sexta-feira, fevereiro 25, 2022

A palavra do ocidente


Numa noite do primeiro semestre de 1996, no edifício da União Europeia, o recém nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, Yevgeny Primakov, jantou com os seus homólogos dos então “Quinze” (ou quem os substituía, como era o meu caso). Havia uma grande curiosidade em conhecer a nova cara do Kremlin para a política externa.

E Primakov não desiludiu. O tempo era relações distendidas com a Rússia. Primakov parecia ser um homem ponderado e equilibrado, tendo deixado uma excelente impressão.

A questão essencial que, nessa altura se discutia, eram os futuros alargamentos da União Europeia. Primakov não escondeu que, em Moscovo, o avanço das fronteiras da União até à Rússia era visto com algum desconforto. “Mas Yeltsin não se vai opor a isso, desde que a União Europeia não venha a promover, no seu seio, estruturas de natureza político-militar que possam representar uma espécie de ‘entrada na NATO pelas portas traseiras’, porque, como sabem, há um entendimento muito claro de que a NATO não se alargará para Leste da fronteiras alemãs”. Fixei bem estas palavras de Primakov.

A doutrina divide-se hoje sobre a natureza dessas garantias, mas é indubitável que o ocidente - leia-se, os EUA - tinham deixado mensagens políticas nesse sentido. E que, por essa razão, essa convicção estava firmada em Moscovo.

Mas também sei, por ter viajado nesse mesmo ano por vários dos países candidatos ao alargamento da União Europeia, conversando com os seus governantes, que as suas ambições em matéria de reforço da sua segurança não se ficavam por um mero lugar à mesa da União. Mais do que isso, esses Estados tinham “padrinhos” dentro da União Europeia que, mais ou menos abertamente, confortavam o seu mais ambicioso desiderato - aderir à NATO.

A noção que fui colhendo é que esses Estados, se bem que considerassem interessante integrar a União, como forma de reforçar o seu desenvolvimento, percebiam bem que, se acaso “as coisas dessem para o torto” na relação com uma Rússia que derivava rapidamente no sentido do autoritarismo, quem os poderia defender era a NATO, ou melhor, eram os EUA, vencedores da Guerra Fria.

O ocidente mentiu à Rússia? Talvez não. O ocidente terá feito promessas políticas, de modo político e não formal, a uma “outra” Rússia. A Federação Russa perante a qual os EUA e as estruturas ocidentais terão feito essa promessa política não foi exatamente a mesma a partir do momento em que Vladimir Putin assumiu o controlo, quase pessoal, do poder em Moscovo. O ocidente, ao fazer essa promessa, estava a falar com uma Rússia com a qual tinha sido possível estabelecer uma parceria, mecanismos de confiança, de diálogo e de cooperação. A Rússia de Putin passou a ser outra Rússia. E Putin, note-se, está no poder há muito tempo, já conta no seu currículo de contra-partes com cinco presidentes dos EUA.

Pode dizer-se que o comportamento de alguns países candidatos ao duplo alargamento à União Europeia e à NATO, na acrimónia oficial contra Moscovo e até, em alguns casos, no tratamento injusto das minorias russas no seu território, não contribuiu para o atenuar da tensão histórica que já vinha dos traumas da União Soviética. É verdade. Mas nada é comparável, sejamos justos, com o ambiente de intimidação que tinha como fonte a Federação Russa, em especial - e isto é importante - titulado por um poder em Moscovo onde já quase tinham desaparecido, quase por completo, os “checks and balances” que existem em Estados que funcionam sob instituições democráticas. Como ontem se comprovou.

9 comentários:

José disse...

Segundo a BBC, os russos já estão a fazer declarações ameaçadoras à Suécia e à Finlândia. Se entrarem para a NATO... há "consequências" sérias.

Ora, isto é particularmente preocupante porque não parece que haja, por aí, uma vontade expressa de estes dois países aderirem à NATO. Pelo contrário, a Finlândia até falou em contrário.

Ou seja, a Rússia já está a fazer com a Suécia e a Finlândia, o que fez à Ucrânia. A culpa é dos americanos, note-se...

Luís Lavoura disse...

O ocidente mentiu à Rússia? Talvez não. O ocidente terá feito promessas políticas, de modo político e não formal, a uma “outra” Rússia.

O Francisco desculpe-me, mas isto é uma argumentação inaceitável.

A Rússia é sempre a Rússia, um Estado. Não há a Rússia de ontem e a de hoje, há um Estado que é sempre o mesmo, embora ontem e hoje governado de formas diferentes.

Em relações internacionais clássicas, tal como o Francisco deve saber melhor que eu, negoceia-se entre Estados, e não em função do regime político que governa esses Estados. Os compromissos que se assume com um Estado valem para esse Estado, e não somente para os governantes que nesse momento nele estejam no poder.

Jaime Santos disse...

Mais do que saber se existiam garantias informais sobre o não-alargamento da NATO (que foi um erro, como se vê pelas presentes crises), importa perceber o que poderia a Rússia ter feito para o evitar.

E poderia, bem entendido, ter dado garantias de segurança aos seus vizinhos, como agora no caso da Ucrânia. Mas se opta pela pressão militar para obter o que deseja, o mais certo é que os países neutrais corram a aderir à NATO, como se vê pela participação sueca e finlandesa na reunião da organização que teve lugar hoje.

Não faço psicologia barata dos líderes políticos como certos comentadores e por isso não sei se Putin é paranoico ou meramente se faz passar por tal para melhor ameaçar quem acha que se está a meter no seu caminho, ou se a linguagem crua que usa é meramente o modo como acha que se deve negociar com quem quer que seja.

Sei ao invés que parece comportar-se como um chefe de clã que ameaça quem não dançar sob a sua música que lhe parte as rótulas com um taco de basebol, o que não é exatamente tranquilizador.

As pessoas, quando se sentem ameaçadas, não colocam a cabeça no cepo esperando pela misericórdia de quem as ameaça. Fazem justamente o contrário, que é armarem-se até aos dentes.

Já sei que me irão dizer que os EUA no passado procederam exatamente como Putin agora, mas como dizia um dos ditos comentadores, lá porque os EUA são burros a ponto de pensarem que isso de se ser temido é melhor do que ser-se amado (leia-se respeitado), Putin não tem que o ser.

Porque a primeira vítima de toda esta tragédia é a relação que a Rússia tem com os seus vizinhos, que deveria tratar como parceiros e de igual para igual. Não é com nostalgias da arquitetura do Império Russo (com culpas a Lenine à mistura) que iremos lá.

Luís Lavoura disse...

José, você está - infelizmente - errado: nos últimos tempos tem-se discutido frequentemente, na Suécia e na Finlândia, a possibilidade e probabilidade de esses países pedirem para aderir à NATO. Ainda há uma ou duas semanas o assunto foi tratado num programa da Antena Um sobre política internacional.
No caso da Suécia isso ainda seria admissível, mas no caso da Finlândia, que já apanhou uma tareia da antiga URSS e que desde então se comprometeu a manter uma política externa amigável para com o seu vizinho, isso seria intolerável para Moscovo. Nem sei como passa pela cabeça dos políticos finlandeses uma enormidade dessas. Mas passa...

Lúcio Ferro disse...

Com o encorajamento hipócrita dos EUA o regime da Ucrânia brincou com o fogo e agora está a arder. A invasão russa é chocante e merece condenação? Sanções? Sim, merece sem dúvida e convém vincar esse facto. Soluções? Têm de ser negociadas e, claro que os ucranianos vão ficar a perder na 'negociação', talvez se tivessem sido mais 'finlandeses' e friso o talvez, tudo isto não estaria a acontecer; acreditaram que tinham peito e que de todo o modo o cavaleiro andante americano/OTAN viria em sua defesa e agora é o que se vê; muitas bandeirinhas azuis e amarelas nas redes sociais mas 'boots on the ground' está quieto (e ainda bem, mantenhamos as tropas do lado de cá, cuidado com os rastilhos). Nada tenho contra a solidariedade e para com a firmeza na condenação de um ato de agressão, só que, não tenhamos ilusões, tem de se negociar (dar mais a Putin do que ele queria inicialmente, a intransigência arrogante dos EUA também ajudou a chegar aqui), sob pena de termos a III guerra mundial em cima, por exemplo com um escalada nuclear. Ora, ainda sobre a hipocrisia, com todo o respeito e solidariedade que os ucranianos no geral (menos o seu regime) me merecem, não estou disposto a morrer pela Ucrânia, tenho muita pena, mas não estou e certos comentadores de sofá aqui do blogue, sim, Jaime Santos, estarão?

Carlos Antunes disse...

Embaixador Seixas da Costa
Acompanho diariamente o seu blog, o que para alguém que não se encontra plenamente a par destes assuntos da geostratégica político-militar, é sempre esclarecedor.
Neste post, foca e bem que os países que saíram da órbita da ex-União Soviética “percebiam bem que, se acaso “as coisas dessem para o torto” na relação com uma Rússia que derivava rapidamente no sentido do autoritarismo, quem os poderia defender era a NATO”.
Julgo que é aqui que se encontra o cerne da questão, porque se esses países não tivessem aderido à NATO (alguns até por experiência própria, como foram as invasões soviéticas da Hungria de 1956 e da Checoslosváquia em 1968) estariam hoje na mesma situação em que a Ucrânia se encontra perante o poder imperial russófono de Putin.
Continuar a defender que foram a Ucrânia e a NATO que forneceram pretextos à Rússia para esta inadmissível invasão militar de um país soberano por outro na maior operação bélica na Europa desde a II Guerra Mundial, e em grosseira violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, parece-me ignorar as razões, hoje plenamente compreensíveis, do porque da adesão ao escudo protector da NATO, dos países saídos (Polónia, República Checa, Eslováquia, Hungria, Roménia, Bulgária, Países Bálticos) da desintegração da União Soviética.
Todos eles sabiam, e agora quando começam a receber nas suas fronteiras os refugiados ucranianos, até o entendem melhor, donde provém sempre o perigo (chame-se ele Império Czarista, União Soviética ou a tentativa da reconstrução da nova Rússia imperial pelo novo czar Putin) e que a salvaguarda da sua independência como Estados soberanos derivava exclusivamente da sua adesão à NATO.
Cumprimentos

Luís Lavoura disse...

Carlos Antunes,

você parece ignorar que a Finlândia viveu pacificamente fora da NATO desde 1944. Da mesma forma a Áustria permaneceu neutra durante toda a Guerra Fria e nunca foi invadida (pelo contrário, a URSS abandonou a parte da Áustria que tinha ocupado no final da 2ª Guerra).

Putin apenas deseja que a Ucrânia tenha um estatuto similar ao da Finlândia, ou seja, que seja neutra, que possua poucas armas e somente de caráter defensivo, e que tenha uma política externa de permanente diálogo e boas relações com a Rússia.

A Finlândia vive sob estas condições desde 1944, tem-se dado bastante bem e não tem tido quaisquer problemas com a sua segurança. E é um país livre e democrático.

Carlos Antunes disse...

Luis Lavoura
Com todo o respeito pela sua opinião, é que já não estamos em 1944, embora na memória coletiva dos finlandeses continue bem presente a ameaça que a Rússia constitui para países fronteiriços que desafiem claramente os interesses do Kremlin. Em Novembro de 1939, a Finlândia foi invadida por 450 mil tropas da URSS organizadas em 21 batalhões, numa operação que Josef Stalin e os seus generais contavam iria ser rápida e devastadora. O desejo de anexar rapidamente uma Finlândia cada vez mais distante dos interesses de Moscovo da altura era demasiado tentador, mas os generais soviéticos não podiam estar mais enganados. Os finlandeses, apesar de uma enorme inferioridade bélica a todos os níveis, ofereceram resistência feroz e inesperada. Dois dias após a invasão ter começado, a Rússia instalou um governo finlandês fantoche em território conquistado, mas os finlandeses recusaram-se a aceitar a legitimidade do executivo pró-russo.
Se calhar o paralelismmo com o que se passa actualmente na Ucrânia, fez com que o primeiro-ministro finlandês ter admitido agora que o país - após décadas de neutralidade- poderia vir a aderir à NATO caso isso significasse uma garantia de segurança nacional.

José disse...

Cenário 1:
O Lavoura entra num café e, lá do fundo, um rufia grita-lhe "Ó tanso, aqui não entras, ouviste?! Se voltas a pôr o pé neste sítio, rebento-te com as trombas!". O Lavoura, qual cidadão obediente, regista que não pode entrar naquele café porque há lá um cliente que não quer que tal aconteça. E vive em paz.

Cenário 2:
O Lavoura, juntamente com três amigos totós, entra num bar. Quando vai para se sentar, uma besta que lá está diz-lhe "Pá, ó m****s, aqui não te sentas!". O Lavoura argumenta que o lugar está vazio mas sem resultado. "Este é o meu espaço vital e se tu ou algum dos teus amigos aqui se sentar, faço-o num oito!" O rufia, para mostrar que não brinca, saca de uma ponta e mola. O Lavoura, qual homem pacífico que é, regista que não se pode sentar perto do rufia e fica em pé.

Algumas pessoas vivem bem num mundo assim. Eu, não.

Gastronomia

O que é a Academia Portuguesa de Gastronomia? É uma associação privada, com estatuto de "utilidade pública", composta por um núcle...