terça-feira, outubro 22, 2024

Agora, aguentem-se!

Os governos não são parvos, mas, às vezes, parecem sê-lo. (Não, não vou falar de política interna). 

Anda lá por fora meio mundo excitado com a movimentação dos BRICS. Relembro que tudo começou quando um fulano da Goldman Sachs juntou as primeiras letras do Brasil, Rússia, Índia e China, potências ditas emergentes, que se encontravam em reuniões de diálogo e de muito escassa cooperação, e crismou o acrónimo BRIC. (Um acrónimo, lembro, é uma sigla que se consegue ler como uma palavra). O "S" que então faltava surgiu quando a África do Sul ("South Africa") se juntou aos restantes.

Os BRICS nunca foram grande coisa. A sua identidade vinha mais do contraste com o "primeiro mundo", menos por um qualquer cimento estratégico próprio. Os BRICS nunca foram uma espécie de "G7 dos pobres", muito longe disso. 

Curiosamente, foi o mundo desenvolvido que deu alguma força aos BRICS. Ao ter impulsionado, na crise financeira de 2008, essencialmente por razões de interesse próprio, a atividade até então discreta do G20, pensando que conseguia trazer para uma governança por ele tutelada os principais atores económicos do mundo, o G7 acabou por alargar o diálogo entre muitos desses Estados. No final, não seria o G7 a satelitizar os membros (não ocidentais) do G20, mas seriam os BRICS a cooptar alguns dentre eles para o seu seio, como recentemente se viu.

Mas que não haja ilusões: a identidade dos BRICS nunca igualará a do G7. É fácil explicar porquê.

A China, a que a guerra na Ucrânia obrigou a acelerar a sua dinâmica de ambição como potência, mostra uma clara intenção de utilizar os BRICS como plataforma para tal. Mas, ao contrário do G7, onde a preeminência dos Estados Unidos é não só tolerada como aceite como uma fatalidade, a China não consegue garantir no seio dos BRICS um papel de liderança indisputada. A Índia, que está no grupo por necessidade de afirmação própria, nunca irá permitir que isso aconteça. 

No grupo BRICS original, a África do Sul era, manifestamente, o parceiro mais fraco, e mantem-se irrelevante no atual contexto. O Brasil combateu, sem sucesso, o alargamento dos BRICS, porque sabiamente pressentiu que a extensão do grupo iria significar a diluição do seu poder relativo. Mas viu-se vergado a flexibilizar a sua atitude pela vontade da China (não se percebeu bem se também da Índia). A Rússia, num tempo de grande dificuldade, precisa desesperadamente quem lhe suporte o estatuto de potência, pelo que o alargamento do "clube" seria conveniente à quase obsessiva e ridícula coreografia diplomática de Putin.

E assim os BRICS, nos dias de hoje, vão andando na tentativa de densificação da sua cooperação. Mas sente-se que o mundo ocidental anda cada vez mais preocupado com este diálogo acrescido. E, numa estupidez estratégica e declaratória, junta, às vezes, tudo no mesmo saco. 

O tal mundo ocidental - com os Estados Unidos e a Europa à frente - tentou, na sequência da invasão russa da Ucrânia, apelar aos princípios da ordem internacional que entenderam estarem a ser violados. 

Pelo belo barómetro que são as resoluções da Assembleia Geral da ONU, percebeu-se que esse argumentário euro-americano (com outros amigos mais ou menos íntimos) começou por ter algum sucesso junto daquilo a que alguns chamam "Sul global".

Até que um dia sucedeu o que está a suceder em torno de Israel. E esse tal "Sul global" deu-se de repente conta de que os mesmos princípios e valores que tinham sido evocados para o caso ucraniano afinal não eram aplicáveis no caso palestino. E grande parte desse Sul, com os BRICS à cabeça e com a suas opiniões públicas na base, confirmou que o ocidente tinha dois pesos e duas medidas e que, afinal, os tais princípios e valores só prevaleciam quando serviam de suporte aos interesses geopolíticos ocidentais. E viu-se o tal ocidente, em poucos meses, a perder toda a autoridade moral que invocara na Ucrânia. Sem o afirmar, tinha afinal adoptado o conhecido princípio de Groucho Marx: "Estes são os meus princípios. Se não gostarem, tenho outros".

Mesmo com os seus limites, o sucesso organizativo dos BRICS, gerando outros movimentos de agregação e simpatia a Sul, confronta visivelmente o mundo ocidental. Mas acaba por ser o resultado de uma crescente hipocrisia por parte deste. Agora, aguentem-se! 

Os governos não são parvos, mas, às vezes, parecem sê-lo. Ou fazer de nós parvos.

3 comentários:

netus disse...

Muito boa noite
Respeitando, SEMPRE, a opinião de outrem, a minha é a de que este seu texto é um retrato brilhante do nosso mundo, da geopolítica à hipocrisia. Interesses, sempre.
António R. Cabral

Erk disse...

Parece-me zero teoria da conspiração e até bastante óbvio que o "alargamento" do conflito ucraniano ao médio oriente aconteceu a pedido do presidente russo, que encomendou ao amigo Irão que puxasse os cordelinhos de todos os fantoches que tem na região, sabendo perfeitamente que os EUA iam ter que partilhar armamento com Israel. O facto de isso também dar um jeitão ao presidente de Israel para não ir de cana foi um factor adicional.

Dito isso, parece-me que a coisa continua a não correr tão bem como os comunas por cá e noutras latitudes. E mesmo o Guterres que aparentemente gosta do papel de fantoche, é irrelevante e consigo leva as Nações Unidas...

Mas os que por cá gostam deste estado de coisas, e que estão do lado dos de lá, fazem-me e gostam porque estão no conforto dos regimes democráticos capitalistas defendidos pela NATO...

Anónimo disse...

Um pouco como os países que se incluem na CPLP. "nunca foram grande coisa"

Agora, aguentem-se!

Os governos não são parvos, mas, às vezes, parecem sê-lo. (Não, não vou falar de política interna).  Anda lá por fora meio mundo excitado co...