quarta-feira, novembro 04, 2020

Trump e a Rússia


Há quatro anos, estive num fórum sobre questões estratégicas em Kiev, na Ucrânia. Faltavam poucas semanas para as eleições presidenciais americanas e o tema, como não podia deixar de ser, dominava o ambiente. 

Se a escolha de um presidente americano é sempre relevante para o mundo, muito mais o é para um país charneira como a Ucrânia, ainda atravessada por uma espécie de fronteira residual da Guerra Fria. 

Os ucranianos de Kiev não esqueciam o apoio que administração Obama dera ao afastamento do presidente pró-russo do país, num golpe político que, no entanto, acabou por ter, como preço, a perda da Crimeia e a fixação de um conflito “congelado” no Donbass, na zona leste do país. 

As estranhas declarações que Trump então já produzia, dando sinais, em caso de vitória, de ser favorável a um apaziguamento com Moscovo, punham os cabelos em pé ao poder ucraniano. 

Jogando pelo seguro, a organização do fórum tinha convidado americanos de ambos os lados do espetro. Por ali andavam nomes do republicanismo radical, como Karl Rove, Newt Gingrich ou John Bolton, mas também figuras do mundo democrático, como Leon Pannetta ou David Axelrod, até gente que tinha transitado de administração, como Robert Gates. 

Uma maioria achava provável uma vitória de Clinton, mas as hipóteses de Trump não eram descartadas. Recordo o vaticínio sossegante de Gingrich: “Estou certo que Trump, se ganhar, vai rodear-se de gente experiente, do ‘establishment’ republicano”. Como ele se iria enganar! 

Passaram umas semanas mais. As eleições americanas tinham tido lugar na ante-véspera. Eu participava de um seminário luso-alemão, em Berlim. Todos – repito, todos – os que por ali andavam estavam aturdidos com a vitória de Trump, embora à época, ele fosse ainda uma daquelas incógnitas que não prenunciam o melhor. 

Se a delegação portuguesa estava ainda sob o efeito desse choque, não pode imaginar-se o estado em que fomos encontrar os nossos contra-partes germânicos, gente do governo e da oposição. Vivia-se por ali um ambiente de tragédia anunciada, o que, à luz do que hoje sabemos, teria com certeza a ver, uma vez mais, com a questão das cumplicidades de Trump com a Rússia.

O mundo de dúvidas sobre a verdadeira natureza da estranha relação política entre Trump e Putin permanece até hoje. Não sabemos se o que vier agora a passar-se pode abrir caminho a que o assunto seja esclarecido ou se, pelo contrário, ajudará a enterrar ainda mais esse mistério. Fosse eu crente e diria: “God bless America”!

5 comentários:

Luís Lavoura disse...

teria com certeza a ver, uma vez mais, com a questão das cumplicidades de Trump com a Rússia

Acho essa suposição perfeitamente disparatada. A Alemanha tem ainda mais cumplicidades com a Rússia do que Trump. A começar pelo Nord Stream 2...

Anónimo disse...

V.Exa. está a insinuar que o "camarada" Putin não é uma pessoa recomendável? V.Exa. percebe que semelhante raciocínio ainda vai entortar mais a coluna de alguns comentadores por aqui?

Putin é bom
Trump é mau
Putin - o bom -, apoia Trump - o mau.
Se o mau é apoiado pelo bom, então, é o mau que é bom ou é o bom que é mau?

Anónimo disse...

"...O mundo de dúvidas sobre a verdadeira natureza da estranha relação política entre Trump e Putin permanece até hoje..." Será que o Sr. Embaixador sabe alguma coisa que o Procurador Especial Mueller, ao fim de mais de 2 anos, de milhões de dolares e centenas de testemunhos investigados, não descobriu?.

Joaquim de Freitas disse...

Donald Trump foi eleito pela Rússia?

Os EUA podem preparar eleições nas Honduras, na Sérvia, ou mesmo na Ucrânia, mas os EUA são demasiado grandes e complexos para deixar a escolha da presidência para uma barragem de e-mails totalmente ignorados pela maioria dos eleitores. Se assim fosse, a Rússia não teria de tentar "minar a democracia americana". Isso significaria que esta democracia já estava minada, em farrapos, morta. Um cadáver de pé pronto para ser derrubado por um tweet. Basta ver o que se passa neste momento nesta pobre América, onde ume metade está entrincheirada à espera do sinal de assalto para atacar a outra metade.

É possível que os russos tenham feito alguma coisa para prejudicar Hillary, porque havia realmente algo: os e-mails de servidores privados, a Fundação Clinton, o assassinato de Gaddafi, o apelo a uma zona de exclusão aérea na Síria (que envolveu um conflito directo com a força aérea russa) ... não tinham nada para inventar.

Mas de lá a fazer algo para fazer “amar” Trump…

Na pior das hipóteses, os "russos" são acusados de revelar factos relativamente insignificantes sobre a campanha de Hillary Clinton. Grande coisa.

Mas isso basta, para levar o “establishment” para acusações de "traição" quando Trump faz o que disse que faria durante a sua campanha, nomeadamente tentar normalizar as relações com a Rússia.

Esta histeria provém não só do mainstream americano, mas também da elite europeia, que foi bem treinada durante setenta anos como caniches, obedientes, na menagerie americana, através de um intenso controlo por parte das associações americanas de "cooperação" transatlântica.

Basearam as suas carreiras na ilusão de partilhar o império global, seguindo os caprichos dos Estados Unidos no Médio Oriente e transformando a missão das suas forças de defesa em unidades de resposta estrangeiras da NATO sob o comando americano. Não tendo pensado seriamente nas implicações desta situação por mais de meio século, entram em pânico agora com a ideia de serem abandonados…pelo mestre!

Donald Trump é tudo menos eloquente, tem uma linguagem com um vocabulário limitado e repetitivo, mas o que disse na sua conferência de imprensa em Helsínquia foi honesto e até corajoso. Com toda a alcateia a ladrar atrás, recusou-se justamente a apoiar as "descobertas" dos serviços secretos americanos, catorze anos depois de esses mesmos serviços terem "descoberto" que o Iraque estava cheio de armas de destruição maciça. O que mais podia fazer?

Mas para os principais meios de comunicação, a "história" na cimeira de Helsínquia, a única que queriam que contasse ao público, foi a reação de Trump às acusações de interferência russa na democracia americana. Foi eleito ou não por hackers russos? Tudo o que queriam era uma resposta sim ou não. A resposta não podia ser sim. Assim, puderam escrever os seus artigos com antecedência.

E a uma escalada da retórica, "O Presidente traiu o nosso grande país ao inimigo russo. Traição!"

Não compreendo nada em diplomacia, mas parece-me que se Trump foi a Helsínquia ver Putine, foi antes para tentar afastar a Rússia da China, numa versão inversa da estratégia de Kissinger, há 40 anos, para manter a China longe da Rússia, evitando assim uma aliança continental contra os Estados Unidos.

Mas depois da rasteira de Reagan a Gorbatchev que levou à queda da URSS, os Estados Unidos têm sido tão pouco fiáveis que os russos dificilmente abandonarão a sua aliança com a China por dois “kopeks”…mesmo com o “In God We Trust”

Anónimo disse...

Pelas razões expostas é que os nossos "democratas" ficaram muito felizes com o resultado das eleições americanas. Kiev, esse templo da nova democracia, é o local ideal para se reunirem progressistas.

O herói

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