sábado, fevereiro 19, 2022

“Não foi penalti!”

Uma vez, no velho estádio José de Alvalade, no meio de uma bancada verde que reclamava um penalti que castigasse uma suposta falta sobre um jogador do (meu) Sporting, comentei, alto: “Não foi penalti!”. 

O que eu fui dizer! Caiu-me em cima o Carmo e a Trindade! O mais meigo remoque que nesse instante recolhi foi de “lampião”, insulto-mor no clube que me tem como adepto, desde que me conheço.

Não tinha sido penalti, claro, mas afirmar isso naquele contexto era uma heresia. Porque “tenho a mania” de que sou isento a ver futebol (e sou), raramento me inibo de dizer o que penso sobre a justiça do “senhor árbitro”. E, talvez por isso, raramente vou aos estádios.

(Ainda ontem, este tweet irritou bons amigos: “A Lazio não é o Manchester City, eu sei. Mas parece-me claro, e honestamente tenho de admitir, que o Porto é hoje, nomeadamente comparado com o (meu) Sporting ou o Benfica, a única equipa portuguesa que ainda vai conseguindo sustentar um razoável estatuto internacional.”)

Mas a que propósito vem isto? Da Ucrânia. Da Ucrânia? Exatamente.

Na minha qualidade de comentador da CNN tem-me vindo a ser pedido que analise a situação que por ali se passa. E eu faço-o, tão bem quanto consigo, tentando olhar para as coisas com equanimidade - “palavrão” que tenho por princípio moral. 

Há dias, um outro amigo (tenho muitos, felizmente) disse-me, num tom que me soou um pouco chocado: “Quando, nos teus comentários, analisas o conflito na Ucrânia, chega a dar a sensação de que Biden e Putin se equivalem moralmente, de que um presidente eleito democraticamente tem uma dignidade idêntica à de um autocrata. Pareces esquecer de que lado estás.”

Achei graça ao comentário. E já o esperava. Sou cidadão e diplomata de um país da NATO e da União Europeia, defendo alguns Direitos Humanos que Putin nem desconfia que existem e detesto o sinistro regime que vigora em Moscovo. Mas, ao assumir esta atitude (que não é um “disclaimer”, note-se), acaso sou obrigado a esquecer, por exemplo, que os EUA mantêm, sem julgamento e sem vergonha, há mais de 20 anos, em Guantanamo, pessoas detidas por terrorismo, por não conseguirem provar que são culpados? 

Recuso abertamente o desafio dualista, em matéria de valores, que está subjacente à pergunta, quase policiesca: “Estamos do lado de Biden ou do lado de Putin?”. O facto de eu saber bem do lado em que estou não me torna incapaz de avaliar, com serenidade, as razões de um lado e de outro. Porque a experiência, e essencialmente a consciência, ensinou-me que o mundo nunca é a preto e branco. E não tenho a menor paciência para os maniqueístas.

Bem me lembro dessa hora, bem negra para a política externa portuguesa, em que um governo nos provocava sobranceiramente com a pergunta: “Queremos estar do lado dos Estados Unidos ou do lado de Saddam Hussein?”. Esse executivo acabou a servir o “catering” nas Lajes e a avalizar a guerra criminosa que foi a intervenção no Golfo, em 2003, de onde só nasceu ódio, morte e o Daesh. E não pediu desculpa ao país por isso.

Conheço os valores que estão em causa na questão da Ucrânia. Esse é o lado opinativo, afetivo, da questão. O meu papel, na cena televisiva, não é ser “sportinguista em Alvalade”, é ser rigoroso a analisar os acontecimentos e as motivações contrastantes que lhes estão por detrás. Às vezes, isso não é simpático para as “nossas cores”, parecemos ”advogados do diabo”? É a vida!

Por isso, porque continuo a recusar-me a gritar “penalti!” quando não houve falta, ou insisto em dizer ”foi penalti!” quando um defesa do meu “lado” rasteira um adversário na área, continuarei, enquanto me quiserem ouvir, a tentar analisar as questões internacionais com o possível equilíbrio, tomando sempre em atenção a posição de cada lado e, essencialmente, procurando ser rigoroso com os factos. 

Como alguém disse um dia, temos todo o direito a ter as nossas próprias opiniões, mas isso não nos dá o direito a ter os nossos próprios factos.

7 comentários:

Lúcio Ferro disse...

Só é pena é que vozes como a sua tenham muito pouco tempo de antena (quando não são abafadas se forem demasiado longe nas suas objeções). Na verdade, a narrativa oficial não tem nada a ver com a sua e somos bombardeados todos os dias em todos os outlets de notícias (chamar-lhes Imprensa é insulto à palavra) ditos imparciais e democráticos com a dita: há um ogre tenebroso (Putin) que quer violar uma donzela virgem (a Ucrânia) e há os cavaleiros andantes que veem em socorro da mesma, os justos, pios e castos EUA. Se, de caminho, a Europa Ocidental é empurrada para uma guerra de consequências desastrosas, pouco importa, os cavaleiros andantes sairão por cima....

Lúcio Ferro disse...

Adenda, o executivo que refere foi e continua a ser muito bem recompensado pelos seus serviços de mordomo. Inclusive, chegou a estar à testa de uma das mais importantes instuições europeias durante anos (avalizando com fragor, entre outras coisas, políticas que causariam uma radical destruição sócio económica no seu próprio país de origem). Isto, claro, antes de transitar para uma das mais importantes instituições financeiras privadas do mundo ocidental e para tantos outros conselhos de administração, a epítome perfeita do funcionamento duma sociedade livre, equitativa e, pois, democrática.

Luís Lavoura disse...

Ainda bem que lembrou a guerra do Iraque. É que neste caso, tal como nesse, eu suspeito que haja muita desinformação (isto é, mentira) envolvida sobre quais as capacidades e intenções do adversário.

João Cabral disse...

«Porque “tenho a mania” de que sou isento a ver futebol (e sou)»
Que pena não ser assim também na política, senhor embaixador...

Unknown disse...

Senhor embaixador: o Humberto Eco aconselhava que os intelectuais deviam observar os acontecimentos "do cimo da árvore". Quando se faz isso corre-se o risco de desagradar a gregos e a troianos. Mas dorme-se descansado...
MB

Anónimo disse...

Também outros analistas partilham da sua isenção: https://jornaleconomico.pt/noticias/autor/carlos-branco-major-general

Joaquim de Freitas disse...

Por isso, porque continuo a recusar-me a gritar “penalti!” quando não houve falta, ou insisto em dizer ”foi penalti!” quando um defesa do meu “lado” rasteira um adversário na área, continuarei, enquanto me quiserem ouvir, a tentar analisar as questões internacionais com o possível equilíbrio, tomando sempre em atenção a posição de cada lado e, essencialmente, procurando ser rigoroso com os factos.”


“quando um defesa do meu “lado” rasteira um adversário na área “!


Oh Senhor Embaixador, por favor, como é possível ser “rigoroso com os factos” quando um dos jogadores ou equipa recusa o” árbitro” e rasteira permanentemente todos aqueles que lhe apetece?

Aqui o árbitro, é a ONU e o jogador Israel, sempre apoiado por um bando de “hooligans” vindos do outro lado do Atlântico, que ignora, ele também, o árbitro, em permanência e faz o que quer, por todo o lado.

“Analisar as questões internacionais com o possível equilíbrio,”?

Quando se tem uma horda de amigos do género dos comparsas do Golfo, que põem em peças soltas num consulado no estrangeiro, um jornalista, bombardeiam sem trégua o povo mais miserável do Golfo de Aden, reduzem à mingua povos da América Latina, porque querem viver em sistemas económicos que desagradam ao ogre imperial, ou ter aliados “inconvenientes”, como é possível um “equilíbrio” qualquer com esta gente?

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