Há uma imagem que me marcou. Um final de tarde, ou uma noite, em frente ao edifício do governo civil de Vila Real, com gente a discursar da varanda central. Eu tinha pouco menos de 13 anos e recordo-me de que fui ali com o meu pai. Era uma manifestação de repúdio pela tomada da então chamada Índia portuguesa, pelas tropas invasoras da União Indiana, ocorrida dias antes. Os discursos eram inflamados e, de entre os oradores, recordo-me do Dr. Carlos Sanches, professor liceal e, ao que creio, presidente da Junta Distrital. O meu pai também ali estava no meio da multidão, solidário com a forte rejeição do país perante a ação violenta que “nos tinha roubado” o Estado da Índia.
Poucos meses eram passados, ainda nesse mesmo ano de 1961, e guardo a imagem de ter visto marchar pela cidade, desde o Regimento de Infantaria 13 até à estação de caminho de ferro, o primeiro contingente que dali partia para Angola, em “missão de soberania”, como então se dizia. Tinham uma farda de caqui bege, com um boné de pala da mesma cor. A cidade aplaudia-os. Provavelmente, também o fiz.
O país tinha ficado visivelmente chocado com as imagens, abundantemente mostradas, de corpos de “brancos, pretos e mulatos” chacinados à catana, no norte de Angola, durante os ataques da UPA. Pela rádio, diariamente, chegavam-nos relatos, em tom épico de reportagem patriótica, através de uma voz inconfundível que descrevia essas atrocidades. “De Angola, Ferreira da Costa”, era assim que terminavam essas reportagens na Emissora Nacional.
Em minha casa havia unanimidade: desde o meu avô, que eu sentia como salazarista, de quem fora “condiscípulo” em Coimbra, até ao meu pai e aos seus cunhados, filhos desse avô, que detestavam o ditador. “Angola é nossa” era então a palavra de ordem indiscutível.
Faço estas notas para sublinhar algo que, às vezes, tem sido esquecido: nesse tempo, podia ser-se ferozmente anti-salazarista e, no entanto, ser-se a favor da manutenção das “possessões portuguesas no Ultramar “.
Era o caso do meu pai, apoiante de Humberto Delgado, que ficou deliciado com a tomada do Santa Maria por Henrique Galvão, que teve forte pena de que Botelho Moniz não tivesse conseguido derrubar Salazar, que viria a lastimar que o posterior “golpe de Beja” se tivesse gorado. E que, no entanto, ficou indignado com a invasão do Estado da Índia e apoiou a reação militar portuguesa às “ações terroristas” em Angola.
Passados que foram esses primeiros tempos de choque, que foi muito genuíno, a captação emocional do país em favor da “guerra do Ultramar” começou a declinar. Não me recordo de mais nenhum ato de empenhamento “ultramarinista” significativo, lá por Vila Real, embora os deva ter havido, promovidos pelos apoiantes do regime. O início da mobilização militar dos civis, num ambiente político onde a aceitação da exaltação nacionalista já tinha tido melhores dias, viria a tornar a causa da guerra pouco popular em Portugal.
Mas voltemos um pouco atrás. Como é sabido, o republicanismo português havia sido, desde a sua origem, fortemente “colonialista”, tendo a palavra, aliás, uma conotação muito positiva no seu discurso.
Da crise do Ultimatum à entrada na Grande Guerra, a questão do “Portugal pluricontinental”, por muito tempo, esteve no centro da doutrina republicana e, depois do 28 de Maio de 1926, nunca dividiu as forças oposicionistas da linha que prevalecia na “situação” consagrada pela ditadura.
Vale a pena lembrar que, no final dos anos 40, a unidade das forças oposicionistas fez-se à volta de Norton de Matos, um general que se orgulhava de ser um criativo “colonialista”, tendo no seu orgulhoso currículo o governo de Angola. E, menos de uma década depois, essa mesma oposição juntou-se para apoiar Humberto Delgado, um general dissidente do salazarismo, que havia defendido desde a primeira hora, e a quem, à época, ninguém tinha ouvido uma palavra de contestação da política colonial do regime.
Só nessa segunda metade dos anos 50, com o surto de independências de antigas colónias europeias e, em especial, depois da Conferência de Bandung, em 1955, que se reuniu em torno dos novos países descolonizados, o PCP, seguindo a linha da URSS, passou a defender o direito à independência dos povos coloniais. Seria, aliás, a primeira força da oposição a fazê-lo. Porém, logo a partir de então, a linha anti-colonial tornou-se rapidamente maioritária no seio da oposição à ditadura, em especial na extrema-esquerda de orientação pró-chinesa, alargando-se depois aos meios católicos radicais, onde começou a germinar um discurso pela “paz” que viria a tornar-se muito popular.
Lembro-me, contudo, que, na Comissão Democrática Eleitoral (CDE) de Vila Real, ainda em 1969, que tinha uma natureza “catch all” de todos quantos se opunham ao Estado Novo, o tema era ainda bastante divisivo. O facto de um dos nossos candidatos ter afirmado que queria “manter o Ultramar português”, num discurso num comício, levou-me, uma noite, a provocar uma “crise” na CDE de Vila Real.
Quase até ao 25 de Abril, subsistiu, na vida política portuguesa, um setor oposicionista mais conservador, em torno do chamado Diretório da Ação Democrato-Social, que sempre se recusou a subscrever a postura anti-colonialista do resto da oposição. Após o 25 de abril, esse setor viria a aderir, quase em bloco, ao então PPD.
Apeteceu-me deixar hoje aqui esta nota memorialística dos tempos em que, também eu, cantei o “Angola é nossa!” Ninguém é perfeito!