quarta-feira, abril 17, 2024

O outro lado do vento


Na passada semana, publiquei na "Visão", a convite da revista, um artigo com o título em epígrafe. 
Agora que já saiu um novo número da "Visão", vou reproduzi-lo aqui, tanto mais que entendo que o não perdeu atualidade.

Estará a guerra prestes a transbordar do cenário russo-ucraniano e a alargar-se a geografias europeias adjacentes? Esta é uma questão que, a cada dia que passa, inquieta, de forma crescente, os cidadãos do continente.

As declarações de responsáveis políticos sobre o ambiente de "pré-guerra" já instalado, o debate aberto sobre o serviço militar obrigatório, a hipótese de colocação de tropas europeias em território ucraniano, as cíclicas referências ao possível uso de armas nucleares - tudo isto está a alarmar as opiniões públicas. E se, neste extremo da Europa, o ambiente é o que é, podemos imaginar como andarão as coisas em países com uma geografia próxima da zona de conflito.

O mundo há muito que começou a perceber que Vladimir Putin, um autocrata com escassos escrúpulos, estava a tentar resgatar, num registo nacionalista, onde lhe fosse possível, a humilhação que o fim do império deixara gravada na memória da gente russa. Sentia-se o tropismo de Moscovo para rearranjar alguns equilíbrios de influência decorrentes da implosão da URSS, mas ainda prevaleceu por muito tempo em alguns o sentimento de que isso não representava um abalo sistémico ao essencial da arquitetura de segurança e defesa no seio da Europa.

No meio de tudo isso, ficava a Ucrânia. O ocidente que conta em termos militares, leia-se, os EUA, sob o aplauso dos vizinhos imediatos da Rússia, tinha há muito entendido que era decisivo trazer a Ucrânia para o seu campo, num registo idêntico ao que havia consagrado o alargamento da NATO a leste. O interesse em fazer desse país, quase subliminarmente, procedendo ao seu intenso e rápido armamento, um membro "informal" da NATO, era uma aposta audaciosa, mas, na perspetiva do interesse estratégico ocidental, ela valia bem o risco.

Com a secessão do Donbass e a da Crimeia, já sem os pró-russos a votar as decisões nacionais, o poder instalado Kiev havia passado a decidir o seu futuro sob uma agenda fortemente nacionalista, confortada com um apoio ocidental que rimava com a sua profunda russofobia.

A Rússia, por seu turno, percebeu que, se deixasse cair a Ucrânia na esfera ocidental, teria ali para sempre uma testa de ponte que abertamente contrariava o modo como pretendia formatar o equilíbrio geopolítico na sua periferia. E, talvez considerando ser aquela a sua última janela de oportunidade, antes que um desequilíbrio se instalasse e fosse irreversível, preferiu, em fevereiro de 2022, romper com o que lhe restava de diálogo negocial com o ocidente. E foi para a guerra.

E agora?

Um dos argumentos recorrentes no discurso que acompanha o apoio político-militar à Ucrânia, assumido quase como uma verdade dogmática, é o de que uma eventual vitória, ainda que parcial, da Rússia, representaria um imenso risco para a Europa e mesmo para a segurança de todo o espaço da NATO. Será isto mesmo assim?

Sem querer chocar quem se sente em choque, gostava de lembrar que nenhuma das razões estratégicas que, segundo a generalidade dos especialistas, estiveram presentes na invasão russa da Ucrânia se aplica, ainda que de forma aproximada, a qualquer dos Estados NATO que agora se afirmam potencialmente ameaçados por Moscovo.

Até hoje, a Rússia nunca deu o menor sinal de querer pôr em risco qualquer fronteira da NATO, muito embora se saiba o desconforto com que viu o alargamento da organização a leste. Não o fez por "bondade" ou boa vontade? Claro que não. Não o fez porque o risco de o fazer seria sempre incomensuravelmente maior do que as suas hipóteses de êxito.

É óbvio que a experiência demonstra que não é possível confiar, ainda que minimamente, na palavra de Putin ou de Moscovo. Não é por aí que vamos. Mas, a menos que consideremos que a irracionalidade é a irreversível linha condutora da política russa - e, nesse caso, de facto, tudo será expectável -, um mínimo de lógica e de avaliação dos recursos militares convencionais russos, mesmo numa perspetiva diacrónica otimista para Moscovo, não aponta para a obtenção de capacidades bélicas que sejam decisivamente ameaçadoras, em termos estratégicos, para o ocidente, salvo no terreno nuclear - mas esse é já outro patamar de jogo, só gerível do outro lado do Atlântico.

Chegado aqui, o leitor perguntará: mas onde é que afinal o texto quer chegar?

A uma conclusão simples: se o conflito na Ucrânia, na constatação da impossibilidade de uma derrota da Rússia que não passe por um conflito global, vier a saldar-se por um compromisso que consagre cedências territoriais ucranianas, de facto ou de jure, isso não parece significar o prenúncio de uma acrescida ameaça para o ocidente.

Esse desfecho, a ter lugar, acabaria por ser a infeliz alternativa, imposta por via violenta, ao modelo de autonomia das populações de maioria russófona que estava previsto nos acordos de Minsk II, subscritos mas não implementados por Kiev e que Moscovo não parecia rejeitar. Poderia a aplicação desses acordos ter preservado a paz? Nunca o saberemos e, atento o posterior discurso oficial russo de desqualificação da identidade nacional ucraniana, subsistem muitas dúvidas de que a Rússia viesse a aceitar placidamente esse modelo. Mas isso não foi tentado.

Posso compreender que muitos considerem que uma solução de cedência territorial seja agora profundamente injusta, desde logo para os ucranianos que, com extraordinário heroísmo, têm lutado por preservar as fronteiras que o direito internacional lhes reconhece desde 1991. Mas essa é uma questão diferente daquilo que aqui contestei: a ideia de que, a vir a ter lugar, essa solução traria novos riscos de segurança para a Europa.

14 comentários:

Anónimo disse...

«É óbvio que a experiência demonstra que não é possível confiar, ainda que minimamente, na palavra de Putin ou de Moscovo.»
Não sei a que "experiência" se refere, mas dou essa de barato. O que pergunto é outra coisa: e na palavra de Merkel, Hollande e outros, podemos confiar ?

MRocha

Flor disse...

Muito obrigada.

Erk disse...

O Chamberlain na segunda grande guerra, ou para alguns aqui da caixa de comentários, a grande guerra patriótica, não o teria dito melhor, senhor embaixador.

João Cabral disse...

Os bálticos não gostaram...

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Muito bem!

Anónimo disse...

Qual guerra qual quê. Indo ao fundo do tacho, bem mexida a colher, vale o que disse um dia o velho prussiano: o assunto não vale os ossos de um hussardo da Pomerânia. E os russos sabem disso.

Outra curiosidade é o desenterro da palavra Ocidente. Salazar gostava muito dela. Há anos e anos que estava em desuso. Pois bem, agora cobre tudo; cobre EUA e Canadá, cobre a UE e cobre os países europeus. É o vestido preto da Ivone Silva.

Joaquim de Freitas disse...

Putin autocrata e mentiroso. Zelensky democrata defende os “nossos valores”, mesmo quando elimina os partidos e os media de oposição.

Em Kiev e em Israel, existe o mesmo discurso. De ambos os lados dizem que lutam para “defender a civilização: Em Israel que somos “um baluarte” contra o mundo árabe, e em Kiev, um baluarte contra a Rússia. Kiev e Gaza actuam como duas faces do mesmo conflito em que o Ocidente participa.
A Rússia foi sancionada pelo “Ocidente político” por invadir a Ucrânia, por violar o direito internacional. Israel violou-o centenas de vezes.

Esquecendo os 16 000 ucranianos do Donbass, russófonos, assassinados pelas milícias nazistas de Kiev em oito anos, de 2014 a 2022.

Os Acordos de Minsk , deviam pôr fim a este massacre. Kiev assinou, mas sabemos hoje que foi para ganhar tempo, para se rearmar. Dixit Merkel, e Hollande. Mas é em Putin que não se pode ter confiança.

O Ocidente, Reagan, a NATO, prometem a Gorbatchev de não progredir duma polegada a sua expansão para Leste. Conhece-se o resultado! Mas é Putin que é culpado de pôr as suas fronteiras junto das bases da NATO, que entretanto asfixiam a Rússia, a toda a volta.

E admiram-se que Putin reaja na Ucrânia, futura testa-de-ponte do Ocidente bélico…se Zelensky ganhar a guerra! … Questão existencial para a Rússia.

Os principais líderes ocidentais deslocam-se a Kiev (como a Tel Aviv e a Jerusalém), um após o outro, para apoiar “incondicionalmente” Kiev e (Israel).

Faça o que fizer, mesmo que se oponha ao mundo inteiro, Israel nunca é sancionado. As sanções são impostas à Rússia, ao Irão, ao Iémen, à Venezuela, a Cuba, etc. e a todos aqueles que apoiam os palestinianos. Israel tem armas nucleares, mas é o Irão que está ameaçado, porque é suspeito de querer possuí-las. Onde está a lógica deste mundo?

No Ocidente (EU) clamam por uma economia de guerra enquanto afirmam, sem pestanejar, que “o Ocidente não está em guerra”.

Os defensores da paz são acusados de “serem na realidade os da derrota”. Que derrota é essa? Se for o da Ucrânia, será o do Ocidente? Se assim for, é porque o Ocidente está em guerra.

Mas isso é continuamente negado. Diz-se que para o Ocidente a Ucrânia é uma questão existencial. Mas a Ucrânia existiu durante décadas na URSS e durante séculos na Rússia. Como o Ocidente conseguiu viver até agora, existir sem ele?

Lógica esplêndida de um Ocidente em pleno delírio e que anda de cabeça para baixo. Surgiu uma frase que agora resume a situação de um mundo sob a tutela declinante do Ocidente: padrões duplos. Não há mais necessidade de discursos, não há mais necessidade de análises ideológicas ou políticas, a frase resume tudo. Basta dizer e tudo estará dito. Isso enfraquece o Ocidente político. Ela deixa-o mudo. Ela desarma todas as suas bombas mediáticas, todas as suas mentiras. Tudo fica claro no mundo

marsupilami disse...

Belo artigo.

Luís Lavoura disse...

Joaquim de Freitas

Os principais líderes ocidentais deslocam-se a Kiev

Desde que uma bomba russa aterrou perto do primeiro-ministro grego em Odessa, nunca mais nenhum líder ocidental se deslocou a parte nenhuma da Ucrânia, que eu tenha reparado. As viagens de solidariedade à Ucrânia pararam completamente.

manuel campos disse...


O que penso deste artigo já o disse no dia próprio, quando comprei e li a revista Visão.
Mas não deixa de ser interessante ir verificando uma “generalizada” falta de interesse, por acção ou as mais das vezes por omissão, para que se encontre uma solução real para o conflito que não passe por um eternizar da guerra que, pelos vistos, não incomoda assim tanta gente entre duas garfadas ou mais uma discussãozinha caseira sobre a conta da luz.

Apesar de tudo a preocupação, real ou nem por isso, é mais o campo de quem já tem muito tempo livre e os problemas básicos mais ou menos resolvidos, nunca ouvi (e se eu ouço bem!) ninguém falar disto em restaurantes, transportes públicos ou encontros esporádicos de rua, é tudo gente que tem muito mais com que se ralar, se calhar se têm que comer e onde dormir amanhã.

Estou por aqui “algures” há uma semana, almoço fora todos os dias num local que serve 150 a 200 pessoas em 2 voltas, sou quase “família” da família que é dona daquilo (tenho a mesma mesa marcada para a 2ª ronda todos os dias), conheço toda a gente por estes lados pois adquiri isto há mais de 30 anos, ninguém está ralado com guerra nenhuma em si.
O que sei é que está toda a gente preocupada com as consequências do que nos cerca de imprevistos, foram quase 80 anos de calmaria por esta Europa do lado de cá, pois do lado de lá nem por isso, mas era longe.
Agora continua a ser longe mas as notícias não chegam no dia seguinte a preto e branco, chegam na hora e a cores, com o aviso de que podem ser incómodas para os mais sensíveis, mesmo quando já não impressionam quase ninguém os mais sensíveis lá se sentem na obrigação de ficarem incomodados.

Entretanto uns aumentam o número das suas conscrições de efectivos (porque têm muita gente) e os outros aumentam o prazo das suas conscrições (porque têm cada vez menos gente), o que devia fazer tocar as campainhas do bom senso mas só fazem tocar outras campainhas.
Considerando a quantidade de gente em idade militar que saíu daquelas paragens, parece assim um pouco estranho que se possa imaginar que alguém de Belmonte (o exemplo não é meu) queira ir para lá como "não voluntário" com o entusiástico apoio das suas famílias.

Anónimo disse...

Será que as regiões russófilas da Ucrânia poderiam ser uma País independente?. E a Crimeia com os seus históricos tártaros?. Agora parece ser muito tarde.

Unknown disse...

Eu acredito que a Rússia e Putin vão perder a guerra, a prazo, assim a Ucrânia seja ajudada pela Europa e, sobretudo, pelos USA. Portanto, nem "diálogo" nem acordo de cedência, seja de um centímetro de terra.

Anónimo disse...

Acreditar numa vitória da Ucrânia, mesmo com o apoio obsceno da Nato, EUA e UE, é o mesmo que acreditar que os coelhos põe ovos (com a excepção do da Páscoa, naturalmente).
Ver a Nato/UE/EUA a serem humilhados naquele conflito dá-me um particular gozo, confesso.
Só há uma saída para o fim do conflito, a cedência do Donbas à Rússia por parte da Ucrânia e o reconhecimento da Crimeia como território russo. E depois, assegurar a neutralidade de Kiev, deixando cair essa miragem de aceder à Nato. De seguida, que se juntem à UE, se assim o quiserem e os Estados membros estiverem dispostos a pagar a elevadíssima factura que tal adesão irá implicar, por vários e muitos anos. Nesse dia, em que a Ucrânia vier a fazer essas cedências, com vista à paz, pois não tem outra alternativa, beberei um “flute” de espumante, a comemorar o acontecimento.
Joaquim de Freitas volta a ser assertivo e oportuno, no seu comentário.
a) P. Rufino

Anónimo disse...

Se a derrota a Ucránia / vitória da Fed. Russa começar a ser vista como uma derrota dos EUA, nos EUA ... tudo mudará.

Tudo cada vez mais claro