
Eu
devia ter aí uns dez ou onze anos. O nome surgiu numas palavras cruzadas, com
que o meu pai e o meu avô materno entretinham as horas desses serões ainda sem
televisão, lá por Vila Real: “Cidade livre no mar Adriático”, com sete letras.
A palavra era Trieste. Nome estranho. Nunca tinha
ouvido falar e, no entanto, ela surgiu, fácil, ao meu pai e ao meu avô, que se
entretiveram a falar sobre a história da cidade. Eu já tinha então o saudável
vício de consultar dicionários por tudo e por nada, mas posso imaginar que me
terá soado bem bizarro ler no gordo “Prático Ilustrado” da Lello (verifico
agora) que se tratava de um porto na “Venécia Juliana”…
Na conversa dos mais velhos, ouvi então
dizer que a tal Trieste tinha sido ou era uma “cidade livre” e isso, recordo
bem, excitou a minha imaginação. O que seria uma “cidade livre”? Um lugar onde
podia fazer-se o que se quisesse? Abandonando por algum tempo o jogo
cruzadista, eles falavam de Trieste ter estado sujeito às mãos de vários
poderes. Que coisa interessante! Como seria Trieste?
Um dia, o meu pai mostrou-me, na sua coleção de selos,
um carimbo grosso com a palavra Trieste. Era um selo da “cidade livre”!
O nome de Trieste nunca mais abandonou a minha
imaginação, num tempo em que o estrangeiro era apenas, para mim, a vilória
galega de Verin. Porém, saber do destino trágico de uma urbe, que tinha tido
uma existência sobressaltada por muitas guerras, casava bem com a quase
homofonia que a ligava à palavra “triste”. Talvez por isso, e por alguma coisa
mais que pudesse entretanto ter lido, era a imagem de uma cidade triste a que
eu fixara para sempre desse porto do Adriático que não conhecia.
Trieste esteve, por muitos anos, fora das rotas das
viagens a que a vida me conduziu. Um dia, numa ida a Veneza, ao sugerir a
alguém que a organizou uma “saltada” a Trieste, ali perto, a minha ideia foi
recebida com espanto. “Trieste? Mas para que quer ir a Trieste?”. Só faltou que
dissessem: “Ninguém vai a Trieste!” Era difícil explicar que uma minha
curiosidade de infância alterasse planos de viagem de um grupo. E, lá no fundo,
eu sentia-me embaraçado em ter de confessar esse estranho e pouco adulto
fascínio. Adiei assim a minha ida a Trieste.
Um dia, em Viena, numa conversa com uma colega, tendo
vindo à baila o nome de Trieste, ela sugeriu-me, sobre a cidade, um livro então
recente de uma escritora de viagens (até anos antes, escritor, porque
entretanto mudou de sexo…), Ian Morris. O título do livro não podia ser mais
mobilizador da minha curiosidade: “Trieste or the meaning of nowhere”…
Comprei-o, devorei-o e era, de facto, interessante (o volume ainda deve andar
por alguns caixotes, fechados desde a partida de Paris). Reforçou-se a minha
curiosidade por Trieste.
Passaram uns tempos e, surpresa das surpresas, não é
que o governo italiano me convidou um dia a integrar uma mesa redonda em
Trieste, sobre questões de segurança internacional!? Aceitei com o entusiasmo
de um neófito. Finalmente, Trieste surgia na minha rota de vida. Foi há pouco
mais de dez anos.
Ido de carro da Áustria, através da Eslovénia, cheguei
num fim de tarde a uma cidade serena, que apenas pela língua soava a italiana.
Instalei-me no (então) excelente “Duchi d’Aosta”, na Piazza d’Unità d’Italia. A
praça, sobre o mar, dava ares de uma miniatura da nossa Praça do Comércio.
Dominava-a o edifício do Municipio. Olhando dela a baía, pressentia-se uma
grandeza perdida. Por detrás da sede municipal, ficava a Cidade Velha, que
conduzia ao Duomo e ao Castelo de San Giusto, bem como à Basilica de San
Silvestro. Confirmei agora os nomes, que já deixara escapar com o tempo.
Nos dois dias seguintes, subi de taxi essa colina para
estar nos debates, que tinham lugar na universidade. Pelo meio da tarde, descia
a pé as ruelas, tentando perceber a vida fora das grandes artérias. Como
viajante, esclareço, sou um “voyeur” de periferias, tenho um vício
bisbilhoteiro dos bairros decadentes, encantam-me ruas com pouca gente, casas
comerciais sem charme, becos esconsos. Acho que a alma das cidades está mais
por aí do que está nas avenidas com lojas estandardizadas.
Trieste, nesse capítulo, não me desiludiu. Nela, os
bairros juntam casas antigas com uma arquitetura estranha, idêntica àquela de
que estão cheias as cidades do pós-guerra, de uma funcionalidade sem grande
graça. Mas, ao mesmo tempo, consegue-se perceber por ali algo mediterrânico, no
pálido manchado dos ocres, nas varandas com flores. Lembro-me de ver castanhas
à venda, como em Lisboa, o que me confortou.
Perto do porto, os bares e os cafés tinham menos
interesse do que eu esperava. Trieste chegou a ser o porto axial do
Mediterrâneo e era muito vulgar que as linhas de transporte marítimo trouxessem
a menção “via Trieste”, como marca dessa centralidade. Os tempos, porém, eram
outros.
Na minha agenda, levava o nome de alguns cafés. Um
deles, o “Pirona”, mais pastelaria que café, tinha a fama de ser frequentado
por James Joyce, nos dez anos que passou em Trieste. Já o “Tommaseo” se diz
ligado à libertação italiana no século XIX. Curiosamente, a sua arquitetura e
decoração lembram mais um café de Viena do que um espaço de Itália. Acabei a
tarde, frente ao meu hotel, com um “prosecco” no “Caffé del Specchi”, um local
elegante, com toque turístico, mas, mesmo assim, incontornável, como alguns
gostam agora de dizer.
Volto às origens da cidade. Não os queria maçar muito
com a sua confusa história, bem como do território que lhe estava adjacente.
Porém, sem ela, não é possível entender o seu caráter tão peculiar, na
charneira de vários mundos.
Durante muito tempo, Trieste foi o porto meridional do
império austríaco, com o alemão a ser a sua língua. A Itália sempre a cobiçou e
viria a ocupá-la após a derrota alemã na primeira guerra mundial. Depois, foi a
vez dos nazis, nos anos 40, que a utilizaram como centro para a repressão.
Viria a tornar-se-ia jugoslava no termo da segunda guerra. Para ultrapassar o
contínuo interesse conflitual da Itália e da Jugoslávia, os Aliados deram-lhe o
estatuto de “território livre”, com a URSS e os EUA a terem sobre esse espaço
uma dupla tutela, também ela sempre polémica, o que levou à sua divisão em duas
zonas de ocupação militar, que se consagrariam mesmo numa partição
institucional efetiva em 1954. Apenas em 1975, se encontrou uma solução, com a
Jugoslávia (hoje a Eslovénia) a ter direito a territórios a leste e a Itália a
fixar-se na cidade. Confuso? Deve ter sido bem mais para quem por lá vivia e
foi sujeito a todas estas bolandas, sem direito a pronunciar-se sobre o seu
próprio destino.
Flanar por Trieste implica uma visita obrigatória à
estação ferroviária. Com alguma imaginação, poderemos ver por ali a sombra do
Orient Express dos tempos áureos, na sua rota para Istambul. Se tivesse
pretensões de guia turístico, teria também de recomendar o passeio pelas
margens do Canal Grande, com uma entrada na bela igreja ortodoxa ou na
impressionante Sinagoga, bem como uma sortida ao Palacio de Miramare. Pouco
mais.
Recomendo Trieste aos nostálgicos irónicos da
História, aos cultores da sociologia empírica que se entretêm a olhar as gentes
e os costumes, sem pretensões de sínteses definitivas e inteligentes, mas
apenas como forma de tentarem perceber, modestamente e com prazer, o que por
ali resta dos mundos atravessados no seu passado. Aviso à navegação: para os
amantes das cidades “óbvias”, Trieste pode ser uma imensa seca. Não tem nenhum
do “glamour” típico da Itália ali ao lado. Repercute apenas uma distante
dignidade dos tempos dos Habsburgos e de quantos lhes seguiram os caminhos. Nem
sequer revela a rudeza da alma eslava do seu leste balcânico. De facto, Trieste
não é já quase nada disso, ou melhor, é apenas o saldo sofisticado de tudo
isso. Mas apenas para quem o souber ler, claro.