Esta guerra já não é apenas entre a Rússia e a Ucrânia. É cada vez maior o envolvimento, através de ajuda militar e de sanções, de muitos países que passaram a ser parte, embora por ora não beligerante, no conflito. Em moldes todavia nunca comparáveis ao sofrimento da população da Ucrânia, as respetivas sociedades estão a começar a sentir as consequências do prolongamento da guerra.
Parece não ter sentido que os países envolvidos no apoio à Ucrânia fiquem a aguardar o resultado, cada vez mais duvidoso, de um processo negocial, aparentemente suspenso, entre Kiev e Moscovo. Há dimensões do conflito, como fica evidente na questão das armas nucleares, que vão muito para além da situação concreta da Ucrânia, embora com ela interligada.
António Guterres disse hoje que não parece haver condições para um cessar-fogo bilateral. Porquê? Porque entende que a Rússia pretende estabilizar alguns dos seus ganhos e não completou o cerco de isolamento que pretende fazer à Ucrânia pelo sul. E também porque o secretário-geral da ONU pressente que a Ucrânia, forte do apoio militar crescente com que conta reverter a sorte do conflito, avalia que as próximas semanas lhe podem trazer vantagens. Um dos dois contendores está enganado na sorte que o relógio lhe pode trazer, mas só no final se saberá qual.
É imperioso sair do impasse da situação no terreno. Os países ocidentais, mantendo-se sempre firmes no apoio que dão à Ucrânia - essa é, alías, a expressão essencial do seu poder neste contexto - deveriam abrir uma frente negocial direta com Moscovo. Um conflito que pode escalar para proporções (in)imagináveis não pode ficar dependente exclusivamente dos eventuais resultados de uma diplomacia ucraniana acossada pela agressão e pela expectativa ansiosa da evolução da situação militar no seu terreno.
O envolvimento negocial ocidental deveria, como é óbvio, associar plenamente a Ucrânia e ter no centro os seus legítimos interesses de soberania, mas igualmente não poderia deixar de ponderar as consequências económicas, e em breve também sócio-políticas, decorrentes do efeito “boomerang” das sanções e dos previsíveis problemas decorrentes da situação dos muitos refugiados que não poderão ainda regressar à sua terra . Há que ter consciência, e aparentemente ela parece não existir, de que o momento ótimo de consenso entre os aliados vai começar a diluir-se, por virtude dos efeitos do inevitável desgaste de vontade, em vários paises europeus.
O mundo que Vladimir Putin conhece é o da força. Ora o ocidente tem hoje, nas suas mãos, dois instrumentos negociais que podem ser decisivos para qualquer compromisso: a sua capacidade e determinação em poder continuar a armar a Ucrânia, colocando-a em condições de ir “empatando” a guerra, e o fortíssimo pacote de sanções, que, recordo, foi posto em prática por virtude da agressão russa, pelo que parte do qual pode ser usado como moeda de troca na hipótese de um eventual compromisso.
Macron mantém o número de telefone de Moscovo. Draghi deu sinais, em Washington, de que favorece um caminho de um diálogo exigente, sempre sob uma posição comum. Berlim, nesta sua fase hesitante, conta bastante pouco para ousadias. O jingoísmo descabelado de Boris Johnson ecoará o que Washington ditar. É nos Estados Unidos que reside a chave de um eventual novo tempo neste processo, pelo que compete aos europeus lembrar-lhes que é só deste lado do Atlântico que, por agora, continua a guerra.
A História mostra que, para pôr termo a um conflito, ou se derrota totalmente o inimigo (e a Rússia não é derrotável, enquanto potência, como sabe quem sabe destas coisas) ou se fala com ele para ir aferindo das hipóteses de um acordo. Pensar que o tempo corre sempre a nosso favor é uma ingenuidade perigosa.
7 comentários:
Creio, Senhor Embaixador, que o plano foi estudado duma maneira que não deixa lugar para a diplomacia.
Nesse cenário, a diplomacia dos EUA foi desdobrada em três etapas (pendente de uma quarta): a retirada das forças americanas do Afeganistão, o complô organizado para provocar a intervenção armada russa na Ucrânia (Maidan) e a mudança de alianças no Oriente Médio, dos quais os Acordos de Abraham anunciam a tendência.
Objectivos muito específicos - Recuperar o controle hegemónico de uma Europa permanentemente enfraquecida em termos de energia, defesa, finança internacional; neste contexto, fazer da Alemanha e do germanismo anti-eslavo a nova referência militar europeia. – O que não é difícil para Frau Leyen…
Enfraquecer a Rússia ao extremo, organizar um "Afeganistão-bis" em terras ucranianas e, como consequência, instalar um "Yeltsin-bis" no Kremlin –
Reforçar fortemente o comércio militar e a sua associação com a mídia (o novo complexo militar-mídia-
Tudo isso, antes do alvo chinês (a quarta partida).
Quanto mais leio as declarações tonitruantes de Biden e Blinken, mais me convenço que as linhas principais dessa estratégia foram devidamente planejadas.
O que talvez os seus mentores não esperavam foi uma resposta russa tão brutal; em qualquer caso, não deste tamanho.
Essa resposta precipitou o momento dos planos dos EUA. O apoio à Ucrânia, à sua integridade territorial, à sua política de alianças, tornou-se um assunto menor. O componente político-diplomático da própria guerra tornou-se obsoleto. Quando Biden chama Putin de "criminoso de guerra" ou "bandido", não é uma mudança de humor; é o fim da inadmissibilidade de qualquer negociação, de qualquer discussão. Que a Rússia sangre é a (única) prioridade. O que fez reagir Macron, que não é em favor da humilhação…da Rússia. Porque a força de dissuasão francesa não seria suficiente para parar o dilúvio nuclear…
Outra guerra não menos importante se dá na comunicação, onde o ex-comediante Zelinsky, eleito num programa de pacificação, se destaca e se tornou um falcão entre os falcões do projecto de perpetuar a guerra e, se possível, prolongá-la.
Por isso apoio a sugestão de Lucio Ferro para o pôr de férias, o mais rapidamente possível. Mas não sei se os vendedores de armas estariam de acordo…
Muito interessante oartigo no Wall Street Journal informando de uma proposta feita pelo alemão Scholz a Zelensky, "uma última tentativa", em 19 de Fevereiro, poucos dias antes da entrada das tropas russas na Ucrânia. O alemão teria dito a Zelensky que a Ucrânia deveria desistir de suas aspirações à NATO e declarar sua neutralidade no contexto de uma convenção sobre segurança europeia garantida conjuntamente pelos Estados Unidos e pela Rússia.
Pedido que Zelensky teria recusado, argumentando que “Putin não é confiável e que a maioria dos ucranianos quer ingressar na OTAN”. Essa revelação é preciosa para avaliar a personalidade do presidente ucraniano, a sua capacidade de decidir sozinho (ao contrário da ideia de que estaria sujeito a influências...) e a sua responsabilidade no drama pelo qual o seu país está passando.
É nos Estados Unidos que reside a chave
Exatamente.
Bem pode Macron e/ou a Europa quererem negociar. Mas Biden (e o Congresso dos EUA) não quer. E, sem a vontade de Biden, nada feito.
O "Ocidente" não existe. Existem os EUA (e o seu 51º Estado deste lado do Atlântico) e a Europa. (E mesmo na Europa, há diferentes vontades.) E eles estão de candeias às avessas.
Resta saber o que é que o Ocidente pode dar à Rússia que não implique a violação da soberania ucraniana. Putin queixou-se a Macron não apenas da entrega de armas pelo Ocidente à Ucrânia, como também de que o dito Ocidente não estaria a usar da sua influência para que a Ucrânia fizesse a Paz com a Rússia (leia-se, Putin considera que o Governo ucraniano é um mero títere ocidental e é permeável à pressão que o mesmo Ocidente exercer sobre ele).
Mas se se trata de um acordo de segurança amplo, relativo ao posicionamento de forças militares e mísseis na Europa de Leste após um acordo de paz russo-ucraniano, então deve exigir-se reciprocidade à Rússia. O mínimo que é necessário é que a Rússia saia desta sua aventura com um bom olho negro, porque de outro modo, amanhã fará o mesmo noutro País qualquer, a sua chantagem terá resultado.
E isto irá fazer-se no momento em que a Finlândia e a Suécia vão aderir à NATO (e por boas razões)?
Que espécie de confiança resta ainda entre as partes, Sr. Embaixador?
Senhor Embaixador,
A sua visão de que terá de haver uma saída negocial directa entre Ocidente e `
Rússia parece ser atractiva. Ao contrário de outros correspondentes, não me parecem ser os planos de Biden o impedimento. Toda a visão de Putin aponta para a vontade de abocanhar um bom pedaço da Ucrânia e de lhe cortar a saída para o Mar Negro. Por isso, embora a Rússia não seja uma potência derrotável militarmente, terá de se encontrar forma de lhe tornar o prolongamento da guerra insuportável e, então, tentar compor os estragos que esta guerra nos trouxe, incluindo aqui uma coisa, que é lembrada por um dos correspondente, que teria sido a proposta do chanceler alemão.
José Figueiredo
Até que enfim leio algo que vai contra a corrente actual, para quem vê os noticiários do País, sobre a invasão da Ucrânia. Basta ver e ouvir os comentários aos noticiários de hoje com o assunto da adesão da Finlândia à NATO.
Só espero que não o venham acusar de "Putinismo", pois está na moda principalmente para quem analisa o problema mais a fundo.
Ninguém vai ficar a ganhar com o escalar da guerra, e muito menos a Russia e a Europa no seu todo. Infelizmente para os Europeus estamos no meio, e sempre perto da tragédia da guerra.
Tudo de bom para si.
Francamente, estranho como um diplomata com a experiência e conhecimentos como é o caso de Francisco Seixas da Costa, espere dois meses e meio para vir dizer que a guerra não é apenas entre a Rússia e a Ucrânia. Os factos, confirmados por insuspeitos analistas do chamado Ocidente (incluindo elementos dos serviços de inteligência e do próprio Pentágono), praticamente desde o início mostram que se trata de uma guerra, por procuração, entre os EUA e a Rússia, tendo em mira de fundo a China. E que venha só agora dizer “É nos Estados Unidos que reside a chave de um eventual novo tempo neste processo, pelo que compete aos europeus lembrar-lhes que é só deste lado do Atlântico que, por agora, continua a guerra“, mostra à evidência o papel de acólitos dos EUA que os ditos europeus ocidentais têm representado. E quanto ao “fortíssimo pacote de sanções que foi posto em prática”, muitos dos analistas já assinalaram o efeito de boomerang que terá na Europa e o afastamento desse pacote por parte dos países que constituem mais de 80% da população mundial. Muito provavelmente as sanções serão um flop e os países detentores de divisas como dólares, euros, ienes e outras, procurarão aliviar o seu peso e trocá-las por ativos duros, isto é, respaldados por matérias-primas ou por ouro.
À luz de hoje é perfeitamente claro que os que vão sofrer, e duramente, com este conflito, serão, para além obviamente dos ucranianos, os restantes europeus. Que pagarão com língua de palmo as consequências desta guerra. E essa de que “O mundo que Vladimir Putin conhece é o da força”, só nos pode levar a perguntarmo-nos que mundo é aquele que os EUA e a NATO conhecem…E as ações dos próprios países da União Europeia em nada apontam para caminhos de diálogo e negociação. Basta ver as intenções que os media anunciam quanto a uma possível adesão da Finlândia (e bem assim da Suécia) à NATO.
Francisco Tavares
Perigosissíma.
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