas. E é uma evidência que o G8 e o G20, sendo uma realidade incontornável que há que ter em conta, estão muito longe de poderem, com total legitimidade, representar a comunidade internacional.

quarta-feira, abril 18, 2012

Ardiles e Messi

Em Londres, em 1982, durante a guerra entre o Reino Unido e a Argentina, a propósito do arquipélago das Falkland/Malvinas, testemunhei o facto do fantástico jogador argentino Oswaldo Ardiles ter de ser cedido temporariamente pelo Tottenham, em face do ambiente hostil que se criou à sua volta.

A crise política que agora se instalou entre Madrid e Buenos Aires, por virtude da nacionalização conflitual de uma empresa petrolífera com capitais espanhóis, está, felizmente, muito longe de ter a dimensão do conflito desse mês de abril, há precisamente 30 anos. Por isso, tenho esperança em que um outro génio argentino do futebol, como Lionel Messi, não veja a sua brilhante carreira afetada por esta nova tensão. 

Será que o futebol pode escapar, por completo, à política?

quinta-feira, março 22, 2012

Argélia

É muito interessante acompanhar o modo como a França de hoje, 50 anos depois da independência da Argélia, reflete sobre esse passado relativamente recente, feito de uma guerra sangrenta e de grandes sacrifícios humanos, de parte a parte.

A guerra da Argélia mudou a França e colocou-a, a partir de então, sob uma herança histórica muito particular. Pode dizer-se que, durante muitos anos, houve por aqui como que um esforço, nunca abertamente assumido, de afastar o país desse tempo, talvez numa consciência subliminar de que a sua evocação arriscaria acordar velhos fantasmas. Curiosamente, terá sido o agravamento das tensões político-religiosas dentro da própria Argélia, a partir dos anos 90, que provocou, na França, o início de um surto de reflexão sobre aquela que foi a mais traumática das independências dos territórios sob sua administração. Dezenas de livros e muitos filmes passaram a trazer a um melhor conhecimento pelas novas gerações desse período convulso. Ouvindo testemunhos do período de confrontação, de ambos os lados do Mediterrâneo, fica uma clara sensação de que ainda há feridas bem abertas que, quem sabe?, talvez só possam ter a ganhar com este exorcismo de memória. É que a vida também prova que meter o passado sob o tapete só aumenta o risco de, um dia, nele tropeçarmos.

sexta-feira, fevereiro 03, 2012

ONU

Pela voz do chefe da sua diplomacia, Portugal expressou no Conselho de Segurança o conjunto de razões pelas quais considera que a credibilidade daquele órgão da ONU ficará em causa se, através dele, não for possível dar expressão à indignação que atravessa os meios mais responsáveis da comunidade internacional, face à repressão sangrenta a que as autoridades sírias condenam grande parte da sua população.

A presença portuguesa no órgão mais relevante da ONU, lado a lado com outros países ocidentais, mas igualmente com parceiros do mundo árabe, defendendo os valores da paz, da tolerância e da democracia, é algo que dignifica o nosso país, que dá visibilidade a uma ação externa que é pautada pelo diálogo e pela busca de compromissos mas, igualmente, pela firmeza na defesa de princípios que entendemos essenciais para a construção uma sociedade internacional mais justa e mais estável.

Aqueles que, no passado, colocavam em dúvida o interesse e a racionalidade da opção por uma candidatura portuguesa ao Conselho de Segurança, interrogando-se sobre a utilidade desse esforço, podem ter agora a resposta através desta visibilidade de que Portugal usufrui. É que - como por aqui tenho dito várias vezes - existe por aí um país antigo, que o mundo vê hoje como um parceiro político sólido e confiável, que está muito para além das dificuldades na esfera económica que conjunturalmente atravessa. Esse é o país que a diplomacia portuguesa, como garante da continuidade da imagem externa de Portugal, procura representar e afirmar.

sábado, janeiro 21, 2012

Afeganistão

A decisão ontem anunciada pelo presidente Nicolas Sarkozy, de suspender temporariamente a atividade das tropas francesas presentes no Afeganistão, na decorrência da morte de quatro soldados seus e ferimentos em vários outros, provocada deliberadamente por um militar afegão, foi um gesto que encontrou grande eco na opinião pública deste país. Com efeito, há qualquer coisa de estranho quando tropas que estão no terreno para ajudar à formação e à ação de pacificação de um exército se tornam vítimas indefesas de membros dessas mesmas forças armadas, por virtude da falta de um mínimo de condições de segurança para a sua atividade.

O envio de forças para o Afeganistão, por parte de vários países, que se iniciou há cerca de uma década, foi um gesto de solidariedade política para com os Estados Unidos, no pós-11 de setembro, e, ao mesmo tempo, foi o reconhecimento de que a segurança futura de todos nós começava nessa longínqua fronteira, onde o terrorismo se afirmava e prosperava com impunidade. Foi uma iniciativa justa, coberta por um mandato internacional incontestável, cuja legitimidade não pode ser posta em causa. E Portugal foi, com toda a naturalidade, parte desse esforço, que honra a sua política externa.

Os resultados desta iniciativa estão, porém, muito longe das expetativas então criadas. O Afeganistão é uma sociedade muito complexa, onde os aliados internos de quantos pretendem ajudar à pacificação do país parecem, por vezes, enredar-se em estranhas flexibilidades táticas com o inimigo, muitas vezes cruzadas com comprovadas venalidades. Dá frequentemente a sensação de que aqueles que se esforçam por criar condições para uma sociedade afegã mais justa e democrática são como que forçados a "respeitar" um certo relativismo cultural, tido como essencial para a estabilização do poder interno, mesmo à custa de uma fragilização de princípios básicos em matéria de direitos fundamentais. E, aqui e ali, fica a impressão de que algum transigência, nomeadamente na política de alianças, pode colocar em causa o caminho para o futuro democrático e de tolerância que não pode ter deixado de estar por detrás da contribuição externa para a operação militar.

Começa a ficar claro que os parceiros internacionais do governo afegão, que têm procurado encontrar soluções para garantir as melhores condições para a solidificação do seu estatuto de autoridade, se começam a interrogar sobre se esse imenso esforço está a ser devidamente recompensado com reais resultados e com um total empenhamento de quantos, no país, têm obrigação de acelerar as condições para virem a tomar nas suas mãos, de forma autónoma, o seu próprio futuro.

A decisão francesa de repensar a sua ação no Afeganistão, deixando aberta a porta a uma possível retirada das suas tropas antes da data prevista de 2014, no caso de não encontrar uma resposta satisfatória às suas preocupações, é talvez um momento de verdade que pode ser útil a uma reflexão mais alargada, que ajude a ver mais claro quanto ao futuro do conjunto da ação militar internacional no país. O respeito pelos mortos em ações militares no Afeganistão, como os muitos que a França já teve de enfrentar nesta década, justifica bem este gesto. 

sexta-feira, dezembro 30, 2011

Prendas

Na vida internacional, recebem-se frequentemente algumas prendas que consideramos bizarras. As mais das vezes, isso deve-se ao facto dos critérios estéticos de certas culturas serem muito diferentes dos nossos. Por isso, ficamos frequentemente "sem graça" ao ser confrontados com ofertas que, de imediato, concluímos que não irão nunca ter um lugar nas nossas casas. Se as oferecemos a terceiros, para além disso poder representar uma ofensa a quem no-las deu se se acabar por se saber desse desvio, também ficamos com a obrigação de explicar o que estamos a dar e a razão por que isso acontece. É sempre um problema, até porque, não raramente, se trata de peças caras, não tendo nós o direito de não reconhecer a gentileza do gesto.

Recordo-me que, há uns anos, a minutos de sair de um hotel de um riquíssimo país do Golfo, para o qual tinha apenas levado uma mala de mão e uma pequena pasta, cheiíssimas já com roupa e papelada, fui surpreendido pela oferta de uma imensa - mas horrorosa! - e muito pesada peça de cristal. Nem eu tinha como a transportar, numa viagem que iria ter duas escalas, nem aquilo poderia alguma vez ser exposto em sítio algum. Optei, em desespero de causa, por oferecê-la ao motorista que tinha andado comigo nos dias anteriores, não sem antes passar uma declaração escrita, garantindo que se tratava de uma oferta da minha parte... Espero que o homem não tenha tido problemas e, em especial, que não tenha contado nada às suas autoridades!

Há dias, pelo Natal, recebi, de um colega de um país onde os critérios estéticos divergem muito dos nossos, uma dessas peças "impossíveis". Comentando o assunto com um amigo, ele notou que também as instituições internacionais são, às vezes, alvo de ofertas que, não podendo ser recusadas, criam problemas para a sua exibição. É que, na decorrência de publicitadas e públicas ofertas, as instituições ficam naturalmente obrigadas a expô-las, sob pena de criarem incidentes diplomáticos.

Isso fez-me recordar uma questão que era objeto de muitas piadas, ao tempo em que estive em Nova Iorque. Tratava-se da famosa estátua de um elefante em metal, oferecida à ONU pelo Nepal, Namíbia e Quénia, uma obra de um artista búlgaro.

O secretário-geral da ONU decidiu colocar a estátua no jardim da organização, entre a 1ª avenida e a rua 48ª. Só que logo surgiu um problema: a expressão hiper-avantajada de um certo órgão do animal suscitou, quase de imediato, um escândalo na cidade, com uma romaria de visitantes a apreciar aquilo que ficou conhecido como a "endowed elephant statue" (estátua do elefante bem dotado). 

Para grandes males, grandes remédios. Com a ajuda de jardineiros hábeis, as Nações Unidas lá conseguiram fazer crescer uma sebe junto ao animal, que lhe tapa as "partes" exageradas e torna mais aceitável a exposição da obra de arte. Consta, além disso, que aquela área do jardim da ONU já não admite visitas, apenas sendo possível ver a estátua de longe. A eficácia deste "cover-up" é tal que na net não se consegue encontrar nenhuma foto do elefante sem a sebe.

A diplomacia foi sempre a arte de resolver grandes problemas. Ou problemas grandes...

terça-feira, dezembro 27, 2011

A Rússia e o mundo árabe

Muito se tem falado das dificuldades de alguns países do ocidente para encontrarem um modus vivendi com as instáveis decorrências políticas das "primaveras árabes", depois de, durante décadas, terem tido os ditadores derrubados como amigos públicos. E ainda "a procissão vai no adro". O caso líbio absolveu parcialmente as culpas de alguns e a realpolitik, que não tem apenas cultores deste lado, vai fazendo o resto.

Mais intrigante tem sido a posição russa em todo este contexto. A Rússia é um parceiro histórico na região, desde os tempos da União Soviética. Mesmo num período em que a sua debilidade económica era mais notória, o seu estatuto no Conselho de segurança da ONU, bem como as relações que mantinha com certos atores problemáticos da região, justificaram a sua permanente cooptação para os quadros de diálogo, de que o "quarteto" (com os EUA, a UE e a ONU) sobre a questão israelo-palestiniana é caso mais notório.

É sempre interessante acompanhar a linguagem de Moscovo no tocante ao Médio Oriente alargado. Por ela perpassa uma preocupação em evitar a sedimentação de uma presença intrusiva dos países ocidentais nos diversos processos, na tentativa de contrariar o que lhe parece ser um desequilíbro geopolítico que se possa criar em seu desfavor. Esse cuidado é historicamente matizado por algumas notas de adesão, embora frequentemente em moldes algo equívocos, a temáticas tidas como de interesse comum ou já consagradas no "politicamente correto": o combate ao terrorismo, a não-proliferação nuclear, o livre acesso à rotas de fornecimento petrolífero. Sem surpresas, muito menos enfático é o seu apoio ao "empowerment" democrático dos povos árabes e à preservação, sem relativismos culturais, dos direitos humanos.

O caso sírio é aquele onde a posição russa se revela em todo o esplendor da sua ambiguidade. Colocado perante um caso trágico de violência e repressão, num dos cenários onde tem ainda algum "leverage", Moscovo tem vindo a deixar passar os dias e os mortos, numa frieza descredibilizante do seu papel à escala global. O inaceitável "wording" do seu projeto de resolução na ONU, equiparando o que não é comparável - as ações violentas de setores da oposição com a barbaridade da repressão governamental -, revela bem que o poder russo continua tentado por reflexos de meros jogos de poder.

É pena. Por razões de outros grandes equilíbrios à escala global que não vêm para o caso, o mundo precisava de uma Rússia mais aderente e construtiva de uma agenda multilateral e normativa de princípios, que potenciasse a sua influência e se revelasse bastante menos dependente de uma mercantil lógica de fins, evitando a colagem a regimes a que o destino aponta a inexorável direção do caixote do lixo da História. O que se passou, há precisamente duas décadas, em Moscovo, deveria servir de lição. A Moscovo. 

Confesso os figos

Ontem, uma prima ofereceu-me duas sacas de figos secos. Não lhes digo quantos já comi. Há poucas coisas no mundo gustativo de que eu goste m...