domingo, outubro 18, 2020

A síndroma do fim de semana


Não sei quantos diplomatas, do meu tempo ou atuais, frequentam, para leitura, este espaço. Alguns serão e, dentre eles, pode haver os que em nada se reconheçam no que vou dizer. Mas vou arriscar.

Quase quatro décadas de carreira ensinaram-me que os fins de semana são o temível momento do “desastre”. Eu explico. Passada a metade da tarde das sextas-feiras, com os sábados como tempo glorioso, é o tempo para surgir o telefonema: “Olha lá! Conheces alguém na nossa embaixada na Sildávia? É que o meu cunhado foi assaltado, numa rua de Klow, a capital, perdeu o passaporte e não sabe o que há-de fazer.”

Pela minha experiência, raramente isto acontece numa terça ou numa quarta-feira. É quase sempre ao fim de semana.

É ainda nos fins de semana que a prima de um amigo fica sem dinheiro nas ruas de Szohôd, na Bordúria, e não sabe o que fazer. Era nos fins de semana que um ministro qualquer aterrava, num desvio por razões climáticas, com larga comitiva, numa cidade de província do país onde eu era embaixador e, de madrugada, tinha de lhe arranjar hotel adequado, com transporte, com um escasso obrigado no final. Era nos fins de semana que morria, subitamente, alguém “conhecido” e, de Lisboa, me pediam para “tratar do assunto”, numa ignota localidade onde só tinhamos um vago cônsul honorário. É nos fins de semana que há um acidente numa excursão algures, com “portugueses feridos” e uma mãe amiga de um amigo quer saber se um deles foi o filho.

Serei só eu que terei sofrido essa síndrome das ocorrências, em geral nos fins de semana? Por que é que me lembrei hoje disto? Ora essa! Porque estamos num fim de semana e passei horas ao telefone a tentar “safar” uma situação dessas. É que, ao contrário do que se pode julgar, um diplomata, para esse tipo de diligências, nunca se reforma. E tenho o gosto de registar que nunca - “repito, nunca”, como antigamente escrevíamos, para sublinhar, nos “telegramas” da carreira - apanhei, do outro lado da linha, um colega que, nem por também estar sossegado no seu fim de semana, deixou de tratar o assunto com empenhamento e simpatia.

4 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro Francisco,

Tantas vezes isso aconteceu na minha curta carreira! Os “ananáses” caiam sempre por volta das cinco da tarde de Sexta-Feira e, se o serviço estava calmo (situação que raramente acontecia), tratávamos de sair por essa hora. Não havia telemóveis e era difícil mandarem-nos de volta ao trabalho. Infelizmente neste caso, ainda éramos bastantes no Protocolo e na Embaixada em Paris e, por isso, um de nós acabava com o fim-de-semana interrompido ou estragado.

Estes “ananáses” foram inventado pelo Senhor Reynaldo Barreiros que, depois do Protocolo, continuou a apanhar com eles em Bruxelas por largos anos...

Um abraço

JPGarcia

Manuel disse...

A Bordúria é linda.
Há tantos anos que não vou lá. Tenho de revisitar.

Anónimo disse...

Eu felizmente tinha o telemóvel do rei Otokar e do Plxiglas
Fernando Neves

Lúcio Ferro disse...

Meu caro, tem de compreender que, depois da tempestade, vem a bonança e que é à segunda-feira que se dão as boas notícias. Lá porque às sextas se tenha de adiar fumar charutos de proveniência egípcia, faraónica, tal não significa, como sabe, que o céu lhe cairá em cima da cabeça; portanto, ao contrário de um determinado grupelho de casmurros aldeões, nada te a temer dos fim de semana. Encare da seguinte forma: são ossos do ofício e anos de deformação profissional, todos passamos por isso.
Atento, venerador e obrigado,
Lúcio

Agostinho Jardim Gonçalves

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