Cheguei a Angola, para aí ir ocupar um cargo na nossa embaixada, no dia 27 de maio de 1982. Faz hoje quarenta anos, caramba!
Sem que, no momento, me tivesse apercebido da coincidência, passavam, precisamente nesse dia em que aterrei no Aeroporto 4 de Fevereiro, cinco anos sobre “o 27 de maio”.
O “27 de maio” havia sido o dia de 1977 em que um setor político radical procurou levar a cabo, pela força, uma alteração na relação de forças no seio do MPLA e do poder político no país. A reação policial e militar a essa tentativa, com notória intervenção externa, revelou-se de uma extrema violência. Esse dia iniciou um ciclo de luta política que abalou toda a sociedade angolana e se prolongou por vários anos. num registo de imenso arbítrio e crueldade. Muitos milhares de mortos e prisões foram o saldo desse confronto.
Nos anos que permaneci em Luanda, fui ouvindo, a espaços, sempre num sussurro de extrema prudência, relatos esparsos desses dias em que, para sempre, se quebrou o encanto em torno de um certo sonho coletivo que vinha de antes da independência. Raramente encontrei por ali alguém disposto a abrir-se comigo, de forma transparente, sobre esses momentos, qualquer que houvesse sido o lado da barricada em que se tivesse situado nesses anos, afinal então não tão distantes como isso.
Na altura, havia ficado com a sensação de que os angolanos faziam um esforço deliberado para promover o esquecimento sobre esse período, como se as feridas acabassem por sarar melhor se se não olhasse para elas. Não era verdade. Muito do que, entretanto, se publicou sobre o “27 de maio” provou que nada substitui o trabalho em torno da verdade, qualquer que seja o preço que isso possa ainda ter e por muito que essa mesma verdade possa doer a alguns.
2 comentários:
Vi ontem, na RTP2, um excepcional filme documentário, realizado pela Margarida Cardoso, sobre os eventos do 27 de Maio e centrado na Sita Valle.
Ainda não recuperei do profundo choque que as imagens e, sobretudo, os testemunhos de muitos dos envolvidos prestaram no filme. O visionamento do filme é perturbador e chega a ser doloroso, fisicamente doloroso.
O 27 de Maio de 1977 em Angola recorde-se foi a purga à maneira estalinista levada a cabo pelo MPLA de Agostinho Neto, em que mais de 30.000 a 60.000 angolanos, na sua maioria intelectuais jovens foram brutalmente assassinados sem direito a qualquer tipo de defesa, no que é considerado o maior massacre ocorrido em África no séc. XX.
Como dizem vários intelectuais angolanos que o viveram (William Tonet, Carlos Pacheco, Edgar Valles e outros) não basta ao actual Presidente João Lourenço pedir perdão e a entrega dos restos mortais de algumas das vítimas às suas famílias, para dar por encerrado este capítulo da história recente de Angola.
Entendem estes que é necessário ir mais longe, exigindo a luta pela verdade histórica, a identificação dos responsáveis e explicitamente a responsabilidade do MPLA e do governo de Agostinho Neto numa acção dantesca só vista em regimes políticos sanguinários, no decurso da qual se institucionalizaram as práticas mais abjectas e cruéis: prisões arbitrárias, presos nas múltiplas cadeias, fuzilamentos diários, enterrados vivos, jogados de avião ou lançados ao mar.
Por último, e porque não há rasto de muitos dos milhares de mortos e não é possível a entrega dos seus restos mortais aos familiares, uma efectiva homenagem a todas as vítimas das barbaridades de 1977-1979.
PS: Sorte teve o actual Ministro da Economia e do Mar, António Costa e Silva, que tendo sido detido, sem acusação nem julgamento, e torturado durante três anos, na purga do 27 de Maio de 1977, ainda hoje não sabe dizer porque na prisão de São Paulo, em Luanda, diante de um pelotão de fuzilamento, encostado à parede, com os olhos vendados, a arma não disparou.
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