Há dias, a propósito da dignidade inteligente com que a hierarquia religiosa lusitana geriu o 13 de maio em Fátima, em tempo de pandemia, a contrastar com o que parecia ser um exercício de ginástica rítmica na Alameda, deixei claro num escrito que fazia esse homenagem na minha qualidade de ateu.
Logo houve quem reagisse, dizendo que o termo era muito “desagradável”. Alguns disseram que usar “agnóstico”, embora não sendo sinónimo, seria talvez menos agressivo.
Ao longo dos anos, criei a firme impressão de que os crentes das várias religiões exigem, para si e para aquilo em que acreditam, um maior respeito do que aquele que estão dispostos a conceder aos que o não são.
Ora eu, que sou ateu, requeiro para esta minha forma de estar na vida exatamente a mesma consideração que tenho por quem segue uma religião, seja ela qual for. Não aceito a menor superioridade moral de ninguém, só por que acredita em algo que a mim nada me diz.
Sou ateu, desde que me conheço. A minha mãe era católica, embora apenas escassamente praticante. O meu pai, embora viesse de uma família com forte pendor anti-clerical, era claramente um agnóstico, com um grande respeito pelas referências católicas: em toda a sua vida, que foi muito longa, sempre o vi tirar o chapéu quando passava em frente a uma igreja ou a um cemitério.
Os meus pais casaram pela igreja e sempre existiram, lá por casa, símbolos religiosos. Batizaram-me, ato a que, como verifico pelas fotografias, fui já a pé, com mais de dois anos. Ao que o meu pai dizia, entre a brincadeira e o sério, terá sido a água gélida do batismo, que o bom do padre Domingos (que batizou, casou e fez o funeral de muitos dos meus familiares) usou na igreja de São Martinho, que me provocou uma pneumonia, que me ia levando desta para melhor (não extraiam da frase de estilo nenhuma ilação religiosa, por favor). Foi esse o meu último, embora involuntário, cruzamento pessoal com as liturgias católicas.
Um dos grandes mistérios da minha vida foi sempre perceber a razão pela qual nunca fiz a primeira comunhão. Tenho uma ideia muito vaga de ter andado na “doutrina” de uma tal Dona Maria Vilar, uma senhora pequenina que oficiava num primeiro andar da Rua Direita, lá por Vila Real, onde recordo haver uns pequenos bancos, uns mochos, onde nos sentávamos e vagamente recordo que, em coro, repetíamos orações. Um contemporâneo a quem falei há tempos do assunto, contrariou-me: ali aprendia-se a tabuada, não as orações. Não seria “dois em um”?
Algo se terá passado - talvez uma nova maleita, porque tenho ideia de ser então muito enfermiço - que levou a que eu não fizesse parte do grupo dos miúdos da minha idade que, nesse ano, fizeram a primeira comunhão.
Provavelmente, tendo faltado nesse ano, na vez seguinte já não fui chamado em grupo ao exercício. Mas, sem dúvida, isso também demonstra alguma falta de empenhamento familiar na minha aculturação religiosa, o que, segundo conversas mais tarde ouvidas lá de casa, teria sido para não contrariar o “menino”, filho único e muito voluntarioso, que se terá mostrado refratário a cumprir tal dever. A assim ser, com assinalável êxito, pelos vistos.
De uma coisa tenho quase a certeza: terei sido a única criança dessa geração vilarrealense que não “fez” a primeira comunhão. Mas a religião era, para mim, uma coisa alheia? Em casa, lembro-me vagamente de ter aprendido a “Avé Maria” e o “Pai nosso”, mas nunca cheguei a decorar a “Salvé Rainha”. Ah! E também me diziam que nunca me soube benzer, trocando sempre a sinalética, numa dislexia que, pelos vistos, tinha uma anti-doutrina por detrás.
Contudo, a questão da existência de deus não deixou naturalmente de se me colocar, a mim e a outros da minha geração. Recordo-me de um “teste”, arriscado e que só nos dias de hoje tenho como divertido, que, bem miúdos, fizemos, uma noite: caminhámos, de braços abertos para nos equilibrar, sobre a antiga pérgola que existia no miradouro atrás do cemitério (na imagem).
Lá do alto, olhando o despenhadeiro que ia dar ao Cabril, insultámos deus, com palavras fortes, desafiando-o a matar-nos, se acaso existisse. Como não matou e nós nos safámos, logo ali ficou bem provada a sua inexistência. Pelo menos, o meu velho amigo Olívio fez parte comigo desse ousado desafio ao poder celestial, aliás bem sucedido, sob o olhar próximo e sombrio dos mortos do cemitério de D. Dinis.
(Nós, à época, não tínhamos lido, em “A Capital”, do Eça, a cena coimbrã em que o Damião “deu cinco minutos a Deus para que o fulminasse, e, passados os cinco minutos num grande silêncio do Céu, atirar desdenhosamente o cebolão de prata para a algibeira, dizendo com tédio: “está superabundantemente provado que não há nada lá no Céu”)
Não sei se os outros comparsas dessas minhas aventuras de infância acabaram ateus. Eu, que já o era, mantive-me como tal, até hoje.
Por isso, embora não faça o menor proselitismo do ateísmo, exijo sempre para esta minha forma de estar na vida um respeito idêntico àquele que vou tendo pelos meus amigos crentes e pelas liturgias que lhes são próximas, a algumas das quais os acompanho, quando a vida, ou a morte, a tal exige.