A revista "Visão" lembra, no seu número de hoje, que o Maio 68 parou a França. E traz uma página com uma conhecida fotografia com os realizadores que, em Cannes, no dia 10 desse mês único, anunciaram também terem entrado em greve: por ali se veem Claude Lelouche, Jean-Luc Godard, François Truffaut, Louis Malle, Roman Polansky e Jean-Claude Carrière.
Apenas uma nota, que a revista não refere (não podia referir tudo, claro): a cara que se vê do lado direito, a meio da fotografia, olhando em direção ao público, é o clássico ator que François Truffaut utilizou em vários dos seus filmes, Jean-Pierre Léaud. Nas películas de Truffaut, Léaud é "Antoine Doinel". Foi descoberto em 1958, entre seis dezenas de miúdos que apareceram na resposta a um anúncio colocado pelo realizador no “France-Soir”.
Quem gosta dos filmes de Truffaut - e eu gosto imenso e julgo ter visto todos - guardou para sempre no seu imaginário a figura de “Antoine Doinel”. Numa inesquecível série de cinco filmes, iniciada com os "Quatre-cents coups", "Doinel" foi crescendo (fisicamente, mesmo, embora não muito: tem a minha altura) aos nossos olhos, a partir dos 15 anos, evoluindo num modelo que, contudo, fixou algumas linhas comportamentais comuns. Sempre agitado, com um rosto de gravidade assustada, misto de timidez e indecisão, mas capaz de rasgos atrevidos de surpresa, "Doinel" foi uma figura, em parte autobiográfica, que Truffaut utilizou, com o seu imenso génio, para nos retratar uma França em mudança acelerada de costumes.
Uma vez, em 1992, numa ida em turismo a Nova Iorque, aconteceu-me ficar num mesa ao lado daquela onde estava Léaud. Foi no "Michael's Pub", onde ambos, e muita mais gente, tínhamos ido ver Woody Allen tocar clarinete, nessas celebradas segundas-feiras (Allen mudou-se depois para o Carlyle).
Como tínhamos um sobrinho que estava então a estudar cinema, a minha mulher insistiu em que eu fosse pedir-lhe um autógrafo. Em toda a minha vida, fui sempre incapaz de uma iniciativa desse género (nem nos lançamentos de livros peço dedicatórias!), pelo que lhe deleguei esse encargo. Mas havia um problema, que nos era comum: não nos conseguíamos lembrar-me do nome do ator, só nos vindo à memória "Antoine Doinel". Hoje, com o “tio” Google, tudo seria mais fácil. Mas ela lá foi, contornando o embaraço. Tenho de perguntar ao meu sobrinho se guarda o autógrafo.
Jean-Pierre Léaud teve uma longa carreira no cinema francês. Para além de Truffaut, foi utilizado por Jean-Luc Godard, tendo, ele próprio, dirigido alguns filmes. A meu ver - mas esta é uma opinião que vale o que vale - nunca foi um ator excecional e jamais ultrapassou uma aceitável mediania. Porém, há que reconhecer nele um dos nomes emblemáticos da "Nouvelle Vague" francesa, em cuja história tem um indiscutível lugar.
Há tempos, numa madrugada televisiva, surgiu-me uma comédia romântica de 1996, intitulada "Pour rir!", na qual Léaud contracena com Ornela Mutti. Por uma imensa curiosidade, muito centrada na evolução artística de Léaud, vi o filme até ao fim. A opção iria revelar-se quase masoquista: tive de suportar a inenarrável prestação de Mutti. Machistamente, devo dizer que ela perdeu muitos dos atributos que, durante anos, nos faziam esquecer a sua mediocridade como atriz. Enfim, não ganhei muito para a minha cultura cinematográfica. Para o que aqui me interessa, foi quase patético ver um Léaud de 60 anos assumir os trejeitos e a "coreografia" típicos de um "Doinel" adolescente.
Há atores que guardam uma imagem que acaba por se impor nas diferentes figuras que interpretam, por mais diversas que estas sejam. São "characters" - e isso pode ser uma coisa positiva ou tornar-se pesada e desinteressante, particularmente quando os filmes e as personagens têm de ser desenhados em função dessas suas conhecidas peculiaridades. Foi o que me pareceu, neste triste, embora "Pour rir!", com Jean-Pierre Léaud.
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