terça-feira, fevereiro 22, 2022

Não sejamos otimistas


Não tendo uma natural vocação masoquista, dei comigo a pensar, no final da tarde de segunda-feira, por que razão, por quase uma hora, me entretive tanto a ouvir, numa muito profissional interpretação simultânea (num site russo, em espanhol), a integralidade da comunicação que Vladimir Putin fez ao país e ao mundo.

Muito daquele arrazoado tinha um tom algo críptico, historicamente justificativo, num registo e adjetivação que ressoavam muito a ontens “que cantaram”, em outro tempo e em outro modo. E, no entanto, não desliguei um segundo e fiquei (não direi “religiosamente”, mas atentamente) até ao fim.

Quando concluí o exercício, lamentei não ter tomado mais notas, mas voltar atrás e rever a narrativa seria um exercício excessivo. Mas não dei por mal empregue o meu tempo.

O Vladimir Putin que descobri nessa hora de audição é um homem de outra era. Ao ouvir os seus lamentos, o seu orgulho ferido por um mundo que tem humilhado o seu, como que entendi melhor o que tem sido o percurso histórico de uma certa Rússia contemporânea que se acha enganada pelo ocidente - em especial, que se considera abusada na sua fragilidade conjuntural. E que, à evidência, não se resigna.

Putin não é uma figura deste tempo, concluí. Ou melhor, a Rússia contemporânea que ele representa decorre de uma linha profunda de continuidade que, embora já presumida por alguns, está muito mais enraizada do eu julgava possível. A Rússia imperial vive em Putin bastante mais do que em caricatura: é um guia para a ação da atual nação russa.

O discurso de Putin estabelece uma espécie de hierarquia de valores nacionais, na qual a Rússia tem um papel central e historicamente incomparável com o artificialismo de outras entidades estatais, cuja representação à escala internacional ele considera não dever iludir esse seu estatuto menor.

A Ucrânia, neste contexto, é um acaso de decisões históricas erradas, tomadas no seio de uma Rússia em anteriores estádios de convulsão. Por isso, na perspetiva de Putin, não pode aspirar a ser vista como uma nação com todos os atributos de dignidade, passível de um reconhecimento por Moscovo.

A tudo isto, Putin soma a leitura de a Ucrânia se ter transformado no joguete de um mundo, tutelado pelos Estados Unidos, onde subsistirá o desígnio deliberado, que já vem da Guerra Fria, de manter a Rússia sob uma pressão que evite a recuperação da sua grandeza histórica.

Na linguagem do líder russo, a América é uma entidade internacional celerada, que sobredetermina o comportamento de todos os seus aliados e que objetiva na Ucrânia contemporânea todos os vícios e todos os males, com o único e não assumido objetivo de atingir a Rússia.

Por isso, esta Ucrânia, não apenas não tem uma legitimidade que lhe permita afirmar-se como nação como ela própria se converteu, através da cumplicidade com os inimigos da Rússia, num perigo para a própria essência nacional que Moscovo representa.

Quando Putin dá por adquirido que é necessário reconhecer as “Repúblicas Populares” de Luhansk e Donetsk, não está, naturalmente, a atribuir uma dignidade nacional a essas entidades que, “de facto”, já se assumiam como tal desde 2014.

Trata-se apenas, como é óbvio, de utilizar o estratagema de afirmação internacional dessas duas entidades russas como o meio, mais “à mão”, para limitar os danos que a evolução da Ucrânia contemporânea está a provocar à Rússia. Mas, visivelmente, esse é um passo que, sendo necessário, fica muito aquém de ser suficiente para travar o imenso perigo que se desenha para a Rússia, através do poder infiltrado em Kiev, na leitura de Putin.

É este acossamento - a expressão só pode ser esta - da Rússia que Putin pretende sacudir com as suas ações atuais, utilizando, de caminho, a completa subalternidade da Bielorrússia - ficando agora muito clara, se o não fosse já à evidência, a razão pela qual Moscovo nunca teve a menor tentação de apelar à democratização do respetivo regime.

Perante o ocidente - isto é, os Estados Unidos à frente do resto - Putin assume a atitude de querer fazer um “reset” da História. O que é mais estranho, ao configurar um desespero cuja resultante alternativa só pode acabar numa tragédia mundial, é que não parece encarar outro cenário que não seja a reversão completa dos equilíbrios saídos da Guerra Fria - repito, tendo em conta a leitura que faz de que a Rússia foi iludida ao não ter sido cumprido o “trade-off” político que esteve subjacente a esse tempo - o que até pode ter alguns laivos de verdade, mas que já é irreversível.

Ora Putin sabe que não existe o menor cenário em que os países a seu ocidente prescindam da posição que hoje detêm, por opções que foram sendo tomadas, independentemente das razões que Moscovo até possa ter.

Mais do que isso: Putin deve saber que, ao dizer o que disse, carreou para esse debate uma atitude russa que só pode levar a uma muito maior rigidificação de posições por parte de quem pressentiu o crescendo da ameaça.

A saída para tudo isto não é evidente, mas não há razões para cultivar o menor otimismo.

(Artigo publicado no site da CNN Portugal)

9 comentários:

Luís Lavoura disse...

não existe o menor cenário em que os países a seu ocidente prescindam da posição que hoje detêm

Não?

Nunca diga "nunca"...

Luís Lavoura disse...

A Rússia imperial vive em Putin

Claro, tal como antes dele viveu na União Soviética. Esse país logo em 1921 tratou de conquistar a Geórgia e tentar conquistar a Polónia, precisamente porque na mente dos seus dirigentes esses eram territórios do Império Russo que portanto deveriam também fazer parte da União Soviética.

Luís Lavoura disse...

O discurso de Putin estabelece uma espécie de hierarquia de valores nacionais, na qual a Rússia tem um papel [...] historicamente incomparável com o artificialismo de outras entidades estatais

Mas é mesmo assim.

Primeiro, as fronteiras internas da União Soviética foram artificiais e puramente administrativas. A Ucrânia foi criada pela União Soviética somente como uma forma de administrar o seu território. Nunca antes disso existira um Estado ucraniano, pelo menos no sentido moderno e étnico. O mesmo se diga das outras repúblicas da ex-União Soviética, que têm todas fronteiras artificiais, que no tempo da URSS eram irrelevantes. Há muitas áreas do Cazaquistão que são povoadas na sua maioria por russos, tal e qual como áreas da Ucrânia e da Letónia.

Segundo, não se pode comparar um país como Portugal, que tem 7 séculos de história sempre com as mesmas fronteiras (Olivença à parte), com países como o Iraque ou o Mali, que foram criados muito recentemente e que não têm um sedimento histórico a segurá-los. E o que se diz do Iraque e do Mali, é igualmente verdade para a Ucrânia ou o Tadjiquistão.

José disse...

O importante é perceber que tudo isto implica um redesenho da arquitetura de segurança na Europa, num quadro de multilateralidade que não omita nos necessários equilíbrios geoestratégicos a relação transatlântica e a sua importância para a afirmação conjunta de um espaço de soberania nacional e transnacional assente nos princípios políticos invioláveis defendidos pelas organizações de cooperação e defesa que, reforçadas na sua essência por um novo empenho dos Estados membros, permitirá (o espaço), o estabelecimento de linhas mestres para novas políticas, novas atitudes e, sobretudo, uma nova era de relacionamento na Europa, quer no âmbito unilateral, quer multilateral, que potencie os "achievements" do até aqui já longo caminho percorrido pelo pensamento estratégico dos países europeus nas suas vertentes de defesa, integração económica e política, bem como do estabelecimento de pontes, viadutos ou túneis que encurtem as distâncias que nos separam e permitam às diversas sensibilidades em campo o aproveitamento das oportunidades de diálogo promovidas por uma visão esclarecida do que está em jogo.

Ou seja: agora não se faz nada porque é a Rússia e a Ucrânia não pertence à NATO.
(reequacionar-se-á equilíbrios estratégicos)

A Bielorússia será integrada na Rússia e isso será uma decisão democrática do "povo" local.
(repensar-se-á conceitos de nação)

Nos países bálticos a NATO nada fará porque o custo de defender aqueles países tão pouco importantes é muito e, além disso, do outro lado está a Rússia... Quem os mandou não serem "afinlandizados"?
(reanalisar-se-á a estratégia de expansão da organização)

Na Moldávia, o que será importante é ter em conta que é um país muito pobre e faz pouca diferença. Não vale a pena um conflito com a Rússia por causa daquilo. Até fica mal no mapa aquela coisa, convenhamos.
(redefinir-se-ão as linhas que nos separam)

Quando chegarmos à Polónia, alguém lembrará que aquilo sempre foi um país de fronteiras fluidas e já nem há judeus para maltratar pelo que o prejuizo será pouco.
(reafirmar-se-á a natureza inabalável dos princípios que nos regem)

E, passo a passo, de mão dada e olhar posto no futuro, gritaremos, alto e bom som, "somos Europa!".

Joaquim de Freitas disse...

Quando o Sr.Embaixador escreve: "uma certa Rússia contemporânea que se acha enganada pelo ocidente - em especial, que se considera abusada na sua fragilidade conjuntural. E que, à evidência, não se resigna."

Claro que não se resigna. Países e líderes geralmente reagem à humilhação de duas maneiras : agressão ou introspecção.

Depois que a China viveu o que se chamou de "século de humilhação" do Ocidente, ela respondeu sob Deng Xiaoping dizendo essencialmente: "Vamos vos mostrar , vamos-vos vencer no vosso próprio jogo".

Fui dezenas de vezes à China, desde 1964. Vieram de longe.O caminho foi longo para os chineses. Mas conseguiram.

· Quando Putin se sentiu humilhado pelo Ocidente após o colapso da União Soviética e a expansão da NATO, ele respondeu: "Eu vou te mostrar. Eu vou bater na Georgia e na Ucrânia."

· Esta é a guerra de Putin. Dizem que ele é um líder perigoso para a Rússia e seus vizinhos ?. Mas a América e a NATO não são apenas espectadores inocentes na sua evolução.

O embaixador dos EUA em Moscou em 1952, Kennan foi sem dúvida o maior especialista americano na Rússia. Apesar de ter 94 anos na época e frágil de voz, ele era esperto sobre a expansão da OTAN.

"Eu acho que é o início de uma nova guerra fria. Penso que os russos reagirão gradualmente de forma bastante adversa e isso afetará suas políticas. Acho que é um erro trágico. Não havia nenhuma razão para isso. Ninguém estava ameaçando mais ninguém. Esta expansão faria com que os pais fundadores deste país se virassem em seus túmulos.

"Nós oferecemo-nos para proteger uma série de países, de leste, embora não tenhamos recursos nem a intenção de fazê-lo de forma séria.
A expansão da NATO foi simplesmente uma acção ligeira de um Senado que não tem interesse real em assuntos externos.

O que me incomoda é o quão superficial e mal informado foi todo o debate do Senado. Fiquei particularmente incomodado com as referências à Rússia como um país que está "morrendo "de vontade de atacar a Europa Ocidental...

É claro que haverá uma reacção severa da Rússia, e então [os expansores da NATO] dirão que sempre dissemos que é assim que os russos são - mas isso é errado."

Um erro crasso, que vamos pagar agora...

Lúcio Ferro disse...

Não estou pessimista. Vamos ter sanções, mas vão ser sanções moderadas, até porque, enfim, apesar da retórica o nordstream 1 está a bombar, até os dutos que passam (e fornecem) pela Ucrânia e outros países continuam em funcionamento. As sanções são péssimas, mais para a Europa do que para os EUA e até do que para a Rússia. Aliás, são os EUA quem mais lucra com tudo isto e é possível que Putin tenha cometido um erro estratégico (para já perdeu toda a opinião pública ocidental), ou então é tão bom ao poker como já demonstrou ser ao xadrez que ao subir a parada desmascarou a retórica da 'mãe de todas as sanções' com que joe e o sidekick boris o ameaçaram. Para já, as Repúblicas vão instaurar-se tranquilamente, ser-lhes-ão destinados recursos por parte da Grande Mãe Rússia e, com alguns ajustes de percursos fronteiriços (Mariupol, por exemplo), teremos paz. Uma paz podre, carregada de sanções, que provavelmente alimentarão movimentos (ainda mais) populistas na Europa, como se não nos bastasse a crise climática e a pandemia, mas teremos paz, espero.

Jaime Santos disse...

Como dizia creio que D. João II, Luís Lavoura, Espanhóis somos nós todos e isso não me parece exatamente um bom argumento (nem ao nosso longínquo monarca) para eu ir agora jurar fidelidade a Filipe VI, como parece que quer Santiago Abascal.

A Rússia tem uma solidez incomparável aos restantes vizinhos, porque foi ela que pôs e dispôs na área e tantas vezes os dominou e oprimiu.

Se tomarmos o que Putin diz e você secunda à letra, nem a Finlândia, nem a Polónia, nem os Países Bálticos têm qualquer direito a existir porque fizeram parte do Império Russo.

E se calhar a Suécia que se cuide...

Não é assim que o direito à autodeterminação funciona. Se a população de uma dada área geográfica que constitui uma nação com fronteiras reconhecidas desejar continuar a exercer a sua soberania, não deve ser o ressentimento russo a por fim a tal coisa.

Já não vivemos na era dos Impérios. Se alguns Impérios de facto não se adaptam aos novos tempos, isso vai seguramente significar guerra e na era nuclear, a guerra é impensável...

Mal por Mal disse...

As Nações Unidas nem piam.

Há vários anos que as Nações Unidas estavam a ser conduzidas por figuras de paises insignificantes politicamente, e em todos os sentidos.

Ninguem respeita as Nações Unidas.

Devia ser agora que estava lá um bom português.

José disse...

No final da 2GM, o bom do Churchill queria atirar-se aos russos mas não conseguiu convencer os americanos. Foi pena. Compreende-se a vontade dos EUA em quererem acabar a guerra mas, a esta distância, temos de considerar que esse foi um dos grandes erros da História.

Se os aliados democráticos tivessem atacado os russos, forçando-os a voltar para as suas fronteiras e, eventualmente, apressando a queda da ditadura comunista, teríamos poupado o mundo a incontáveis desgraças: a Europa de Leste teria sido libertada de dezenas de anos de opressão comunista, a Alemanha não teria sido dividida, as Guerras da Coreia e do Vietname talvez não tivessem acontecido, a África não teria sido comida por inúmeras ditaduras, a URSS talvez não se tivesse tornado uma potência nuclear.

Agora, é tarde. As únicas coisas a fazer é ser militarmente firme com a besta e tentar corroê-la por dentro para ver se ela muda o suficiente para se poder lidar com ela de uma maneira civilizada.

Ah, e da próxima vez que houver uma invasão, com camiões e tanques a circular junto a camionetas de mercadorias, ao menos sabotem as estradas!!!

Bugalho

Pensei que a indigitação de Sebastião Bugalho seria tema para discussão entre quantos votam PSD e aí se dividem sobre se ele é a pessoa indi...