sábado, maio 14, 2022

João Rendeiro

 

Ao longo dos anos, cruzei-me algumas vezes com João Rendeiro, em diversas circunstâncias. Transmitia auto-suficiência, uma quase condescendência para com os outros, numa afirmação agressiva da sua inegável inteligência. Talvez por isso, nunca projetou em mim uma imagem simpática, e acho também que ele nunca se esforçou muito por isso - embora admita que possa ser eu quem tenha visto mal como as coisas se passaram. Hoje, confesso, tenho pena de João Rendeiro. Tenho pena de alguém que concluiu ser incapaz de enfrentar aquilo que a vida lhe trouxe, como decorrência das suas ações. Contrariamente a muitas outras pessoas, ele tinha sabido conquistar, com o seu trabalho e inegável talento, o direito a ter várias e excelentes opções na vida. E, no entanto, nas escolhas que eram decisivas, fez exatamente as que estavam erradas. Logo ele, que era óbvio admirador da sua própria racionalidade e perspicácia, afinal qualidades que viriam a ser, em absoluto, desmentidas pelo seu comportamento. Não há hoje espaço para nenhum relativizador “isto ainda está mal contado”, no que respeita à sua atividade delituosa, que se constatou conflitual com a ordem da sociedade em que ele pretendia ser reconhecido pelos seus méritos. Rendeiro foi amplamente culpado, como a justiça provou à saciedade, e, no entanto, teimava em agir em negação, como se o não fosse. Isso era chocante e chegava a ser ofensivo, em especial para quantos por ele foram lesados. João Rendeiro pareceu querer manter essa atitude até ao fim, mas, a certo ponto, terá perdido a coragem e decidiu apressar esse mesmo fim. Ou, orgulhoso como era, decidiu ser ele próprio a determiná-lo, num gesto derradeiro de suprema soberba. Afinal, de banal fraqueza humana.

8 comentários:

MM - Lisboa disse...

Acho que se tratou de uma situação que não é tão rara, a do céebro constuir uma ideia/imagem de si próprio muitas vezes diferente da realidade vista pelos outros, poque conhece toda a sua história de vida, e leva em consideração muitas das coisas boas que fez (e todas as pessoas as têm) e muitas das coisas difíceis pelas quais passou (e ele veio de baixo e subiu a pulso, devia tè-las também) e considera isso como atenuantes do que de menos bom possa ter feito e auto perdoa-se, seguindo em frente e não entende que há coisas que não podem ser relevadas, pela mossa que fizeram nos outros. Quando finalmente chega a visão no espelho, sem máscaras, a realidade pode ser insuportável - a psicologia explica isso. Pior, certamente continuarão a estar os lesados, que cada vez veem mais longe de ser resolvido o seu problema!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Em contraste com essa incapacidade em "ser", temos a sensibilidade dos Grandes plasmada nestas palavras...E nem seria de esperar outra coisa.

José Lopes disse...

Bom o comentário de MM.
A incapacidade de reconhecer os erros em que incorreu, to say the least, que lesaram tantos, acontece igualmente com outros "banqueiros" (Salgado, Oliveira e Costa) mesmo depois de "amplamente provados na justiça" e que configuram à luz da lei crimes, parece ser um fenómeno tipicamente português.
Ou não fizeram nada de errado ou, quando impossível negar a realidade, a culpa é do outro.
Veja-se o caso de Rodrigo Rato, também condenado a prisão, a que não fugiu e que reconheceu a sua culpa.
O Madoff é diferente, fez um acordo com a justiça americana, declarou-se culpado a troco de deixarem a família em paz. De pouco lhe valeu, pois um filho suicidou-se.

Lúcio Ferro disse...

Parece-me que nunca saberemos o que causou esta morte. Pode ter-se suicidado, como o senhor Embaixador dá a entender, ou pode ter sido assassinado. A propósito, recordo que logo quando foi preso a sua advogada pedira a transferência para uma prisão mais "segura", e que a justiça sul-africana não concordou. Enfim, também gostaria de saber quem mais participou das golpadas do banco e isso, agora, kaput.

Jaime Santos disse...

Não me parece que fazer um julgamento de alguém que morreu nestas circunstâncias sirva de alguma coisa.

Não sabemos o estado psicológico de Rendeiro, mas normalmente só alguém profundamente fragilizado acaba com a sua própria vida.

Seja como for, a morte de alguém em tais circunstâncias trágicas é sempre de lamentar...

disse...

A humildade é sempre a estratégia mais segura. Não nos leva a becos sem saída.

Flor disse...

Viveu como quis e morreu quando quis."Liberdade ou morte", não tinha escolha.
RIP

AV disse...

Inteiramente de acordo com Jaime Santos. MRS teve as palavras certas: é de lamentar a morte de alguém nestas circunstâncias e não há mais nada a dizer.

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