segunda-feira, outubro 26, 2020

Caetano e os portugueses no Brasil


Faz hoje quarenta anos que morreu, no Rio de Janeiro, Marcelo Caetano. Por vontade expressa em vida, os restos mortais do chefe do governo derrubado em 25 de abril de 1974 permanecem no Brasil.

Há pouco mais de quinze anos, assumi funções como embaixador português no Brasil. Algumas semanas passadas sobre o início das minhas funções, fui recebido numa sessão solene, como sempre acontece a todos os embaixadores portugueses, no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro. Fez as honras da casa o Dr. António Gomes da Costa, à época presidente daquela instituição.

O Real Gabinete é, muito provavelmente, a mais emblemática instituição da comunidade portuguesa e luso-brasileira. Outras importantes e prestigiadas estruturas com esta raiz existem no Brasil, mas o simbolismo do Real Gabinete é reconhecidamente único.

O Dr. António Gomes da Costa era um homem que eu sabia bastante conservador. Ele, aliás, não o escondia, nomeadamente nos artigos que regularmente publicava em “A Voz de Trás-os-Montes”, o jornal da minha terra. 

Posso imaginar que alguma desconfiança sobre o novo embaixador pudesse pairar no seu espírito. De facto, eu afirmava com orgulho ter estado “implicado” no 25 de Abril, sabendo nós que em importantes setores da comunidade lusíada no Brasil essa continua a não ser uma data demasiado reverenciada, e estou a ser irónico. 

Nas palavras que deixei nessa cerimónia, traduzindo exatamente o que pensava e sentia, afirmei, deliberadamente, estar ali como representante oficial do Estado - e não do governo de turno em Portugal -, logo, ao serviço de todos os portugueses residentes no Brasil, independentemente das respetivas ideias. Imagino que, para alguns ouvintes, o que disse tenha sido entendido como uma flor de retórica. Julgo que o saldo dos meus quatro anos no Brasil provou que estava a falar a sério.

Mas não é isso que hoje importa. No final da sessão, sob a sombra tutelar do busto de Salazar, que continua a decorar politicamente uma das salas do Real Gabinete, chamei o Dr. Gomes da Costa à parte e perguntei-lhe se ele sabia em que estado estava o túmulo do professor Marcelo Caetano. Notei a sua cara de surpresa. Mas continuei. Pretendia saber se estava cuidado, bem tratado, preservado. Sendo o lugar onde estavam os restos mortais de uma figura de Estado portuguesa, entendia que devia ser prestado um permanente cuidado ao local, pelo que lhe pedia o favor de tentar saber se isso estava assegurado. Se necessário, a embaixada tentaria providenciar meios para tal.

Recordo-me de António Gomes da Costa continuar um pouco espantado. A última coisa de que deveria estar à espera é que aquele diplomata, que ali havia chegado precedido de uma imagem de esquerda, mostrasse preocupação com o túmulo de um político que, com visível gosto, ajudara a derrubar. Mal ele sabia que eu, que não nutria a menor admiração política pela figura de Caetano, estava a ser muito sincero nos meus propósitos.

António Gomes da Costa disse-me ter conhecimento de que um grupo de nossos compatriotas residentes no Rio mantinha a sepultura a seu cargo. Mas que não deixaria de contactar-me, se acaso soubesse haver algum problema. Nunca me voltou a falar no assunto, pelo que presumi que a questão nunca se colocou.

Ao final da minha estada no Brasil, fiquei amigo de António Gomes da Costa. Trocámos cartas já depois desse período. Lamentei a sua morte, ocorrida há já algum tempo, num artigo publicado da imprensa portuguesa local. Era um patriota à sua maneira, que estava nos antípodas da minha, mas em quem reconheci a extrema dedicação que devotava ao Real Gabinete e às outras estruturas associativas a que estava ligado. Tenho por regra não medir as amizades pela bitola das ideias políticas. Este foi apenas mais um caso.

Neste que é o dia da morte de Marcelo Caetano, lembrei-me de contar este episódio.

7 comentários:

Unknown disse...

O Portugal de Abril tratou muito mal Marcelo Caetano, que não era nenhum ditador sanguinário. E isso vai ficar para a história, por muito que custe aos democratas do 25 de Abril e do post.

Luís Lavoura disse...

o busto de Salazar, que continua a decorar politicamente uma das salas do Real Gabinete

!!!

Esses tipos vivem no passado. Chamam à sua instituição "real" e ainda têm Salazar como patrono?!

Anónimo disse...

Considerar o Dr. Antonio Gomes da Costa somente de conservador é um favor que lhe estão a fazer. É que há conservadores que são democratas e o Dr. Gomes da Costa era um defensor indefectivel do salazarismo puro e duro. É óbvio que depois do 25 de Abril refreou um pouco a sua posição, mas esta sua pecha nunca o abandonou.

Aliàs, os "dirigentes" da comunidade portuguesa eram quase todos salazaristas. Para isso, bastou o regime distribuir comendas a rodos, Embevecidos com tal "honra" foi um fartar vilanagem no apoio ao governo salazarista.

Uma pequena faceta para ilustrar o ambiente do Rio De Janeiro relativamente ao Portugal democratico, nos anos idos de 1976. Vendo o "Expresso" à venda num quiosque de jornais de um patricio luso e querendo comprá-lo, diz-me ele "Ah, você é comunista!"

Confesso que não fiquei com muitas saudades da comunidade portuguesa do Brasil...

Luís Lavoura disse...

Eu em tempos li um livro intitulado "Burros sem rabo", que era (um romance) sobre refugiados políticos portugueses no Brasil anterior a 1974, quero dizer, pessoas de esquerda. Ao que parece, havia muitas.
Portanto, as tendências políticas dos portugueses no Brasil não serão todas como as que o Francisco retrata neste post.

Anónimo disse...

Unknown disse...
O Portugal de Abril tratou muito mal Marcelo Caetano, que não era nenhum ditador sanguinário. E isso vai ficar para a história, por muito que custe aos democratas do 25 de Abril e do post.

26 de outubro de 2020 às 23:37"

Tratou mal? O homem que manteve a pide, a repressão, a tortura, Peniche, a falta de liberdades e manteve a minha aldeia sem água e sem luz, a maior taxa de analfabetismo da Europa e e a maior taxa de mortalidade infantil da Europa, e que teve escolta de luxo para o Brasil, sendo tratado por sua excelência, sem um inquérito, quanto mais um julgamento? Homem, somos, ou não somos, um país fixe e farsolas?

Anónimo disse...

Caro Francisco,

Também fiquei amigo de António Gomes da Costa, pouco depois de com ele ter iniciado grandes projectos culturais no Rio de Janeiro. Era sem dúvida nenhuma um Patriota, não só pelas funções que exerceu, como por aquilo que deixou fazer no nosso Real Gabinete, o que permitiu que este ocupasse novamente o lugar de destaque que havia tido no reforço das relações culturais luso-brasileiras. O “Real” tornou-se um espaço de diálogo entre as Culturas sul-americanas, europeias e africanas, sob a impulsão da vice-presidente e responsável do seu polo de pesquisa, a minha querida Amiga Gilda Santos. Nós últimos trinta anos, compraram-se dois prédios anexos e fizeram-se obras no edifício principal. O “Real” está para ficar e isso se deve a António Gomes da Costa. Nascemos no mesmo dia e mês, faz-me muita falta e nunca falámos de política.

Um abraço

JPGarcia

P.S.: Não vou lá há muito tempo mas parece-me que não há ali um busto mas sim um retrato de Salazar. Será possível confirmar-se?

Anónimo disse...

JPGarcia

Eu acho que se está a fazer uma confusão. Uma coisa são as simpatias pessoais pela pessoa, amizades, etc. Eu, com os meus amigos, também sou cego quanto a ideologias. Não quero saber se são de esquerda ou direita e tenho amigos de todos os cantos. É um não assunto, ponto final.
Outra coisa, bem diferente, são os juízos que fazemos sobre a ação de pessoas com cargos públicos ou com visibilidade pública, ainda por cima um suposto líder e representante da comunidade portuguesa. Quanto a isso, que raio de bem fez o António Gomes da Costa à imagem de Portugal no Brasil? Era do interesse do país ter como representante da sua cultura, ainda que informal, e representante da sua comunidade, alguém que professava admiração pelo Salazar e manteve o seu retrato em tão vetustas e prestigiadas instalações? Que diabo…. Estarei a ver mal alguma coisa?

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o sempre a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma extraor...