Em 1983, quando vivia em Luanda, colocado na nossa embaixada, foi, a certa altura, decretado um recolher obrigatório, que, ao que recordo, se prolongou por um período superior a dois anos. As embaixadas tinham livre-trânsitos próprios, mas, mesmo assim, a circulação nesse período era muito pouco confortável. Havia controlos armados em certos pontos da cidade, assegurados por jovens soldados, cuja fragilidade à progressiva influência da cerveja tornava tudo muito imprevisível. A “hora da Cinderela” era a meia-noite, a partir da qual a proibição de circular se iniciava, até às cinco da manhã.
Quando nos distraíamos, depois de um jantar mais prolongado, havia que conduzir com a máxima das cautelas, ao aproximarmo-nos desses controlos. Nem deveríamos ir demasiado lentamente, para não dar impressão de que podíamos estar a tramar algo, nem mais rapidamente, para não criar a ideia de que nos preparávamos para fugir à fiscalização. Depois, era o diálogo, sempre sorridente, com os “camaradas”, até termos a luz verde para avançar. Aí vinha o último perigo: tinha de haver a noção exata de que fôramos autorizados a prosseguir. Como, por vezes, as confusões de linguagem existiam, recordo-me que arrancava sempre com os olhos postos no espelho retrovisor, não fosse dar-se o caso do militar ter entretanto mudado de ideias e querer ver mais algum papel. É que se ele interpretasse esse arranque como uma desobediência, era difícil depois arguir contra uma rajada de Kalashnikov...
Em casa, a tentar dormir, no silêncio da capital angolana, sem carros a circular, começou por ser desagradável ouvir, com uma regularidade quase quotidiana, essas rajadas de metralhadora. No dia seguinte, de se perguntasse, ninguém tinha ouvido falar de qualquer incidente grave, pelo que essa sonoridade passou a fazer parte da nossa paisagem auditiva. Confesso que, ao fim de uns meses, aquilo quase que não interrompia o sono.
Nestas noites silenciosas de Lisboa, que agora começam, esse risco não existe. No que me toca, pouco sensível aos pruridos libertários que agora por aí emergem, apoio e respeito as medidas decididas, pelo interesse comum que reconheço na sua entrada em vigor.
Mas irei lembrar-me deste recolher obrigatório na próxima noite de Santo António em que, tão cedo quanto possível, todos nos possamos cruzar sem máscaras, bebendo copos pelas ruelas de Alfama, em espaços atulhados de gente, sardinhas e fumo. Essa é a minha Lisboa! Não a dispenso!