segunda-feira, outubro 21, 2024

"Farta Brutos"


Nunca por aqui contei esta história. Uma história muito triste, de outros tristes tempos. 

Foi logo no início dos anos 90. Eu vivia então em Londres. Vim sozinho por alguns dias a Lisboa e telefonei a um grande e velho amigo nosso, sugerindo que fôssemos jantar. 

Ele vivia em Alfama. Na conversa, pelo telefone, disse-me que, não muito longe da sua casa, havia uma tasca, com cozinha tradicional portuguesa, que ele ainda não conhecia e de que lhe tinham falado muito bem. Achei uma ótima ideia. Fui ter à sua casa (recordo-me que vivia no mesmo prédio de Carlos Carvalhas, então secretário-geral do PCP) e daí partimos para o jantar.

Chegados os dois à tasca, sentámo-nos e esperámos para ser atentidos. Comecei a estranhar o facto de, ao final de largos minutos, ninguém vir à nossa mesa. O meu amigo, que se chamava Jorge (morreu, entretanto, há uns bons anos), ia fazendo gestos, tentando chamar alguém para nos servir. Do pessoal da sala e do lado de dentro do balcão, comecei a assistir a sorrisos e a atitudes desdenhosas, que visivelmente lhe eram dirigidas. 

O Jorge era homossexual, tinha uma coreografia gestual que indiciava claramente isso, e rapidamente me apercebi que os empregados da casa estavam a escarnecer do seu nervosismo e da irrequietude dos seus trejeitos. A certo passo, ouvi mesmo de um deles: "Então quem é que vai atender o maricas?". E iam rindo, entre si, de forma alarve.

Nunca me conformei com a cobardia da reação que, a certa altura, tive. Levantei-me e disse: "Jorge, vamos embora!" Sempre fiquei convencido de que ele não estava a aperceber-se bem do ambiente que se tinha criado à nossa volta. Parecia incrédulo, não entendendo (ou talvez não querendo entender) o que se estava a passar. Eu terei achado que uma clarificação pública e sonora da situação o podia humilhar. Arrastei-o para fora do restaurante, metemo-nos num taxi.

Há poucos dias, ao entrar para o "Farta Brutos", com um grupo de pessoas, depois de uma conferência na FLAD, lembrei-me de ter sido precisamente ali que o Jorge e eu tínhamos aportado, logo depois da cena miserável passada na tasca de Alfama. 

Ainda tive a tentação de contar a história às pessoas que iam comigo. Mas achei que quem tinha sentada a meu lado, Anne-Marie Slaughter, a conferencista dessa tarde, ex-assessora de Obama, autora e universitária prestigiada, talvez tivesse alguma dificuldade em entender que, há pouco mais de trinta anos, o ambiente social de Lisboa ainda fosse tão homofóbico e discriminatório. Ou quiçá eu não quisesse, afinal, confrontar-me com o facto de, na circunstância, não ter armado a "peixeirada" que a era merecida e ter, simplesmente, optado por ir jantar a outro local.

O "Farta Brutos", a que muitos chamavam o "Tavares Pobre", por se situar nas traseiras do "falecido" "Tavares", essa histórica estrela caída da restauração lisboeta, tinha-nos acolhido, nessa noite de 1990, com a urbanidade da casa decente e muito correta que sempre foi. Lembro-me bem disso.

Várias outras vezes voltei ao "Farta Brutos". Não guardo senão boas memórias desse que é, nos dias de hoje, um dos marcos constantes da boa restauração daquele (infelizmente cada vez mais descaraterizado) bairro. Na noite de há dias, voltei a comer ali muito bem. No final, recebi do proprietário o devido remoque ("Já não vem cá há algum tempo!"), a que pretendo responder com novo regresso em breve.

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"Farta Brutos"

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