sábado, março 30, 2024

Saudades do tio Filipe

O meu pai detestava ver fotografias antigas. Assumia que elas lhe traziam recordações tristes de tempos felizes, de gente que tinha perdido pelos anos. 

Tenho uma atitude em absoluto inversa. Acho imensa graça recordar pessoas que já se foram, imaginá-las nesses momentos, olhá-las na idade que então tinham. Faz-me bem, não sinto a menor nostalgia. Dilui-me mesmo a saudade que, pontualmente, possa ter de algumas delas. Como é o caso do meu tio Filipe.

Nas fotografias de família que, há pouco, encontrei numa caixa, onde tenho tudo convenientemente desordenado, descobri uma meia dúzia onde surge o tio Filipe. 

Quem era o tio Filipe? Era um dos muitos irmãos do meu avô materno. Um homem alto, magro, pálido, com ar de ter maleitas debilitantes. Teve uma vida algo atribulada. Recebeu, por herança da minha bisavó, uma bela quinta, à volta da qual se tinha formado a aldeia de Bornes de Aguiar. Rezam as crónicas familiares, e sabe-se serem esses os factos, que perdeu a quinta ao jogo, no casino das Pedras Salgadas, uma história à época famosa, que já vi retratada num artigo de imprensa. Ficou em situação económica muito difícil, mas nem isso terá impedido que levasse uma vida de estroina, com muitos casos românticos pelo meio.

Há uns anos, um mestre-de-obras que andava a trabalhar na minha casa, em Lisboa, ao saber-me ligado familiarmente a Bornes de Aguiar, revelou-me que o seu sogro era filho ilegítimo de "um tal Filipinho Seixas, que tinha perdido a fortuna no jogo". Nem por esse vago parentesco o senhor Bonifácio me embarateceu a obra!

O tio Filipe nunca casou. Passou, a certa altura, a viver, creio que com alguma modéstia material, com uma senhora que havia estado empregada em casa dos meus avós, de seu nome Aurora. Tiveram várias filhas e creio que um filho, cuja morte trágica, esmagado entre dois vagões de um comboio, tenho bem presente.

As imagens que guardo do tio Filipe são de Bornes, da casa do meu avô, ou das Pedras, do terraço da casa das irmãs da minha avó. A uma delas, a mais doce, a tia Tininha, de seu nome Albertina, o tio Filipe terá andado a arrastar a asa. Outra versão é que a própria tia Tininha teria tido um derriço pelo irmão do cunhado. Constatando ser eu quase o mais velho membro da família, já não tenho a quem perguntar sobre estas coisas, pelo que elas ficam assim imprecisas.

Na minha memória de infância, vejo o tio Filipe a ir à caça, com um chapéu largo, espingarda dobrada no braço, cinturão de cartuchos à banda, a embarcar com outros caçadores, numa camioneta de caixa aberta. Fixo-o também recostado num cadeirão de espaldar alto, na bela varanda em redor do pátio da casa dos meus avós. E também, bem enfarpelado, no casamento da única irmã da minha mãe, em que eu ajudei uma prima a levar as alianças aos noivos.

Recordo o tio Filipe com o seu sorriso triste, um curto bigode, sempre algo isolado. É aliás esse isolamento que ressalta de fotografias de picnics mais antigos, com toda a família sentada no chão, com ele invariavelmente nos extremos.  

É estranho. Numa família tão alegre como a minha sempre foi, pelo bom ambiente criado à volta dos meus avós, a figura do tio Filipe projetava uma postura melancólica, um ar de alguma gravidade, como se se obrigasse a sentir-se à margem desse mundo feliz que o seu irmão e meu avô convocava para os seus. 

Nos dias de hoje, ainda sinto alguma pena pelo destino meu tio Filipe. E, quando deparo com uma sua imagem, associo-a logo à simpatia que a sua postura isolada me suscitava, pelo facto de a ver sempre um pouco alheia ao ambiente familiar em que era chamado a integrar-se.

Estava eu, no final da noite de ontem, a pensar em tudo isto, no vasculhar das fotografias, quando me deu para ir a um registo genealógico que alguém fez, há uns anos, sobre a nossa família. E fui procurar nele as datas relevantes de vida do tio Filipe. E sabem o que descobri? Que o tio Filipe, o tal que me convoca saudades ligadas à minha infância, em Bornes de Aguiar e nas Pedras Salgadas, afinal já teria morrido antes de eu ter nascido...

(Deixo esta memória bizarra, neste sábado de Aleluia, aos meus sete primos direitos, todos mais novos, que conheceram o nosso tio-avô Filipe ainda menos do que eu...)

8 comentários:

David Caldeira disse...

O mesmo efeito têm as histórias contadas vezes sem conta, pela noite dentro, nos encontros de família, em versões sucessivamente mais requintadas, que fazem com que um marmanjo nascido em 1966 tenha, comprovadamente, assistido, ao vivo, a acontecimentos ocorridos nos anos 40 e 50 do século passado...

Maria Isabel disse...

Como tantas outras, uma belíssima memória.Obrigada.
Páscoa feliz para toda a família
Maria Isabel

ZeBarreto disse...

Estou a ver e a ouvir a tua risada final. Bela história!
Um abraço e boa Páscoa.
ZB

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Com tanta memória familiar também me parece que conheci pessoas e lugares que nunca conheci, ou pelo menos que tive maior presença de pessoas que vi esporadicamente.
Sem saudosismos, adoro recordações.

manuel campos disse...


Uma belíssima história em que, como em todas as belíssimas histórias, depois de lermos o último parágrafo, temos que reler todo o texto outra vez à luz do que acabámos de saber.

Se a memória não me falha, creio que já nos disse que nunca se sentiu motivado para o romance.
Mas há os contos e já nos tem trazido aqui muitos e muito bons pela qualidade da escrita e pela escolha dos temas, estes sim baseados em "histórias reais", baseados na vida vivida.

Não há nada como a vida vivida, os factos que qualquer um poderia ter vivido, que gostaria ou não gostaria de ter vivido, mas que têm a ver connosco que lá no fundo, mesmo muito lá no fundo por vezes, não somos de um modo geral assim tão diferentes uns dos outros no sentir.




Flor disse...

Pensava que só eu tinha as fotografias do antigamente desordenadas numa gaveta :).

Feliz Páscoa Senhor Embaixador.

jj.amarante disse...

Afinal tinha saudades era das fotografias do tio Filipe e não propriamente da pessoa.
Às vezes, ao revisitar fotografias antigas fico a pensar se me lembro do que vi ou das fotos que tirei e das quais tenho uma memória mais viva.
O Magritte fez um quadro sobre esse tema: https://imagenscomtexto.blogspot.com/2009/08/magritte-condicao-humana.html

manuel campos disse...


Meu Pai tinha a mania da fotografia e do filme, ganhou mesmo um concurso de fotografia mas eu sempre pus algumas dúvidas, dúvidas essas que faziam a alegria da família: é que ele era da direcção do clube organizador.
Seja como fôr, tendo em conta que a fotografia em causa é muito feliz em termos de espontaneidade do modelo (que era eu, claro, ainda mal sabia andar), talvez seja eu que o ganhei e, portanto, ainda tenho ali a taça numa prateleira, aquelas taças da época, um recipiente em prata (ou casquinha) com duas asas, em cima duma peanha de base quadrada em madeira.

Também fazia filmes de 4 minutos com aquelas máquinas Kodak de 8mm, aqueles filmes que custavam na altura quase tanto como os do Cecil B. DeMille, nos primeiros tempos ainda tinham que ir a Paris ser revelados, era preciso esperar um mês para saber da obra, não fosse ter “entrado luz” e lixo com ela.
Ficámos assim com muitas dezenas daqueles filmes, que começam no dia em que eu nasci (ainda a P & B, claro, sou da 1ª metade do século passado, o que dá uma ideia de como sou vetusto) e acabam no dia em que algum dos meus quatro irmãos (todos mais novos) fez 18 anos ou algo do género, eu acho que ele já estava “noutra” e desejoso de ter um motivo qualquer para dizer que já não lhe apetecia mais fazer filmes, nós que fizéssemos.

Pelo caminho foi trocando de máquina de filmar, como é evidente.
Nessa altura era preciso uma série de equipamentos que não passam pela cabeça das gentes de hoje e mesmo de algumas gentes dessa mesma altura, a saber, uma máquina de projectar e um ecrã num tripé que nunca se sabia em que canto da casa incomodava mais física e esteticamente (uma parede branca também servia, mas não era a mesma coisa, quando se quer fazer bem as coisas).
Pelo meio íam aparecendo no Natal curtas metragens de 15 minutos do Bucha e Estica, do Charlot e até as primeiras do Jacques Tati, o que fazia que os nossos amigos e conhecidos andavam sempre a perguntar quando é que podiam lá ir.
Isto tudo para relembrar que a vida e o mundo evoluiram um tudo nada nos últimos 80 anos, nunca é demais fazê-lo pois venho constatando que nem todos o parecem ter notado.

Chegamos assim ao tema do seu texto.
Em conjunto com um dos meus irmãos mandámos transferir todos aqueles filmes para DVD, são horas e horas do nosso passado “em movimento”, em que se pode recordar todos aqueles de que gostámos bem vivos, a rir, a conversar, a andar, em resumo, como eles eram e não como os acabámos por ter que recordar já no fim das suas vidas, que é a última imagem com que ficámos.
Claro que não é algo que se veja com frequência, mas é algo que é bom saber que se tem ali e é só pôr no leitor.
O mesmo se fez com as cassettes VHS que os filhos gravaram dos netos em pequenos.
Com isto do digital, acabaram-se as fotografias que tinham que sair bem à primeira, toda a gente tem milhares e milhares no PC ou no telemóvel e nunca ninguém encontra a que quer quando precisa dela.

PS- Vou até à "linha" no “espada”, lanche de Páscoa em casa de um filho que mora no último andar de um prédio que, se a Terra não fosse redonda, dava para ver Nova Iorque em dias mais limpos.

Entrevista à revista "Must"

Aque horas se costuma levantar?  Em regra, tarde. Desde que saí da função pública, recusei todos os convites para atividades “from-nine-to-f...