quinta-feira, abril 25, 2024

O herói


25 de Abril de 1974. Escola Prática de Administração Militar (EPAM). Eram aí 11 horas da manhã. Abri a fechadura da sala do quarto do oficial de dia, onde o "Ramos" dormitava, cabeça sobre a mesa, barba por fazer. Levantou a cara e olhou-me com uma tristeza infinda, num misto de desilusão e talvez receio do futuro. 

Dei-lhe de troca um sorriso aberto e estendi-lhe a G-3 que levava na mão. O "Ramos" levantou-se e ficou a olhar para mim, sem saber o que pensar. 

Cerca de nove horas antes, às duas da manhã, o "Ramos" tinha sido detido. Era o oficial de dia e, não estando no segredo do golpe, sendo imprevisível a sua reação e não havendo tempo para operações de recrutamento por convicção, havia sido essa a decisão tida por mais prudente, até para sua própria defesa, se algo corresse mal. Foi isso que me foi dito pelo capitão que tinha passado a comandar a unidade, depois do destacamento chefiado por Teófilo Bento ter partido para ocupar a RTP.

O "Ramos" era um alferes que "metera o chico”. Era bom tipo, embora um pouco militarão. Agora, quando as coisas começavam a serenar, com a unidade sob controlo, não havia razão para lhe prolongar o sofrimento. Perguntei se o podia libertar - e, autorizado, assim fiz:

"Pega lá na arma, pá, estás solto. E vai tomar um banho".

Ficou um pouco confuso, mas o meu abraço restituiu-lhe a confiança. Expliquei-lhe o que acontecera, as razões da sua detenção e que, naturalmente, contávamos com ele dali em diante.

Lembrava-me de o ver, semanas antes, muito interessado a ler o "Portugal e o Futuro", aquele manifesto de gaullismo requentado que enfurecera Marcelo Caetano e desinquietara muito militar profissional. Eu tinha ironizado com esse entusiasmo do "Ramos", desdenhando da obra assinada por Spínola, embora não desprezasse a importância do surgimento do livro.

Ao final da tarde de 25 de Abril, o "Ramos" foi para a RTP, que estava sob o controlo da EPAM, onde ficou encarregado da segurança da entrada, na Alameda das Linhas de Torres, junto às bombas de gasolina, local onde se apinhavam então muitos curiosos.

A noite ia ser longa. A Junta de Salvação Nacional, recolhida na Pontinha com o MFA, discutindo o programa e o poder, demorou muito a chegar, para fazer a famosa comunicação ao país. Desde há horas, eu andava pelos estúdios da RTP, com muito pouco para me ocupar, com uma metralhadora FBP ao tiracolo. 

(Eu nunca tinha disparado uma arma daquelas, que me diziam ser perigosa, e, "por causa das moscas", tinha o carregador só meio colocado. No dia seguinte, ao entregar a arma no armeiro, foi-me dito que, afinal, levara um carregador errado: era de uma metralhadora "Vigneron". Se tivesse sido necessário dar um tiro...)

A certa altura, já bem tarde na noite, ao telefone da sala da redação da RTP (atendia-se ali o telefone pela senha de "Mónaco"), chegou a notícia: a Junta estava prestes a chegar. Desci a rampa, fui avisar o "Ramos" e arvorei-me em "segundo comandante" da guarda de honra a Spínola e aos restantes membros da Junta. Antes, ainda perguntei ao "Ramos": "Como é que se apresenta armas com a FBP?". Sabia fazê-lo com a G3, mas não com "aquilo". O "Ramos" ensinou-me.

Coube assim ao "Ramos" improvisar a guarda de honra à chegada da Junta. Fê-lo com o garbo compatível com o estado de total bandalheira comum aos cinco ou seis soldados-cadete que o destino lhe dera para comandar, nessa efémera solenidade. E eu, "voyeur ", fiquei ao lado dele.

Ao sair do carro, seguido dos restantes membros da Junta, Spínola fixou o monóculo e olhou por um instante o "Ramos", que estava perfiladíssimo em continência, e lançou: 

"Eu não o conheço, nosso alferes?". 

O "Ramos" balbuciou: 

"Meu general, efectivamente tive a honra de servir sob as ordens de V. Exa. na Guiné". 

Spínola grunhiu algo e já se afastava, de capote e pingalim, rampa acima, a caminho dos estúdios, quando o "Ramos" se virou para mim: 

- "Estás a ver, pá?! Ele reconheceu-me, lembra-se de mim, este tipo sempre foi o meu herói!". 

Deixei o "Ramos" a gozar o instante, subi com a Junta aos estúdios e, atrás das câmaras, assisti à "performance" oratória de Spínola. Ao ver e ouvir a voz do convidado da "Divisão Azul" nazi e do mandante da Operação "Mar Verde", futuro presidente, não apenas da República mas também do bombista MDLP, não fiquei muito sossegado, recordo-me bem. Mas já passou.

(Esta tarde, 50 anos depois dessa data, o "Ramos", que não se chama "Ramos", telefonou-me, como às vezes faz. O nosso 25 de Abril é isto mesmo!)

2 comentários:

Anónimo disse...

Foto feita da rampa que conduzia à RTP, à direita ficava a Mobil e em frente o café Magriço!

Antonio costa disse...

manifesto de gaullismo requentado. GOSTEI!

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