É sempre depois de jantar, antes da recolha pública do lixo. Nunca o vi montado na bicicleta que encosta à parede, de cujo guiador pendem dois sacos de plástico, enquanto, com a ajuda de uma lanterna, espiolha o caixote que, todas as noites, eu e os meus vizinhos colocamos na rua, à porta do prédio onde vivo. Já ocorreu as vezes suficientes para perceber que é um rotina antiga, embora por ali não diária.
Na penumbra em que tudo ocorre, muito pela sua postura física inclinada, mas também por algum assumido embaraço da minha parte, nunca lhe olhei bem a cara de frente. Terá 50 e tal anos, veste-se como qualquer de nós e fico com a sensação de que, se o encontrasse em outra circunstância, num escritório ou numa sala de espera, nunca o reconheceria. Ele opta por não nos fixar, evitando qualquer interlocução, nem que seja para um simples boa-noite, que já tentei sem sucesso.
Quando ontem cheguei à porta da rua, estava na minha frente, na sua tarefa habitual, apressada, com o caixote a dificultar a minha saída. Disse-lhe: “Dá-me licença?”. Proferi a frase com o maior cuidado, tentando que não parecesse impositiva, nem que dela soasse minimamente qualquer réstia de ironia, por ter de pedir-lhe espaço para poder sair. Ele puxou o caixote uns centímetros para o lado e, sem conferir a menor expressão naquilo que disse, respondeu, secamente: “Passe lá!” E continuou na sua tarefa.
Algumas vezes em que, ao final do dia, vou colocar o lixo naquele caixote, dei comigo a pensar: como é que alguém tem a coragem física para ir vasculhar nos restos de comida que deixamos nos sacos, no pão que já tinha bolor, nas maças que afinal estavam podres, nas cascas e nos restos de tudo o que ficou do nosso dia que terminou? Como é que alguém, contra o mínimo de regras de higiene, se atreve a escolher o que nos sobejou por imprestável, em condições críticas de risco sanitário? Como? Por necessidade.
Custa-me a ideia de que, meio século passado sobre Revolução de Abril haja gente que não tenha escapado a este destino, ou que pode, a qualquer momento, cair nele. Aquele “passe lá!”, seco e indiferente, marcou-me. É que eu passei e ele ficou por ali.
2 comentários:
Ainda sem comentários? Franchement.
Imagino bem quanto o perturba constatar que, passadas que estão algumas décadas desde a Revolução dos Cravos, ainda haja casos como o que tão bem relata e, infelizmente, mais comum do que se poderá pensar. Um problema social? Sim. Mas também um problema de ausência de saúde mental, esta tão desprezada pelo nosso SNS. Gosto muito de ler as suas crónicas, sempre acutilantes. Meus cumprimentos.
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