Por estas horas, na Geórgia, antiga república soviética do Cáucaso do Norte, vivem-se momentos de forte tensão política. O resultado das eleições legislativas deste fim de semana, oficialmente anunciado como sendo de sentido favorável à força política que está no poder há vários anos, é posto em causa pelo conjunto das forças da oposição, bem como pela presidente da República, Salome Zourabichvili.
O governo é acusado de estar enfeudado aos interesses de Moscovo e a Rússia surge, em especial num discurso de há horas da presidente (a imagem é desse momento), como tendo interferido diretamente no ato eleitoral. Os próximos dias vão ser decisivos para se perceber qual será o desfecho deste confronto.
Mas não é das eleições de ontem que quero aqui falar hoje.
Quero deixar uma nota sobre Salome Zourabichvili. Nascida em Paris, de pais de origem georgiana, foi diplomata francesa durante quase 30 anos. Um dia, foi designada embaixadora da França na Geórgia. O mais surpreendente viria em seguida: em 2004, Zourabichvili saiu dessas funções, passou a ter nacionalidade georgiana e ... foi nomeada ministra dos Negócios Estrangeiros da Geórgia!
Visitei-a poucas semanas depois da sua assunção de funções. Tinha ido a Tbilisi, capital da Geórgia, integrado numa missão da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), ida de Viena. Éramos cinco embaixadores: Estados Unidos, Rússia, França, Itália e Portugal. O nosso objetivo era múltiplo: visitar a zona de fronteira entre a Geórgia as repúblicas russas da Inguchétia e da Chechénia, onde tinham ocorrido incidentes de que Moscovo se queixava, bem como as regiões da Ossétia do Sul e da Abcásia, ocupadas por independentistas que punham em causa a soberania da Geórgia sobre esses territórios. E, nesse contexto, durante quase uma semana, viajámos muito e falámos com muita gente.
A conversa com Salome Zourabichvili começou com a forte rejeição por parte desta de quaisquer responsabilidades do seu país nos acontecimentos que tinham levado às acusações russas. E viria a acabar algo tensa.
O meu colega americano, Stephan Minikes, numa lógica bilateral que não era para ali chamada, decidiu dizer à nova ministra do interesse de Washington em reforçar fortemente a cooperação dos EUA com a Geórgia. (À saída, no corredor, perguntei-lhe: "Os EUA não têm cá embaixador? Não devia ser ele a dizer o que disseste?" Minekes, cuja experiência diplomática era muito escassa, atentou no que eu lhe disse: "Se calhar tens razão! Espero que o State Department não se aborreça").
Na ocasião, vi o embaixador russo, Alexander Alexeyev, ficar cada vez mais agitado na sua cadeira: uma das queixas de Moscovo era precisamente essa crescente intromissão americana numa área do mundo que a Rússia, visivelmente, considerava parte da sua "chasse gardée". Depois do 11 de Setembro, o "politicamente correto" da luta contra o terrorismo tinha obrigado Moscovo a mostrar-se complacente com a intromissão dos EUA no "near abroad" da Rússia, mas o prolongamento americano nessas regiões, em especial Cáucaso e Ásia Central, começava a irritar Putin.
Os três embaixadores da União Europeia olhavam, entre o interessado e o divertido, aquele esgrimir da lógicas argumentativas que, no fundo, simbolizavam já fortes rivalidades geo-políticas de natureza global. Zourabichvili, que ali se percebeu ser fortemente anti-russa, travou-se então de razões com Alexeyev. Aqueles quase três quartos de hora de debate ofereceram-me um bom retrato da senhora, a qual, a partir de então, veio a ter um futuro destacado na política do seu país.
Quatro anos mais tarde, depois de grosseiros erros táticos cometidos pelo então presidente georgiano, Mikheil Saakashviki, a Rússia daria uma primeira machadada nas ambições da Geórgia de se aproximar do ocidente e de recuperar os territórios perdidos. Agora, vinte anos depois, Salome Zourabichvili é a presidente do seu país em termo de mandato, que iniciou em 2018. Este seu estertor político soma-se ao facto de os presidentes georgianos deixarem, a partir deste ano, de ser eleitos em sufrágio direto e passarem a ser escolhidos pelo parlamento.
Não me admiraria nada se, num futuro não muito longínquo, Zourabichvili viesse a ver-se obrigada a ter de ir passear pelas ruas do seu Paris natal...
13 comentários:
Curioso.Não fazia ideia de que a senhora era francesa, originariamente.
Tudo o que é imprensa "ocidental" está cheio de notícias sobre a influência russa. Não duvido. Já da influência "ocidental" não dizem nada. Ontem dei da conta da existência de um Edison Institute com sede em New Jersey que faz sondagens na Venezuela, na Geórgia e algures. A oposição ganha sempre nessas sondagens.
Bom dia. Caso esse cenário se verifique, como diria Leo Amery, "depart, I say, and let us have done with you. In the name of God, go".
Ou caísse acidentalmente de uma janela, não é esta a forma democrática de fazer as coisas na região?
Por cá há quem nem pesnateje quando acontece.
O "ou" em "Zourabichvili" lê-se "u". O apelido deve querer dizer "filha de Zurab", uma vez que Zurab é um nome georgiano bastante comum.
Stephan Minikes, decidiu dizer à nova ministra do interesse de Washington em reforçar fortemente a cooperação dos EUA com a Geórgia.... Ah, ah; ah ! Cooperaçao? Quando os americanos começam a cooperar, vai mal ...
Zourabichvili arrisca-se de facto de ir passear para Paris.
Terá mais sorte que o efémero presidente Mikheïl Saakachvili, que està de férias entre quatro muros. Não lhe valeu nada ser amigo de Sarkozy!
Penso que neste blogue já terei mencionado que a Geórgia é possivelmente o país do mundo com mais ONG per capita. Essas ONG são maioritariamente controladas por instituições europeias e pela National Endowment for Democracy (uma front da CIA). Agora, um caso pessoal: aquando da queda de Mariupol publiquei noutro forum imagens da rendição de prisioneiros ucrânianos, que emergiam das ruínas do célebre complexo industrial da cidade. Poucas horas depois, essa minha publicação foi censurada no forum que refiro, por uma ONG de "fact checkers" baseada na Georgia, sob a acusação de que eram imagens falsas. Estive a ver a referida ONG e lá estava como principal financiador a NED. Reclamei, porque as imagens eram comprovadamente verdadeiras mas a minha reclamação não foi aprovada. Então, veio a cereja no topo do bolo: cerca de uma semana após essas imagens terem sido gravadas, lo and behold, estavam a passar na CNN Internacional. Este episódio diz muito da influência do Ocidente nesse pequeno país. O objectivo era e é provocar um Maidan 2.0. Felizmente, a maioria do povo georgiano recusa o destino a que foi condenado o povo ucraniano.
Tenho uma palavra q
A senhora nasceu em França mas numa família de refugiados da Geórgia, família essa com grandes ligações ao seu país.
A suas páginas da Wikipedia em francês e em inglês são das páginas mais completas sobre políticos que tenho lido e explica muito do seu percurso, senão tudo da sua vida (a página em português - do Brasil - não tem quase nada).
TUDO DENTRO DO MAIOR RESPEITO PELA liberdade E democracia!
Tony Fedup
Ao senhor Luís Lavoura: é impreciso o que descreve. Na verdade, -shvili significa "descendente de" ou "criança de", independentemente do género. É ao sufixo -dze que cabe a designação "filho de" (vem à memória o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros soviético Shevardnadze). No entanto, ambos podem ser usados indistintamente em apelidos de homens ou mulheres. Quanto a Zurab, nem figura nos 10 nomes próprios mais comuns no país, talvez num passado distante. O conhecimento não ocupa lugar.
ad latere, Paris, France ... faz-me lembrar Rachida Datti.
Basket-Spot
Nada tenho a ver com a Geórgia.
Escrevi que o sufixo "vili"
"deve querer dizer" alguma coisa. Você esclareceu que coisa exatamente quer dizer. Obrigado.
Sobre Zurab ser um nome georgiano bastante comum, vejo na wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Zurab) que houve no século 20 uma carrada de georgianos famosos com esse nome. (Eu próprio já colaborei profissionalmente com um georgiano chamado Zurab, o qual ainda está vivo.) Mas se Você afirma que Zurab não é assim tão comum, acredito.
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