sábado, fevereiro 26, 2022

O papa e a guerra

Ontem, no termo de uma intervenção no Jornal das Oito, da TVI, decidi recordar que, nessa manhã, o papa Francisco se tinha deslocado à embaixada da Federação Russa junto da Santa Sé. 

Tinha lido a notícia, durante o dia, algures na internet (mesmo nestes tempos de guerra, vejo muito pouca televisão), mas fiquei com a sensação de que o gesto quase não havia sido destacado. 

E, contudo, ver o líder da igreja católica a ter aquela atitude de modéstia foi algo que me impressionou fortemente. Um chefe de Estado a fazer o que pode ser considerada como uma espécie de “diligência moral” é uma atitude sem precedentes.

Na altura, tive a tentação de contar, em estúdio, um outro episódio que faz parte da memória das relações internacionais. Mas contive-me: relatar ali a “graça” de que me tinha lembrado menorizaria a dimensão do ato do papa Francisco.

Relembro-a agora. Conta-se que, em 1935, Stalin, teve um conversa em Moscovo com Pierre Laval, então ministro dos Estrangeiros de França (com justiça, pelo que fez futuro, a História iria dar a Laval um “infamous” lugar e um fim trágico). Laval ter-lhe-á dito que o papa Pio XI havia criticado as perseguições aos cristãos na URSS. A resposta desdenhosa do líder russo ficou nos anais: “E quantas divisões é que tem o papa?”

Não sabemos o que Putin possa ter respondido ao receber a mensagem de ontem do papa Francisco, cujo conteúdo também desconhecemos. Isso é indiferente, até porque o presidente russo não tem cara de quem é dado a um “bon mot”. O atual papa fez apenas aquilo que entendeu dever fazer. 

E até eu, um empedernido ateu, não consigo deixar de sentir um particular apreço por este excecional argentino, um homem que gosta de futebol e que consegue o milagre, com este seu gesto de humanidade, de me reconciliar pontualmente com uma liturgia a que sempre me senti alheio.

sexta-feira, fevereiro 25, 2022

A palavra do ocidente


Numa noite do primeiro semestre de 1996, no edifício da União Europeia, o recém nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, Yevgeny Primakov, jantou com os seus homólogos dos então “Quinze” (ou quem os substituía, como era o meu caso). Havia uma grande curiosidade em conhecer a nova cara do Kremlin para a política externa.

E Primakov não desiludiu. O tempo era relações distendidas com a Rússia. Primakov parecia ser um homem ponderado e equilibrado, tendo deixado uma excelente impressão.

A questão essencial que, nessa altura se discutia, eram os futuros alargamentos da União Europeia. Primakov não escondeu que, em Moscovo, o avanço das fronteiras da União até à Rússia era visto com algum desconforto. “Mas Yeltsin não se vai opor a isso, desde que a União Europeia não venha a promover, no seu seio, estruturas de natureza político-militar que possam representar uma espécie de ‘entrada na NATO pelas portas traseiras’, porque, como sabem, há um entendimento muito claro de que a NATO não se alargará para Leste da fronteiras alemãs”. Fixei bem estas palavras de Primakov.

A doutrina divide-se hoje sobre a natureza dessas garantias, mas é indubitável que o ocidente - leia-se, os EUA - tinham deixado mensagens políticas nesse sentido. E que, por essa razão, essa convicção estava firmada em Moscovo.

Mas também sei, por ter viajado nesse mesmo ano por vários dos países candidatos ao alargamento da União Europeia, conversando com os seus governantes, que as suas ambições em matéria de reforço da sua segurança não se ficavam por um mero lugar à mesa da União. Mais do que isso, esses Estados tinham “padrinhos” dentro da União Europeia que, mais ou menos abertamente, confortavam o seu mais ambicioso desiderato - aderir à NATO.

A noção que fui colhendo é que esses Estados, se bem que considerassem interessante integrar a União, como forma de reforçar o seu desenvolvimento, percebiam bem que, se acaso “as coisas dessem para o torto” na relação com uma Rússia que derivava rapidamente no sentido do autoritarismo, quem os poderia defender era a NATO, ou melhor, eram os EUA, vencedores da Guerra Fria.

O ocidente mentiu à Rússia? Talvez não. O ocidente terá feito promessas políticas, de modo político e não formal, a uma “outra” Rússia. A Federação Russa perante a qual os EUA e as estruturas ocidentais terão feito essa promessa política não foi exatamente a mesma a partir do momento em que Vladimir Putin assumiu o controlo, quase pessoal, do poder em Moscovo. O ocidente, ao fazer essa promessa, estava a falar com uma Rússia com a qual tinha sido possível estabelecer uma parceria, mecanismos de confiança, de diálogo e de cooperação. A Rússia de Putin passou a ser outra Rússia. E Putin, note-se, está no poder há muito tempo, já conta no seu currículo de contra-partes com cinco presidentes dos EUA.

Pode dizer-se que o comportamento de alguns países candidatos ao duplo alargamento à União Europeia e à NATO, na acrimónia oficial contra Moscovo e até, em alguns casos, no tratamento injusto das minorias russas no seu território, não contribuiu para o atenuar da tensão histórica que já vinha dos traumas da União Soviética. É verdade. Mas nada é comparável, sejamos justos, com o ambiente de intimidação que tinha como fonte a Federação Russa, em especial - e isto é importante - titulado por um poder em Moscovo onde já quase tinham desaparecido, quase por completo, os “checks and balances” que existem em Estados que funcionam sob instituições democráticas. Como ontem se comprovou.

quinta-feira, fevereiro 24, 2022

“A Arte da Guerra”


Falar sobre a situação na Ucrânia é como tentar atingir um alvo em movimento (peço desculpa pelo uso de uma figura de cariz bélico, mas está no “l’air du temps”). O podcast “A Arte da Guerra”, a conversa com António Freitas de Sousa para o “Jornal Económico”, foi, esta semana, gravado na manhã de terça-feira, dia 22. Como só hoje foi para o ar, alguma desatualização era inevitável, nomeadamente a que decorre do ataque russo à Ucrânia. Mas acho que o que ficou dito vale a pena ser ouvido.

Pode ver e ouvir aqui.

quarta-feira, fevereiro 23, 2022

Leonor Xavier


Recordo-me de uma conversa telefónica com a Leonor Xavier, em data que não posso precisar, na qual ela me disse, com grande entusiasmo, que estava a trabalhar num livro feito com base em alguns dos seus primeiros diários. A Leonor estava já muito doente, no meio de ciclos sucessivos de exames e internamentos. Nessas derradeiras conversas, sua voz estava marcada pela enfermidade, comigo a hesitar prolongar o diálogo, para evitar cansá-la. Arguta como era, devia sentir que tinha a vida a prazo. Alimentava-se visivelmente desse tipo incessante de atividade porque, para ela, cada livro era como que uma etapa mais de um percurso que se esforçava por percorrer, que duraria o que tivesse de durar. A Leonor morreu em meados de dezembro do ano que passou.

Ontem, no “ El Corte Inglés”, muitos dos seus inúmeros amigos estiveram no lançamento daquela que será a sua obra póstuma, “Adolescência”. Foi um belo momento. Se bem que muita gente estivesse comovida, fiquei com a sensação de que todos sentíamos que, se acaso a Leonor ali estivesse, não deixaria que perdêssemos o sorriso. Foi assim que o evento se passou num registo alegre, com a falta da Leonor atenuada pela memória imensamente positiva que, para sempre, todos dela conservamos

terça-feira, fevereiro 22, 2022

Não sejamos otimistas


Não tendo uma natural vocação masoquista, dei comigo a pensar, no final da tarde de segunda-feira, por que razão, por quase uma hora, me entretive tanto a ouvir, numa muito profissional interpretação simultânea (num site russo, em espanhol), a integralidade da comunicação que Vladimir Putin fez ao país e ao mundo.

Muito daquele arrazoado tinha um tom algo críptico, historicamente justificativo, num registo e adjetivação que ressoavam muito a ontens “que cantaram”, em outro tempo e em outro modo. E, no entanto, não desliguei um segundo e fiquei (não direi “religiosamente”, mas atentamente) até ao fim.

Quando concluí o exercício, lamentei não ter tomado mais notas, mas voltar atrás e rever a narrativa seria um exercício excessivo. Mas não dei por mal empregue o meu tempo.

O Vladimir Putin que descobri nessa hora de audição é um homem de outra era. Ao ouvir os seus lamentos, o seu orgulho ferido por um mundo que tem humilhado o seu, como que entendi melhor o que tem sido o percurso histórico de uma certa Rússia contemporânea que se acha enganada pelo ocidente - em especial, que se considera abusada na sua fragilidade conjuntural. E que, à evidência, não se resigna.

Putin não é uma figura deste tempo, concluí. Ou melhor, a Rússia contemporânea que ele representa decorre de uma linha profunda de continuidade que, embora já presumida por alguns, está muito mais enraizada do eu julgava possível. A Rússia imperial vive em Putin bastante mais do que em caricatura: é um guia para a ação da atual nação russa.

O discurso de Putin estabelece uma espécie de hierarquia de valores nacionais, na qual a Rússia tem um papel central e historicamente incomparável com o artificialismo de outras entidades estatais, cuja representação à escala internacional ele considera não dever iludir esse seu estatuto menor.

A Ucrânia, neste contexto, é um acaso de decisões históricas erradas, tomadas no seio de uma Rússia em anteriores estádios de convulsão. Por isso, na perspetiva de Putin, não pode aspirar a ser vista como uma nação com todos os atributos de dignidade, passível de um reconhecimento por Moscovo.

A tudo isto, Putin soma a leitura de a Ucrânia se ter transformado no joguete de um mundo, tutelado pelos Estados Unidos, onde subsistirá o desígnio deliberado, que já vem da Guerra Fria, de manter a Rússia sob uma pressão que evite a recuperação da sua grandeza histórica.

Na linguagem do líder russo, a América é uma entidade internacional celerada, que sobredetermina o comportamento de todos os seus aliados e que objetiva na Ucrânia contemporânea todos os vícios e todos os males, com o único e não assumido objetivo de atingir a Rússia.

Por isso, esta Ucrânia, não apenas não tem uma legitimidade que lhe permita afirmar-se como nação como ela própria se converteu, através da cumplicidade com os inimigos da Rússia, num perigo para a própria essência nacional que Moscovo representa.

Quando Putin dá por adquirido que é necessário reconhecer as “Repúblicas Populares” de Luhansk e Donetsk, não está, naturalmente, a atribuir uma dignidade nacional a essas entidades que, “de facto”, já se assumiam como tal desde 2014.

Trata-se apenas, como é óbvio, de utilizar o estratagema de afirmação internacional dessas duas entidades russas como o meio, mais “à mão”, para limitar os danos que a evolução da Ucrânia contemporânea está a provocar à Rússia. Mas, visivelmente, esse é um passo que, sendo necessário, fica muito aquém de ser suficiente para travar o imenso perigo que se desenha para a Rússia, através do poder infiltrado em Kiev, na leitura de Putin.

É este acossamento - a expressão só pode ser esta - da Rússia que Putin pretende sacudir com as suas ações atuais, utilizando, de caminho, a completa subalternidade da Bielorrússia - ficando agora muito clara, se o não fosse já à evidência, a razão pela qual Moscovo nunca teve a menor tentação de apelar à democratização do respetivo regime.

Perante o ocidente - isto é, os Estados Unidos à frente do resto - Putin assume a atitude de querer fazer um “reset” da História. O que é mais estranho, ao configurar um desespero cuja resultante alternativa só pode acabar numa tragédia mundial, é que não parece encarar outro cenário que não seja a reversão completa dos equilíbrios saídos da Guerra Fria - repito, tendo em conta a leitura que faz de que a Rússia foi iludida ao não ter sido cumprido o “trade-off” político que esteve subjacente a esse tempo - o que até pode ter alguns laivos de verdade, mas que já é irreversível.

Ora Putin sabe que não existe o menor cenário em que os países a seu ocidente prescindam da posição que hoje detêm, por opções que foram sendo tomadas, independentemente das razões que Moscovo até possa ter.

Mais do que isso: Putin deve saber que, ao dizer o que disse, carreou para esse debate uma atitude russa que só pode levar a uma muito maior rigidificação de posições por parte de quem pressentiu o crescendo da ameaça.

A saída para tudo isto não é evidente, mas não há razões para cultivar o menor otimismo.

(Artigo publicado no site da CNN Portugal)

segunda-feira, fevereiro 21, 2022

Ainda temos tempo?


A grande questão que atravessa os dias de quem tem responsabilidades na “governance” mundial, na equação clima-energia, é, de há muito, esta: “Ainda temos tempo?”

A partir das instalações da Agência Europeia de Segurança Marítima, com formato híbrido acessível por meios digitais, está a ter lugar, nos dias de hoje e amanhã, a conferência “Gerar energia para o mundo e preservar o planeta”, numa organização conjunta do “Clube de Lisboa”, de que tenho a honra de ser presidente, e da Embaixada do Japão em Lisboa.

Um grupo de especialistas de vários países intervem neste exercício, que foi aberto com uma interessante comunicação do Secretário-Geral da ONU, contando com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa na sessão de encerramento.

Cada painel será objeto de uma representação gráfica, construída à medida da evolução do debate. Aqui fica a que ilustra as primeiras horas dos trabalhos.

Não querem “visitar-nos”? Basta clicar aqui.

domingo, fevereiro 20, 2022

“Podia ter sido pior”


José Cutileiro morreu vai para dois anos. Deixou um não preenchido vazio na reflexão, inteligente e culta, sobre as coisas internacionais. Mas não só. Ele era bem mais do que isso. Ao longo da sua vida, foi o original cultor de uma espécie de sociologia irónica de um país que ele via como que acomodado a um destino assim-assim. 

Saiu agora este “Podia ter sido pior”, numa bela edição da D. Quixote, uma espécie de “best of” do muito que escreveu, mas com interessantes coisas originais. 

Esta antologia é uma oportunidade excelente para quem quiser conhecer o pensamento de uma das figuras mais originais da nossa intelectualidade e da diplomacia democrática.

Prazeres da carne

O candidato presidencial do que resta do Partido Comunista Francês, Fabien Roussel, colocou num tweet a seguinte ideia: “Um bom vinho, uma boa carne, um bom queijo: é a gastronomia francesa”. Acrescentou que “a melhor maneira de a defender é permitir aos franceses terem acesso a ela”, isto é, ganharem melhor.

Parecia uma ideia inócua: apelar a que os cidadãos pudessem usufruir de algo que é comummente tido como um património do país, nomeadamente no imaginário externo.

Pois não foi. Caiu meio mundo sobre Roussel. Apelar ao consumo de vinho, num tempo em que o álcool é diabolizado como fator de doenças? Carne, meus senhores!, agora que o mundo desliza para o veganismo? Queijo, explorando produtos leiteiros, cujo fabrico aumenta o CO2, pelo que começam a não estar na agenda do crescente higienismo? 

No fundo, para essas pessoas, o que Roussel disse configura um mundo antigo, feito de estereótipos caricaturais, que cada vez menos correspondem às exigências da sustentabilidade das sociedades modernas. Será assim?

O que acabo de escrever não tem como finalidade atiçar a onda de reclamações contra algum “politicamente correto”. Já dei para esse peditório. Apenas quero dizer que, para o bem ou para o mal, há que convir que estão a criar-se, cada vez mais, dois mundos que se afastam, limitando o grau de consenso dentro das sociedades. Uns dirão que é o passado a não entender o futuro. Outros dirão que “está tudo maluco!”.

Já agora: Roussel tinha 4% de intenções de voto. As suas preferências gastronómicas vão fazer subir a sua cotação?

Destinos

No momento em que escrevo, não faço a mais leve ideia do que vai acabar por acontecer como desfecho da tensão em torno da Ucrânia. Uma coisa tenho para mim como certa: quer haja um conflito armado quer ocorra um qualquer entendimento que o evite, estes dias de início de 2022 vão ficar bem marcados na História contemporânea.

De um lado, está Vladimir Putin, alguém que, muito claramente, se sente na pele do vingador da humilhação que Moscovo sofreu, no termo da Guerra Fria que a União Soviética clamorosamente perdeu. Olhando a sua postura, nota-se que pretende desenhar o seu lugar na linhagem da Rússia eterna, onde o poder autocrático, como o que agora afirma, sempre foi a regra do jogo. Se o conseguirá fazer em moldes que o elevem nesse mundo de mitos nacionais russos, veremos muito em breve.

Do outro, está um muito improvável ator da História da seu país. Quando, há pouco mais de um ano tomou posse, ninguém lhe destinava um futuro na memória americana. Joe Biden fora a solução conveniente, descortinada pelo seu partido, para conseguir afastar Trump. “A safe pair of hands” na administração Obama, foi um operador eficaz no Congresso e era tido como um razoável conhecedor das coisas internacionais. Pouco mais. Pensava-se que seria um interlúdio até Kamala Harris ganhar senioridade. E, contudo, a História cai-lhe agora no colo.

A História é sempre um objeto fascinante de estudo. Mas nem sempre ela tem graça quando se é condenado a vivê-la.

sábado, fevereiro 19, 2022

“Não foi penalti!”

Uma vez, no velho estádio José de Alvalade, no meio de uma bancada verde que reclamava um penalti que castigasse uma suposta falta sobre um jogador do (meu) Sporting, comentei, alto: “Não foi penalti!”. 

O que eu fui dizer! Caiu-me em cima o Carmo e a Trindade! O mais meigo remoque que nesse instante recolhi foi de “lampião”, insulto-mor no clube que me tem como adepto, desde que me conheço.

Não tinha sido penalti, claro, mas afirmar isso naquele contexto era uma heresia. Porque “tenho a mania” de que sou isento a ver futebol (e sou), raramento me inibo de dizer o que penso sobre a justiça do “senhor árbitro”. E, talvez por isso, raramente vou aos estádios.

(Ainda ontem, este tweet irritou bons amigos: “A Lazio não é o Manchester City, eu sei. Mas parece-me claro, e honestamente tenho de admitir, que o Porto é hoje, nomeadamente comparado com o (meu) Sporting ou o Benfica, a única equipa portuguesa que ainda vai conseguindo sustentar um razoável estatuto internacional.”)

Mas a que propósito vem isto? Da Ucrânia. Da Ucrânia? Exatamente.

Na minha qualidade de comentador da CNN tem-me vindo a ser pedido que analise a situação que por ali se passa. E eu faço-o, tão bem quanto consigo, tentando olhar para as coisas com equanimidade - “palavrão” que tenho por princípio moral. 

Há dias, um outro amigo (tenho muitos, felizmente) disse-me, num tom que me soou um pouco chocado: “Quando, nos teus comentários, analisas o conflito na Ucrânia, chega a dar a sensação de que Biden e Putin se equivalem moralmente, de que um presidente eleito democraticamente tem uma dignidade idêntica à de um autocrata. Pareces esquecer de que lado estás.”

Achei graça ao comentário. E já o esperava. Sou cidadão e diplomata de um país da NATO e da União Europeia, defendo alguns Direitos Humanos que Putin nem desconfia que existem e detesto o sinistro regime que vigora em Moscovo. Mas, ao assumir esta atitude (que não é um “disclaimer”, note-se), acaso sou obrigado a esquecer, por exemplo, que os EUA mantêm, sem julgamento e sem vergonha, há mais de 20 anos, em Guantanamo, pessoas detidas por terrorismo, por não conseguirem provar que são culpados? 

Recuso abertamente o desafio dualista, em matéria de valores, que está subjacente à pergunta, quase policiesca: “Estamos do lado de Biden ou do lado de Putin?”. O facto de eu saber bem do lado em que estou não me torna incapaz de avaliar, com serenidade, as razões de um lado e de outro. Porque a experiência, e essencialmente a consciência, ensinou-me que o mundo nunca é a preto e branco. E não tenho a menor paciência para os maniqueístas.

Bem me lembro dessa hora, bem negra para a política externa portuguesa, em que um governo nos provocava sobranceiramente com a pergunta: “Queremos estar do lado dos Estados Unidos ou do lado de Saddam Hussein?”. Esse executivo acabou a servir o “catering” nas Lajes e a avalizar a guerra criminosa que foi a intervenção no Golfo, em 2003, de onde só nasceu ódio, morte e o Daesh. E não pediu desculpa ao país por isso.

Conheço os valores que estão em causa na questão da Ucrânia. Esse é o lado opinativo, afetivo, da questão. O meu papel, na cena televisiva, não é ser “sportinguista em Alvalade”, é ser rigoroso a analisar os acontecimentos e as motivações contrastantes que lhes estão por detrás. Às vezes, isso não é simpático para as “nossas cores”, parecemos ”advogados do diabo”? É a vida!

Por isso, porque continuo a recusar-me a gritar “penalti!” quando não houve falta, ou insisto em dizer ”foi penalti!” quando um defesa do meu “lado” rasteira um adversário na área, continuarei, enquanto me quiserem ouvir, a tentar analisar as questões internacionais com o possível equilíbrio, tomando sempre em atenção a posição de cada lado e, essencialmente, procurando ser rigoroso com os factos. 

Como alguém disse um dia, temos todo o direito a ter as nossas próprias opiniões, mas isso não nos dá o direito a ter os nossos próprios factos.

sexta-feira, fevereiro 18, 2022

Aeroporto Gago Coutinho


No ano do (visivelmente pouco comemorado) centenário da travessia aérea do Atlântico Sul, a qual, por sua vez, teve lugar 100 anos após a independência do Brasil, acabo de ler que um grupo de cidadãos decidiu propor que ao aeroporto de Faro seja dado o nome de Gago Coutinho, o bravo almirante que, com Sacadura Cabral a seu lado, levou a cabo essa heróica e marcante proeza. Gago Coutinho nasceu em S. Brás de Alportel.

Não posso senão aplaudir esta excelente ideia.

Recuar ou não

A Rússia conseguiu alguns objetivos: disparou os preços dos combustíveis, provou que o “campeonato” não é só entre os EUA e a China e mostrou que o ocidente pagaria um forte preço se fizesse a Ucrânia entrar na NATO. Resta-lhe agora encontrar um “face-saving” para recuar. Ou não.

Deceção

A expetativa que os EUA estão a criar sobre a quase inevitabilidade de uma invasão russa à Ucrânia pode acabar por converter uma eventual não invasão como um ato de hostilidade por efeito de deceção. Resta saber se Putin tem coragem de ir “that far”.

quinta-feira, fevereiro 17, 2022

“Houston, we have a problem!”

A direita democrática francesa, nos dias de hoje a única herdeira do que resta da tradição gaullista, foi descobrir uma antiga ministra de Sarkozy, Valérie Pécresse, que tinha deixado uma imagem relativamente positiva, para ser portadora das suas cores. 

Tendo conseguido derrotar a concorrência em “primárias” dentro do “Les Républicans”, Pécresse parecia poder ir buscar alguns votos de direita que Macron recolhera em 2017, desgastando, ao mesmo tempo, a deriva para a extrema-direita, que hoje polariza mais de 30% do eleitorado. Para isso, “direitizou” fortemente o seu discurso, num percurso iniciado com Sarkozy e que Fillon acentuou. 

A cerca de 60 dias das urnas, Pécresse foi, há dias, submetida um banho partidário de multidão no Zénith, um espaço público de Paris usado para estas ocasiões, numa estudada encenação de campanha, tendo a seu lado os grandes tenores do partido. 

Embora a vitória de Macron, numa segunda volta, pareça, a esta distância, muito provável, se Pécresse conseguisse vir a estar presente nessa ocasião, aproveitando a circunstância do extremismo xenófobo e racista estar por estes dias dividido (entre Le Pen e Zemmour), e mesmo que viesse a perder, isso seria um bom sinal para a afirmação futura do seu partido, o qual, sendo embora o maior de França, está fora do Eliseu e do governo central francês há uma década.

A aguardada prestação pública de Valérie Pécresse, contudo, acabou por ser “pitoyable”. O texto era mau e sem chama, a sua incapacidade de o “vestir” foi evidente, pelo que o grande “meeting” acabou por ser um espetáculo quase tragicómico, com Pécresse a demonstrar uma patética falta de jeito. As vozes, dentro do partido, foram, de imediato, impiedosas, em especial nas ironias e silêncios. As sondagens vieram a refletir o mesmo, com a candidata a cair abaixo dos representantes da extrema-direita. 

As posteriores entrevistas de Pécresse vieram a confirmar a sua inabilidade de “atuação”, algumas contradições no seu programa e, essencialmente, uma imagem “figée”, humanamente pouco simpática, a querer fazer passar por determinação o que parece ser um caráter rígido, numa figura que também parece revelar alguma falta de rasgo. O estilo burguês “bem” da candidata, aquilo que os franceses chamam “bobo”, também não ajuda.

E é pena, digo com sinceridade. Como atrás referi, se conseguisse chegar à segunda volta contra Macron, Pécresse retiraria bastante força à extrema-direita. Se isso não acontecer e se, ainda por cima, no caminho e por desespero, ela vier a poluir o discurso do “Les Républicans” com um argumentário de propostas ainda mais radical e reacionário do que aquele que agora já usa, Pécresse terá prestado um péssimo serviço à democracia francesa.

No seio do “Les Repúblicans”, o partido francês que mais tem mudado de nome ao longo da história, deve estar a ecoar a consagrada expressão do astronauta americano empanicado: “Houston, we have a problem!”

De votos

Espero muito sinceramente que a Comissão Nacional de Eleições saiba no que se está a meter ao fazer a interpretação que faz da lei no caso da repetição dos votos. O país não aguentaria a repetição de uma onda de recursos e contradições.

“Fazer peito”

Biden está a fazer subir a parada contra a Rússia. Podem ser boas notícias para o acordo nuclear iraniano. O presidente americano só teria condições de o fazer aprovar no congresso desde que pudesse “fazer peito” em outras geografias. É mais fácil com a Rússia do que com a China.

“À suivre”

A expulsão de um diplomata americano pela Rússia (ou vice-versa) é, por regra, um ato de hostilidade com escassas consequências. Na atual situação, acho que pode ser um sintoma um pouco mais sério do que isso. “À suivre”, como se diz na banda desenhada francesa.

“Madri me mata!”

A crise no PP espanhol é de antologia. A coabitação entre o líder Casado e a estrela ascendente Ayuso já era periclitante. Com os rumores de que “tropas” do primeiro terão procurado descobrir ou forjar debilidades da segunda e do seu entorno, tudo se complica. Sanchez ri, claro.

“ A Arte da Guerra”


Na edição desta semana de “A Arte da Guerra”, o podcast do “Jornal Económico” em que converso com o jornalista António Freitas de Sousa, analisamos as tensões mundiais à volta da Ucrânia, a agitação nas ruas do Canadá e outros lugares do mundo provocada pela resistência às leis sanitárias e o passo em falso que terá sido dado pelo Partido Popular espanhol ao provocar eleições antecipadas em Castilha-Léon.

Pode ver clicando aqui.

terça-feira, fevereiro 15, 2022

5-0

Aquele polícia de trânsito húngaro foi implacável. A multa, pelo excesso de velocidade, era mesmo para pagar. O recibo era constituído por uma espécie de bilhetes, agregados uns aos outros, tipo rifa, até perfazer o montante final. Recordo que nos rimos muito quando vimos surgir aquela longa papelada, o que causou estranheza aos cívicos. Mas não havia nada a fazer.

Estávamos em setembro de 1979. Por ali, era ainda o tempo do “socialismo real”, embora um dos mais “soft” de todos. Tínhamos decidido, nas nossas primeiras férias a partir de Oslo, onde eu fora colocado em maio e substituíra o embaixador durante o Verão, dar uma volta, no nosso refém-comprado Golf, durante três semanas, por alguma Europa. Não havia muito dinheiro, mas havia imensa vontade de conhecer mundo. E tinha sido assim que havíamos aportado à Hungria, depois de atravessar cinco países.

Sanado que foi, pelo desbaste na carteira, o incidente de trânsito, e porque o dia estava a declinar, pensámos que talvez valesse a pena dormir logo por ali. Era uma cidade de província, cujo nome nos dizia pouco, pelo que os escassos hotéis deviam ser baratos. E conseguimos alojar-nos, com facilidade e a bom preço. 

Chegados ao quarto do hotel, abri a janela. Vi então que havia um estádio de futebol, quase em frente. Na parede do estádio, estava um nome. Nesse instante, como dizem os brasileiros, “caiu a ficha”! Afinal, o nome da cidade era-me traumaticamente familiar e, mais do que isso, o clube também.

13 anos antes, o (meu) Sporting fora jogar por ali, para a Taça dos Campeões Europeus. A equipa era de luxo, parte dela vinda do Mundial desse ano, em Inglaterra. O treinador era um espanhol chamado Argila. Recordo muitíssimo bem - porque ouvi isso no relato da rádio e, depois, “escalpelizado” (como então se dizia muito) na “Bola” - que a tática do “mister” de além-Caia foi jogar com dois “liberos” (duplicando o “catenaccio” italiano) em frente ao guarda-redes, com uma “cortina” de quatro defesas, três jogadores a meio campo e, lá à frente, para “segurar” o adversário, a “jogar sem bola”, o pobre do Figueiredo, o “Altafini de Cernache”. 

A localidade chama-se Györ. (Belíssima cidade, onde já lá voltei. Falar-se-ia depois muito dela, porque foi por cá que morreu, um dia, fulminado em campo, Fehér, um jogador que lá havia nascido). O clube era o Vasas. O resultado foi uma derrota do Sporting por 5-0.

Ainda estou para perceber por que diabo me lembrei disto agora!

CorreçãoLeitores deste blogue chamaram-me entretanto a atenção para um erro crasso que figura no texto supra. Foi o Vasas de Budapest que derrotou o Sporting, por 5-0, em 1966. O clube de Györ, que mudou de nome 13 vezes desde a sua criação, chamou-se também Vasas Eto Györ. Era esse ainda o nome que figurava na parede do estádio, quando visitei a cidade. Daí a minha confusão. E este pedido de desculpas. Como alguém dizia: temos direito a ter as nossas opiniões, mas não temos direito a ter os nossos factos.

segunda-feira, fevereiro 14, 2022

A NATO e nós

Portugal é um país membro da NATO (por cá, no início, dizia-se OTAN, mas, com o tempo e com implícita admissão das realidades da vida, o acrónimo anglo-saxónico impôs-se). Aliás, é mesmo um seu país fundador, juntando-se a um núcleo de Estados do “mundo livre” que, em 1949 - não pelos nossos lindos olhos, mas porque as vantagens atlânticas e das Lajes o justificavam - abriram uma exceção para incluir no seu seio uma pequena ditadura à beira mar plantada, que tinha andado a “fugir por entre as pingas” durante a recente guerra mundial. Esses outros países, todos eles democracias, não se importaram, por “realpolitik”, de incluir Portugal na organização, dando assim um prémio (e um seguro de vida) a Salazar e uma bofetada a quantos lutaram contra ele e pelas ideias dos Aliados. A Guerra Fria era assim mesmo: estar “do lado certo” não obrigava a um atestado de bom comportamento em matéria de liberdades. Outros regimes do mesmo quilate e alguns bem piores, um pouco por todo o mundo, embora sem o “selo” NATO, viriam a fazer parte dessa família do lado “de cá”, cimentada pela bondade da luta contra o comunismo - espaço onde as “amplas liberdades” eram o que entretanto se viu. Portugal foi tendo, depois, umas guerras lá por África. Eram guerras só “nossas”, num tempo em que o “out of area” ainda não estava na moda, isto é, que os EUA - a NATO é assim a modos que um heterónimo dos EUA, que lhe orienta os destinos - ainda não tinha decidido que o “NA” da sigla era apenas um detalhe. Além disso, por muito que por cá se refilasse, as guerras coloniais não eram agressões externas (como se provou na Argélia que, para quem se não lembrar, foi um espaço integrado nas Comunidades Europeias). Por que digo isto? Porque o tratado constitutivo da NATO - e relembro que a Constituição democrática confirma a nossa pertença à Aliança Atlântica, coisa sobre a qual a lei fundamental da ditadura era omissa - implica, pelo seu artigo 5°, que uma agressão externa (repito, de uma entidade externa, porque se a Turquia atacar a Grécia, sendo ambos membros da organização, o caso muda de figura) a um dos seus Estados membros isso configura um ataque a todos. Agora, perante a tensão à volta da Ucrânia, a NATO decidiu reforçar as forças armadas de alguns dos seus novos membros, que a geografia já tinha colocado próximos da Rússia e a vontade política (deles e do mundo ocidental, isto é, dos EUA com a anuência dos restantes) trouxe, entretanto, para a organização. E Portugal - e muito bem, porque os tratados de defesa não são apenas válidos em dias de sol - deu o contributo que lhe foi pedido. Por cá, alguns adversários da NATO abespinharam-se. Sinceramente, sem a menor razão: Portugal fez aquilo que tinha que fazer, como membro leal da organização que se comprometeu a ser. É que as alianças não são “à la carte”. Assim, se um qualquer país NATO vier a ser agredido pela Rússia (não parece haver outros potenciais candidatos para isso no mercado militar europeu, embora não haja sinais de que essa “linha vermelha” venha a ser ultrapassada por Moscovo), a NATO entrará em guerra com a Rússia e, por essa razão, Portugal também. É a vida! Ou, pior, pode ser algo um pouco menos agradável do que isso.

domingo, fevereiro 13, 2022

Lítio

Portugal parece nunca perder uma oportunidade para perder uma oportunidade que lhe surja. A demagogia “nimby” sobre a exploração do lítio, contra a evidência científica e a racionalidade económica, pode fazer desperdiçar uma hipótese rara a um país reconhecidamente parco em recursos naturais.

Bola

Alguém já viu, alguma vez, algum resultado concreto, em sede de justiça comum, dos frequentes processos anunciados por uns dirigentes desportivos contra outros? Posso ser eu que tenha má memória.

Davidovichios

O simplismo caricatural (ou a ignorância) de alguma imprensa dá ao Bloco de Esquerda, com frequência, o rótulo de “trotskista”. Ora o Bloco teve, na sua origem, maoístas de matizes diversas (Rosas e Fazenda), católicos radicais (Pureza) e ex-PCP (Portas). E também trotskistas, claro! Bolas! Estudem!

De voto

Depois da vergonha que sucedeu há dias, é urgente rever a lei eleitoral que regula o modo como se processa o voto dos cidadãos no estrangeiro. Mas também é (perdão, seria) preciso haver alguma coragem para limpar a idêntica vergonha que são os atuais cadernos eleitorais.

sábado, fevereiro 12, 2022

DeRaiz


Assim não vamos lá! Ou há mudanças drásticas ou este país não se endireita! Não há dietas que resistam, o colesterol (como a inflação, os juros e o serviço da dívida) não para de aumentar, os trigliceridos disparam, os açúcares ficam sem dono. O SNS, assim, estoura! Ou se aproveita esta maioria absoluta para pôr cobro a isto ou o país fica ingovernável!

Ontem, fui a um restaurante que se revelou “impossível”. Ia por indicação de um amigo, que sabe imenso da poda. Era, disse-me, um local “muito bom e a preços muitos decentes”. 

Pois isso! Desconfiei logo! A 12 minutos do centro de Viseu? Este tipo de lugares excêntricos criam-me sempre uma fundada suspeita. Ó meus amigos, como diria o diácono Remédios, com sotaque viseense (e é de Viseu que estamos a falar), isso não existe! Ou melhor, se acaso existe, é por más razões e a prudência básica aconselha a que seja proibido.

Ia dormir a Viseu e tinha-me perguntado: “onde é que vou jantar?” Conhecia vários restaurantes na cidade, mas apetecia-me experimentar algo de novo. Lembrei-me então de telefonar ao tal amigo que sabe destas coisas como ninguém e que, sem o saber, é, desde há alguns anos e muitas análises clínicas, um ódio profissional desconhecido do meu médico generalista. 

“Vá ao DeRaiz!”. Nunca tinha ouvido falar. Porque sou um crédulo, um ingénuo, lá fui. 

(Agora posso confessar: necessitava de passar, numa mesa para entreter, a hora e meia do Porto-Sporting da noite de ontem, não fosse dar-se o caso de ser tentado a ver na tv o “prélio” (ainda alguém se lembra desta palavra?). E, ao que parece, ainda bem que não vi!)

Na cidade das 27 rotundas, tendo por companhia sonora a conhecida menina do Wase, lá fui ao DeRaiz. 

(Um destes dias, quando não houver crianças caídas em poços em Marrocos, presumíveis terroristas lusos com saloias botijas de gaz e uma quase guerra quente na distante neve ucraniana, que serve para entreter comentadores internacionais de cabelos brancos a perorarem coisas graves, a nossa grande mídia tem de nos dar a conhecer a cara dessas gentis senhoras que nos sussurram o caminho pelas ruas, e que já bem íntimas são do nosso tímpano.)

Foram então rotundas depois de rotundas, mais saídas para a esquerda do que para direita (coisa rara na zona, mas que gera esperança de que muitas coisas se componham), quelhos e vielas, até que chegámos a um largo. Ao lado, a capela, como o nome da rua indicava, à frente, o que viria a revelar-se quase um  altar. Porque a celebração estava para vir. 

Casa de pedra rija, bem renovada, no meio da aldeia. Entrámos. Ambiente acolhedor, pessoal impecavelmente fardado para a função, profissionalíssimo, regras de higiene corretas (luvas para colocar copos e talheres), dois andares muito bem decorados.

Aquele meu amigo só podia estar a gozar: coisas assim não existem! Em especial, como dizem os britânicos, “in the middle of nowhere”!

A oferta de um bom rosé, à chegada, deixou-me logo de pé atrás. 

Veio a carta, a lista de vinhos, ambas variadas e informativas, e, surpresa das surpresas, todos os preços eram muito honestos. 

Havia ali qualquer coisa que não batia certo, pensei para comigo! Alguma coisa devia estar mal! E, claro, fiquei “na retranca”, porque já levo muitos anos de isto! Pensei: a comida deve ser muito má! 

Passado o bom “couvert”, chegaram um pastel de massa tenra e uns ovos verdes. Magníficos, com o meu ovo a surgir numa imaginativa gaiola. 

Entretanto, o tinto do Dão, escolhido sob recomendação da casa, marchava muito bem.

Começaram a pousar, depois, os pratos, com o serviço a emergir num tempo certo, não obstante a sala estar plena (de gente iludida como nós, pensei), com distância prudente entre as mesas.

Agora é que vão ser elas! Devem vir por aí umas vitualhas menores! Como o bacalhau à Brás esteve muito bom, esperei que pato assado com arroz de forno desiludisse. É o desiludes! 

Devia ser nas sobremesas que tudo se iria estragar, refleti! Era isso! Mas não é que um pão-de-ló da avó estava à altura? Ainda os provoquei ao pedir um “strudel” de ananás, mas, surpresa das surpresas!, estava também bem no ponto.

Furioso comigo mesmo, porque sabia, de ciência certa, que as coisas não podiam correr tão bem como estavam a correr, que devia haver uma explicação secreta para todo aquele inesperado acerto, aguardei pela fatura: devia vir aí uma “conta calada”, com coisas inventadas, eu sei lá! Sorrindo para dentro, com uma deliciada fúria antecipada, esperei. Preparei-me para fazer uma cenaça!

Chegou o papelinho. Li e reli! Não podia ser! Estavam a gozar comigo! Fiquei furioso! Tinha comido lindamente, com um serviço impecável, num ambiente muito agradável, por um preço honestíssimo. Isto fazia-se?!

Como é que me poderia vingar? Só tinha uma maneira: espalhar, ”urbi et orbi”, que, no DeRaiz, ali ao lado de Viseu, se come de forma magnífica. 

Se calhar, é isso!, não querem que se saiba! Pois eu digo e, agora, amanhem-se! É uma afronta servir tão bem e com preços tão honestos. Isto não se faz! A Inês e o Nuno não se podem ficar a rir de nós! É preciso que todos saibam e divulguem! 

É o que eu digo! Este país, assim, não vai lá!

sexta-feira, fevereiro 11, 2022

É isto que eu penso!

Aqui vai um texto que desagradará a gregos e, decerto, também a turcos, já que os troianos há muito saíram de cena.

Cá por Portugal, os fanatismos estão a ser assim.

Por um lado, temos o patético fanatismo russófilo dos órfãos do “muro” e da URSS, para quem o autoritarismo de Putin funciona hoje como uma espécie de “revanche” anti-ocidente, na raiva pela “banhada” que apanharam na Guerra Fria, embrulhados no seu anti-americanismo doentio.

Por outro lado, temos o fanatismo subserviente a quase tudo o que for ordenado por Washington, dos que gostavam de ver a NATO na Antártida e no Burkina-Faso, dos herdeiros do anti-comunismo “coldwarrior” e do triste “catering” das Lajes, ansiosos por humilhar uma vez mais Moscovo e, talvez, até de “molhar a sopa“, desde que as ogivas não se mexam.

Os primeiros, fazem de conta que não houve nenhum “golpe de mão” à Crimeia, que a História absolverá tudo ao nacionalismo caduco de Moscovo.

Os segundos não admitem que a Rússia condicione a Ucrânia, para preservar a leitura que tem da sua segurança, embora não gostem que se lhes lembre o que os EUA continuam a fazer a Cuba. 

É isto que eu penso.

quinta-feira, fevereiro 10, 2022

Tempos


Estas pessoas, e outras com elas, sonharam, em outros tempos, vir a implantar em Portugal a chamada ”ditadura do proletariado”. Consideravam ser esse o modelo de sociedade que melhor correspondia aos interesses do povo português, que entendiam representar, em sintonia com muitos que, pelo mundo, cultivavam projetos similares. 

Falharam. A meu ver, ainda bem.

Paradoxalmente, ao terem sacrificado a sua existência - às vezes a vida, quase sempre a liberdade - na luta por esse desígnio radical, ajudaram imenso a abrir caminho à democracia burguesa que hoje temos. De que agora fazem parte, de pleno direito.

Cada um falará por si. Eu estou-lhes muito grato por isso.

‘A Arte da Guerra”


China, Ucrânia e Guiné-Bissau são os três temas que, esta semana, analiso com António Freitas de Sousa em “ A Arte da Guerra”, o podcast do “Jornal Económico”.

Pode ver clicando aqui.

quarta-feira, fevereiro 09, 2022

Amizade para a vida


Naquele que era o meu primeiro dia de Paris, num agosto de brasa, já na segunda metade dos anos 60 do outro século, eu tinha iniciado uma espécie de peregrinação pelos clichés da cidade, que trazia bem gravados na imaginação, fazendo, à passagem em cada um, como que um “vêzinho” mental. E eles eram tantos!

O velho “Baedeker” que havia lá por casa, em Vila Real, tinha-me adubado a curiosidade e ajudado a colocar as imagens dos prédios e monumentos na geografia dos percursos que planeara. Aquela bela jornada de sol estava, assim, transformada numa espécie de “déjà vu” afetivo, desculpável deslumbre de quem tinha ido, quase diretamente, de uma pachorrenta Vila Real para aquele outro mundo que eu achava que era, afinal, o mundo que valia a pena.

Tinha chegado na véspera, à Porte d’Italie, à boleia (é verdade!), saído, dias antes, da rotunda do Relógio, em Lisboa. Ia sozinho, como os filhos únicos sabem andar, com um saco alpino ao ombro. Tinha ido dormir na camarata de uma residência para estudantes, depois de muita procura.

Sabia que “Paris é uma festa”, embora ainda não tivesse lido o livro (menor) de Hemingway. Levava comigo o endereço do Harry’s Bar (“sank roo doe noo”, como os americanos aprendiam foneticamente a dizer aos taxistas), apenas para a teimosia de ir lá beber, como sabia que ele por ali tinha bebido, aquele que deve ter sido o meu primeiro e último “bloody mary”, algo que logo passei a detestar. É que cedo aprendi que há certas coisas que tem mesmo de se fazer na vida, pelo menos uma vez.

O “Les Champs-Élysées”, de Joe Dassin, ainda não tinha sido gravado, mas recordo ter subido por ali acima, deslumbrado pela vastidão do espaço e pelo corte das árvores, olhando os números das portas, mesmo sabendo que o 202, onde “moraram” o Jacinto e o Grilo, era uma invenção inencontrável do Eça.

Da Étoile, praça que ainda ninguém tinha tentado crismar de Charles De Gaulle, que então ainda estava a viver no Eliseu, desci a avenue Foch. Queria chegar, lá ao fundo, ao bosque de Bolonha, à procura de um certo ambiente de um policial de Simenon que lera pouco tempo antes (deve ter começado ali o meu vício de visitante obsessivo de lugares da ficção e da História). No final da avenida, por uma rua que não reparei que se chamava Crevaux - sem eu então saber, ali tinha sido a primeira morada parisiense de Eça -, fiz um desvio deliberado, para espreitar um certo edifício.

Queria ir ver a embaixada de Portugal. As grandes portas de madeira que dão para a rue de Noisiel estariam fechadas. Imagino que a nossa bandeira, saída do varandim do terraço, estivesse içada. Terei tido, talvez, um breve frémito de saudades da pátria, mas logo deve ter passado, na euforia em que andava. Pensaria que, lá dentro, estariam uns senhores graves, engravatados e vestidos de escuro, numa rotina de salamaleques. Que vida estranha! Passei adiante e fui ver o bosque.

Eu estava em França, caramba! Às vezes, ponho-me a imaginar a felicidade adolescente que, por esses dias, me atravessaria. A longa distância de qualquer outro país, só com a América a aproximar-se um pouco, a França, para mim, era um eldorado de referências - muitas da História, da música do “Salut les Copains”, já de algum cinema e, ainda muito pouco por essa altura, de alguns livros.

Sem grande dinheiro para extravagâncias, como então se dizia, dava-me por satisfeito por estar a ser um “voyeur” de uma vida urbana que tinha por quase ímpar, e que achava, em definitivo, fascinante. E olhava as montras, as luzes, os outros, contente só pelo facto de poder flanar por ali. Esse dia foi o início de uma “amizade” para toda a vida. Ali com Paris, já há uns dias com a França.

Hoje, pensando retrospetivamente nesse meu primeiro mergulho civilizacional além fronteiras (do “estrangeiro”, apenas conhecera Verín, Tuy e Orense!), dou-me conta de que, em absoluto, não pressentia a sina dos já muitos milhares de portugueses que, longe dos “boulevards” onde eu me passeava e passeava o olhar, acordavam cedo para “construir as cidades para os outros”, como iria cantar Sérgio Godinho, com o qual, sabe-se lá, até me posso ter cruzado em alguma esquina. Nem me recordo, confesso com toda a humildade, se o nome de Champigny, por esses dias, me dizia alguma coisa.

Só o futuro me veio a ensinar que, por detrás daquele “barulho das luzes”, havia um Portugal humano, exportado no sofrimento, na busca de trabalho ou na angústia do exílio, num registo muitas vezes de privações e quase sempre de tristeza. Muito mais tarde, vim a perceber que saber “dar a volta por cima”, com dignidade e muita luta, acabou por ser a vingança morna de muita dessa gente fantástica que o destino, um dia, me veio a dar o orgulho de representar por ali.

A França e a língua francesa tinham entrado, desde muito cedo, na minha vida, ainda em Vila Real. O meu pai, bancário de profissão, era um francófilo ferrenho. Nunca tinha ido a França, mas dava aulas gratuitas de francês e ensinou-me a frase de Thomas Jefferson: “Tout homme a deux patries: la sienne et la France.” Lembro, às vezes, de ele me ter dito que, como democrata, lhe custava olhar a célebre fotografia das tropas da Wehrmacht a descerem os Campos Elíseos, ofendendo o nome do Arco, que se via ao fundo. A França, para ele, era como que o outro nome da liberdade. Os escassos livros que não eram escritos em português, dos muitos que havia lá por casa, eram todos em francês.

Não valerá a pena repetir a banalidade de que, até à minha geração, o francês era a segunda língua de quem, em Portugal, tinha acesso à cultura. Depois, um dia, o inglês chegou, viu e, em poucos anos, venceu o francês. Tive a sorte de ter feito parte de uma geração de transição, que, tendo mantido a França como “meca”, teve também o privilégio de poder usufruir, nas décadas seguintes, da fantástica riqueza da cultura do mundo anglo-saxónico.

Um dia, no termo de uma carreira na diplomacia que nunca me tinha dado como destino um país de língua francesa, recebi, encantado, o convite para ocupar o posto de embaixador em Paris.

Quando, numa noite fria de início de fevereiro de 2009, chegámos à rue de Noisiel, para aquela que seria a derradeira etapa de uma vida profissional muito feliz e melhor realizada, posso jurar que me lembrei do miúdo que por ali tinha andado a espiolhar aquela casa por fora, num dia de sol, mais de quatro décadas antes. Foi, fui um miúdo com muita sorte.

A França, entretanto, por cá, entrou-nos portas adentro. Foram bandos crescentes de turistas a encher os hotéis, antes da pandemia. Foram reformados e investidores, a comprar, casas, quintas e o sossego barato. Não vou ao ponto de dizer, como já ouvi, que há que recomeçar a cantar a Amália do “Lisboa, não sejas francesa”.

Mas ver Éric Cantonna a morar no topo da minha rua e ouvir, com um sorriso meu que eles não entenderam, dois franceses numa leve altercação na nossa garagem coletiva, revela bem quanto o Portugal que já foi das nossas bravas “concierges” e da gente do “bâtiment”, se tornou, afinal, numa terra muito interessante para os franceses de hoje.

Esta “quarta invasão” francesa já não obriga a esconder sob a terra, para não serem saqueadas pelas tropas napoleónicas, as garrafas do vinho que, lá por Boticas, ficou, por essa razão, a ser conhecido como “dos mortos”. E as obras de arte, salvo se estiverem à venda em antiquários, estão, desta vez, a salvo. Os franceses que por aí andam vêm agora pela gastronomia, pela segurança, e, tenho mais do que certeza, pela simpatia em que eles sabem, melhor do que ninguém, que os portugueses são imbatíveis.

Até a língua francesa, para alegria de quem a aprecia, começa a falar-se bastante mais por cá. E espero que bem melhor do que a que era praticada por aquele fulano, a quem, há muitos anos, na esquina do Hotel Aliança, em Viana do Castelo, vi apontar, simpático e elucidativo, na direção do norte, a um turista francês perdido, que procurava o caminho para Espanha: “Vallez sempr’en frent!”

(Texto hoje publicado a convite do “Jornal de Letras, Artes e Ideias”, na edição que assinala o início da Temporada Cruzada Portugal-França 2022)

João Ferreira Amador

Detesto esta necessidade regular de converter o que por aqui escrevo em apontamentos necrológicos. Mas dá-se o caso, simultaneamente triste e inevitável, de ter cada vez mais mortos conhecidos. Não sou o único, eu sei.

Há pouco, passada a meia-noite, no on-line do “Público”, fui surpreendido com a triste notícia da morte do João Ferreira Amador, aos 92 anos. Tinha-me chegado que, desde há bastantes anos, ele vivia distante do convívio consciente com os seus.

Era um homem sereno, de fala pausada, com um trato magnífico e um sorriso permanente. Antes do 25 de Abril, tinha feito um percurso profissional na administração ultramarina. Tinha já 44 anos quando, em 1975, fez concurso e ingressou no Ministério dos Negócios Estrangeiros, ocasião em que coincidimos.

Tenho quase a certeza de que o João Ferreira Amador foi a pessoa que, com mais idade, alguma vez acedeu, por concurso público, à diplomacia portuguesa. Em si mesmo, isso representou uma extraordinária prova de humildade, dadas as funções subalternas que os primeiros anos da carreira sempre implicam. Como que a compensar essa circustância, o ministério atribuiu-lhe sempre tarefas consulares, onde acabava por ser chefe de si mesmo. O seu último lugar foi cônsul-geral em Madrid.

Por singular coincidência, do grupo de menos de uma vintena de colegas que tomaram posse nesse dia 13 de agosto de 1975, o João Amador e eu fomos os únicos a ser mandados prestar serviço, por alguns meses, no Gabinete Coordenador para a Cooperação, sob a tutela da Comissão Nacional de Descolonização, da Presidência da República, e, depois, para um efémero Ministério da Cooperação. Fizemos então uma boa amizade, convivendo diariamente, num ambiente muito agradável. Foi um período bem divertido, com grande autonomia de ação, de que guardo uma boa memória.

Tempos depois, começava o nosso “baile” de rotina na carreira. O Amador (era assim que eu o tratava e ele, a mim, por Seixas) foi para o Congo e eu para a Noruega. Depois passou para o Brasil, comigo a ser mandado para Angola. E por aí adiante. O João Amador saiu do serviço ativo em 1995. Fez exatamente 20 anos na segunda carreira que escolheu e muito bem serviu.

Data de agosto desse ano de 1995 uma fotografia de um jantar, no Clube de Jornalistas, onde se vê o João ao lado da maioria das pessoas desse nosso ingresso de 1975. Quando, em 2015, comemorámos os 40 anos dessa data, num restaurante de Campo de Ourique, o João já não nos pôde acompanhar, por razões de saúde.

Lá se foi agora o João Amador. À sua família deixo sentimentos sinceros de muito pesar, que sei partilhados por todos que com ele tiveram o gosto de conviver.

terça-feira, fevereiro 08, 2022

Cáucasos

Aguarda-se, com curiosidade, a reação de um responsável do Chega, Mithá Ribeiro, quanto à qualificação de “brancos” e “caucasianos” que outro responsável do Chega, Pacheco de Amorim, colou à imagem dos portugueses. É claro que, geograficamente, como se sabe, há o Cáucaso do Norte e o Cáucaso do Sul…

segunda-feira, fevereiro 07, 2022

Patos e fascistas

Porque os dias que correm são o que são, lembraria que existe uma regra, quase infalível, para identificar fascistas. Basta tornar-lhes extensiva a clássica fórmula utilizada para identificar patos: se se parece com um pato, nada como um pato e grasna como um pato, então provavelmente é um pato.

Maria Carrilho




Sempre alimentei a ideia de que Maria Carrilho, que agora desaparece, acabou por ter uma intervenção política que ficou bastante aquém daquilo que as suas qualificações justificariam. Era muito preparada, inteligente, sabia bem os dossiês e sempre a vi muito rigorosa nas suas intervenções.

Foi deputada nacional e europeia, teve relevantes funções partidárias, mas pareceu-me sempre uma voz algo solitária e desaproveitada no nosso universo político. 

Um dia, foi ver-me à embaixada em Paris. No almoço que lhe ofereci, eu, que tinha com ela uma escassa intimidade mas uma muito cordial relação, criada precisamente nas andanças políticas, disse-lhe isso. Ela sorriu, deu aquela gargalhada contida que era a sua e, com a inconfundível voz pontuada, que lia as palavras até ao fim, disse-me: “Provavelmente tem razão, Francisco. Mas a vida é assim mesmo!”. E essa parte da conversa acabou por ali. 

Maria Carrilho foi uma académica, uma socióloga que se especializou em questões de Defesa. A Maria era muito bonita, como também tem sido dito, um pouco por toda a parte, nas últimas horas.

Restaurantes


Porque a vida me tem dado essa facilidade, sou um regular frequentador de restaurantes, como constata quem por aqui me lê. Interrogo-me, por vezes, sobre se não será quase ofensivo o ato de escrever sobre as visitas a esses locais, num tempo de muitas dificuldades e de privações para tanta gente. Contudo, sempre considerei que, sendo os restaurantes uma fonte de legítimo negócio e de muito emprego, talvez fosse minha obrigação, como seu utente, em especial agora, nestes tempos de pandemia, ajudar a destacar quem se esforça profissionalmente nessa área.

Sei bem das dificuldades por que passaram alguns restaurantes nos últimos dois anos. Dei, a dezenas deles, provas concretas da minha solidariedade, pelas visitas ou encomendas que lhes fiz, pela publicidade (sempre gratuita, jamais com “borlas”, sem uma única exceção) que, por aqui e por jornais e revistas, lhes fui efetuando. E é minha intenção continuar a fazê-lo, na medida do possível e do que entender justo, sempre sob critérios de justiça, equidade e sem o menor “amiguismo”.

Dito isto, com toda a frontalidade e transparência, e reconhecendo bem os problemas que atravessam muitos restaurantes, sou hoje obrigado a uma triste constatação: está a haver um obsceno - sublinho, obsceno - e brutal agravamento de preços em algumas dessas casas, em muitos casos acompanhado de alguma visível degradação da qualidade do serviço (em especial, pela redução em termos de recursos humanos). Tem-me sido dada a justificação da forte subida de preços que estará a ocorrer em alguns produtos. Em alguns casos, posso aceitar essa explicação, mas deteto, para além disso, algum oportunismo circunstancial.

Acho, em particular, menos honesto - e meço bem o que digo - o escandaloso salto de preços que, quase de um momento para o outro, se verificou nos vinhos. Porque trabalho, já há quase uma década, numa empresa de distribuição de produtos alimentares, sei comparar os preços que me surgem nas listas dos restaurantes, não apenas com aqueles que se praticam nas grandes superfíceis (onde me abasteço como cliente) e os que os restaurantes obtêm, através dos distribuidores, em condições ainda mais favoráveis. Sei, por isso, que não há nenhuma justificação para o escandaloso exagero que está a ser praticado nos vinhos, em muita da nossa restauração. Procurar compensar perdas passadas com um brutal encargo sobre vinhos que são comprados (ou que, algumas vezes, já estavam em adega) a preços muito mais baixos é uma prática comercialmente muito pouco ética.

(Tenho um amigo, profundo conhecedor do setor da restauração e, há muitos anos, ele próprio produtor de vinhos de qualidade, que não se cansa de dizer: “Num país como Portugal, não há a menor justificação para que o preço médio de uma garrafa de vinho num restaurante ultrapasse o preço médio dos pratos”.)

A prosseguirem esta prática especulativa, alguns restaurantes, podendo ainda não o ter percebido, estarão  matar, a prazo, “a galinha dos ovos de ouro”: irão começar a perder rapidamente grande parte da sua clientela habitual, que tenderá a não voltar com tanta frequência, chocada com o “saldo” das visitas mais recentes. Pensem nisto!

domingo, fevereiro 06, 2022

Um abraço, Edite!


A propósito de alguma gente que por aí anda a bolsar a sua azia sazonal, lembro-me de que, na nossa terra, costuma dizer-se, a bem da lavoura: "Quem lhes atasse um arado!".

Um forte e amigo abraço, Edite!

Espero sentado?

Há uns tempos, um grupo de pessoas de uma nova geração da direita portuguesa publicou uma declaração em que definia uma “linha vermelha” face ao Chega. O texto acabou por ter maior expressão, porque, por coincidência, saiu ao tempo do entendimento PSD/Chega nos Açores.

Não sei até que ponto, com estes meses e tempos políticos passados, a globalidade dos subscritores se reveem, em absoluto, no que escreveram. Duvido. Alguns, porque lhes conheço a integridade, tenho a certeza de que sim. Outros terão sido conquistados para teses de oportunismo.

Esse oportunismo é de recorte muito simples: não representaria “fazer uma aliança” com o Chega a possibilidade de aceitar que, no parlamento, os votos deste, associados aos da direita democrática, pudessem ser utilizados para esse “valor maior” que era afastar o PS do poder.

Essa outra direita, com contrastante ética política, apodou os subscritores do tal manifesto de “direita fofinha”, de envergonhados “compagnons de route” do PS. O exercício do MEL acabou por constituir um elucidativo barómetro para a separação dessas águas.

Se a composição do parlamento fosse agora outra, com o PS ou o PSD apenas com maioria relativa, propiciando arranjos de governo ou de oposição, teria ficado muito claro até onde é que cada um estava disposto a ir, isto é, até onde a “resistência” anti-Chega sobreviveria.

Mas vida não foi por aí. O PS tem maioria absoluta e o tempo, para a agora instalada “direita da raiva”, passou a ser medido pelos quase cinco anos de espera à sua frente. E já se percebeu, ainda por esse referencial que é a atitude face ao Chega, que chegou o tempo do vale-tudo.

Este seria o bom momento para um novo manifesto da tal “direita fofinha”, ou para o que dela resta. Como democrata, assusta-me, com a maior sinceridade, que o declínio do PSD fossa vir a dar origem a uma direita futuramente eleita apenas para ser uma raivosa oposição.

Alguns dos meus correligionários de esquerda não me perdoarão isto, mas é para o lado que durmo melhor: não quero ver o PS permanentemente no poder. Fizémos (e não é um plural majestático) o 25 de Abril para garantir a alternância. E desejo-a. Mas só quando a direita o merecer.

Não me peçam, naturalmente, para votar na direita (sofri na pele a sua governação e tenho muito boa memória), mas não me assusta que, quando o eleitorado decidir, face a erros do PS (em que voto com toda a convicção) ou a méritos próprios, que ela possa vir a assumir o poder.

A direita democrática, a direita de cara lavada mas não de “cara al sol”, tem de se reconstituir para ser elegível - repito, cenário essencial para a sanidade do nosso sistema político. Para tal, não lhe basta afastar-se do Chega, condição “sine qua non” mas não suficiente.

Essa direita decente deve ter a coragem de denunciar, dentro de si, “naming names”, quem hoje lhe dá má fama, quem não revela ética cívica, quem já “matou o pai” democrático e está disposto a “vender (ou a privatizar) a mãe”, para ter um quinhão de poder. Fico à espera. Sentado?


sábado, fevereiro 05, 2022

Fernando Silva Marques

Desapareceu agora uma figura da diplomacia portuguesa muito pouco conhecida do grande público. Chamava-se Fernando Silva Marques.

Há dois dias, tinha completado 90 anos. Teve postos tão importantes como embaixador junto das instituições europeias, em Bruxelas, na Alemanha, em Angola, nos Países Baixos e no Canadá, tendo também servido no Malawi. Além de outros cargos dirigentes no Ministério dos Negócios Estrangeiros, foi aí secretário-geral. Esteve também ligado à Sedes.

No tempo de mudança que se viveu no palácio das Necessidades, após o 25 de Abril, Fernando Silva Marques foi a cara da dimensão económica da nova diplomacia portuguesa. Como subdiretor-geral dos Negócios Económicos, foi ele quem esteve no centro da negociação de uma multiplicidade de acordos com os países socialistas do centro e leste europeu, que a Revolução tinha aberto diplomaticamente a Portugal. Talvez por preconceito ideológico, as pessoas já terão esquecido o muito que as empresas portuguesas beneficiaram desses novos mercados.

Contrariamente ao que hoje acontece, o Ministério dos Negócios Estrangeiros era, à época, no plano bilateral, a entidade do Estado português que centralizava e coordenava todas as negociações. (No plano multilateral, o Ministério das Finanças tinha já uma forte atividade externa, muitas vezes em compita com o MNE). Entre meados de 1974 e inícios de 1976, Fernando Silva Marques dirigiu essas operações. Trabalhador, muito competente tecnicamente, criou então um assinalável prestígio profissional, nesse tempo em que um escol de diplomatas, do melhor que a nossa administração pública tinha, conseguiu “segurar as pontas”, tentando preservar a máquina da política externa da convulsão política dos dias, desse modo ajudando a estabilizar, no plano internacional, a imagem da democracia nascente.

Trabalhei sob as ordens de Silva Marques, na embaixada em Luanda, em 1982/83. Tive o privilégio de ele me ter dado uma imensa autonomia funcional, o que me terá ajudado a ganhar entusiasmo por uma profissão em que, até então, ainda me não sentia muito confortável. Criei com ele uma relação de respeito e grande simpatia, que se manteve ao longo dos anos. Tive o imenso gosto de poder contactar com a amabilidade da sua amiga presença quando, há anos, lancei um livro do CCB.

Sinto muita pena pela morte do embaixador Fernando Silva Marques, deixando aqui expresso o meu pesar à sua família e, em especial, à sua mulher, Natália.

sexta-feira, fevereiro 04, 2022

Diversão da legislatura

Mandaram-me um extrato de uma intervenção, numa televisão, de um patusco novo deputado do Chega, a dar-se ares de quem quer ser levado a sério, pretendendo fazer vingar um discurso de moralismo reacionário à quinta potência. Aposto que vai ser umas das diversões da legislatura.

Vamos ser sérios!

Há uma óbvia dramatização artificial no seio da NATO, quanto à ameaça russa: nunca, até hoje, desde o fim da Guerra Fria, se assistiu a alguma ameaça russa a um país da NATO ou às suas fronteiras. Moscovo sabe muito bem que essa é uma linha vermelha. E o ocidente sabe que a Rússia sabe.

Crimeia

Foi curioso ouvir Putin dizer que o (implausível) acesso da Ucrânia à NATO poderia redundar numa guerra com a organização, porque o país poderia aproveitar para tentar retomar a Crimeia. Como se tivesse havido a menor legalidade na captura daquele território pela Rússia, em 2014.

Casamento de conveniência

Mesmo com inevitáveis solavancos, tenho a sensação de que, até ao fim dos mandatos de Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, a nenhum dos dois interessa romper o modelo de inteligente (e curiosa) cooperação que tem vigorado. Um “esticar de corda” resultaria impopular para ambos.

Estabilidade “a mais”

Ao dissolver o parlamento, o presidente da República sabia que corria o risco das eleições poderem vir a gerar outras situações de instabilidade, embora nelas ele pudesse vir a ter alguma “mão” e gestão do “destino”. Não terá previsto, contudo, esta de uma estabilidade “a mais”.

Amorim 2

A propósito de Pacheco de Amorim, e das suas conhecidas ligações ao terrorismo de direita no PREC, eu aconselharia à gente dos dois maiores partidos com assento parlamentar a não correrem o risco de alguém “abrir o livro” das cumplicidades com o MDLP. E mais não digo!

Louçã e Tavares

Há uns anos, Francisco Louçã ficou “à bica” de entrar para o parlamento. Muitas pessoas lamentaram a sua não eleição. Anos depois, quando acabou eleito, passou a irritar muita dessa gente. Rui Tavares é bem mais “suave”, mas preparem-se! Gente inteligente é sempre “perigosa”!

Amorim 1

Não sei se Pacheco de Amorim, com quem nunca falei, chega ou não à vice-presidência da AR. Tendo-o ouvido uma vez ou duas, uma coisa que tenho por certa: dado o abissal contraste com a maioria da gente do seu partido, vai passar a ser o seu deputado mais “frequentable”. Aposto!

Assim também eu!

Ontem, disse a alguém que estava a pensar deixar de escrever sobre política interna nas redes sociais. Vejo pouca televisão, quase não ouço comentadores, leio em diagonal um só jornal. “Pois, pois! Assim também eu! Tens os teus no poder por quase cinco anos! Nem precisas de falar”.

quinta-feira, fevereiro 03, 2022

“A Arte da Guerra”


Com um novo visual, a comemorar o início do segundo ano da conversa semanal com o jornalista António Feitas de Sousa, sobre temáticas internacionais, para o mundo audiovisual do “Jornal Económico”, falamos do desfecho das eleições presidenciais italianas, do estado da arte na crise ucraniana e das dimensões políticas dos Jogos Olímpicos de inverno na China.

Pode ver aqui.

quarta-feira, fevereiro 02, 2022

Monica Vitti


Monica Vitti morreu hoje, aos 90 anos. Aquela tristeza misteriosa foi, por bastante tempo, o rosto de um grande cinema italiano.

A força do PC

“Assim se vê a força do PC!”, é um estribilho conhecido de todos. A força do PC, depois das eleições de domingo, é muito inferior à força que o PC tinha no parlamento antes da respetiva dissolução, que o PC ajudou a consumar. Como resultado, cada vez menos se vê a força do PC.

Ontem, na televisão, ouvi atentamente João Oliveira, um dos quadros mais salientes na vida parlamentar dos comunistas, nos últimos 15 anos, que não foi eleito como cabeça de lista do partido pelo distrito de Évora. Se alguém me dissesse, no sábado, que os comunistas deixariam de estar representados no alentejano círculo eleitoral de Évora eu “explicaria”, com facilidade, a implausibilidade desse cenário.

É extraordinário como João Oliveira conseguiu, ao logo de toda a entrevista, não fazer um mínimo de autocrítica sobre a atuação do partido, não confessando um único erro, tático ou estratégico, que pudesse ter levado àquele desfecho. É que o PCP nunca tem a menor culpa, o PCP está sempre correto, são os outros, com a sua ação ou a força enganadora da ilusão a que induzem, que contribuem para tudo o que de mal sucede ao partido, no estiolar progressivo da sua capacidade de representação (“formal”, dirão, talvez) dos “interesses dos trabalhadores e do nosso povo”. O PCP fala sempre em nome do povo, muito embora, de forma crescente, esse mesmo povo tenda a fazer-se representar por outros partidos, o que vai diluindo a legitimidade dos comunistas de se considerarem os seus legítimos defensores.

Tudo o que é dito em nome do PCP - com indiscutível seriedade e óbvia genuinidade - surge sempre embrulhado num discurso previsível, repetitivo, entre um marxismo primário e mecanicista e um populismo sempre autocongratulatório, em face do trabalho político desenvolvido, ainda que marcado por uma esforçada modéstia, atrás da qual espreita a consabida “superioridade moral dos comunistas”. Ao ouvir João Oliveira ontem, tal como ao escutar o triste texto lido por Jerónimo de Sousa no domingo (num auditório coreograficamente encenado só com jovens, algo inesperado para uma força política que não nos habituou a esses artificialismos), fica-se com a sensação de que, com maior ou menor imaginação semântica, os comunistas continuam a dizer a mesma coisa, repetem quase sempre os mesmos chavões. No passado, falava-se muito da “cassette” do PCP. Se estiverem atentos, verão que pouco mudou, até na entoação das frases.

O PCP - partido pelo qual sinto uma eterna gratidão histórica, pela sua abnegada luta contra a ditadura - permanece fechado numa narrativa monocórdica, feita da mistura de palavras saídas de um léxico fixo, como se arriscar uma qualquer evolução semântica pudesse fazer incorrer os seus responsáveis numa perigosa heresia doutrinária. Dir-se-á: mas o PCP está na vida política portuguesa há 100 anos e isso deve significar alguma coisa. Devo confessar que, ao ouvir o que o PCP hoje nos diz fico com a sensação de que, mais do que um partido antigo, estamos perante um partido irremediavelmente velho. E sinto alguma pena por isso.

Este blogue


Tenho estado por aqui nos últimos 13 anos. Desde o dia 2 de fevereiro de 2009. Todos os dias. Sem exceção. Uns desistiram de ler, outros têm chegado, entretanto. Alguns gostam, outros detestam, um número muito significativo de pessoas - agora mais de 1500, em média diária, mas já foram mais e já foram menos - continua a pensar que vale a pena atentar ao que por aqui se publica. Às vezes, tenho-me perguntado: o que é que faria, se me apercebesse de que já ninguém me lia? E chego à conclusão, que não deixa de ser algo preocupante, de que, se calhar, continuava a escrever na mesma.

terça-feira, fevereiro 01, 2022

Minorias

O Bloco lembra agora a “má memória” da maioria absoluta. Curioso! Se tivessem boa memória, antes de derrubarem o orçamento, valia a pena terem-se lembrado da maioria PSD/CDS que, com o seu voto, ofereceram ao país em 2011. Quem não lembra não aprende!

O gosto do camuflado

Voltaram a estar “na moda” os golpes de Estado militares em África. Foi no Mali, foi no Sudão, foi na Guiné-Conacri, foi no Chad, foi no Burkina Faso e, hoje, na Guiné-Bissau.

Snobeiras

Ouvido há dias, num ambiente social: “Bolas! Toda a gente tem Covid! Um destes dias já nem é ‘bem’ dizermos que não tivemos Covid”.

O mundo do se

Pelas bandas perdedoras, alguns entreteem-se, por estas horas, em exercícios de história alternativa, “kiplinguiana”, do género “e se, afinal, tivesse sido assado?”, como se tal ajudasse a alguma coisa. Chama-se a isto “chover no molhado” e é o terreno fácil dos passa culpas.

2026

Há hoje duas maiorias absolutas em Portugal, convém não esquecer. A primeira foi obtida por Marcelo Rebelo de Sousa e lá estará até 2026. A segunda é do PS e caducará também nessa data. Dez anos consecutivos de Marcelo e de PS concluir-se-ão então. 2026 vai ser um ano com muita graça.

Tarde piaste!

“Se eu soubesse que o PS ia ter uma maioria “assim”, talvez tivesse mantido o voto que, em 2019, dei ao PCP”, disse-me um amigo muito próximo. “Tarde piaste!”, como diz o provérbio.

A mesa

Pergunta a um amigo “passista”, PSD “de carteirinha”, como dizem os brasileiros, que deve ter tomado sais de frutas ao pequeno almoço: “Se o PSD, por um bambúrrio, tivesse obtido uma maioria absoluta, a que restaurante irias comemorar?” Ele disse-me e eu fui lá ontem!

Agora não dá jeito!

Foram precisos 47 anos deste sistema eleitoral até aparecerem por aí uns “espertos” a fingir que não entendem (ou, se calhar, não entendem mesmo, o que é pior!) que o modelo de proporcionalidade automática dos mandatos seria um suicídio político para o país.

Horas do diabo

A frase de que mais gosto, por estas horas, é a máxima da sabedoria catastrofista: “Agora, o PS não tem desculpas!” 

Se acaso os socialistas tivessem levado uma “abada”, essas mesmas pessoas estariam a sentenciar: “Espera-se que o PS tenha aprendido bem a lição!” 

Coitados! Sejamos generosos! Afinal, há que reconhecer, não devem ser horas fáceis!

O futuro