terça-feira, abril 09, 2024

O Eugénio disse-nos adeus


Chega-me a notícia da morte do Eugénio Lisboa. E fico com imensa pena por estar fora de Portugal, não podendo estar presente na sua despedida.

Que posso dizer do Eugénio? Porque a originalidade, muitas vezes, toca a irresponsabilidade, vou aqui repetir um escrito que, há anos, elaborei sobre ele. O essencial, no que o Eugénio me toca, está nesse texto:

"Por décadas, li o nome de Eugénio Lisboa em textos críticos sobre literatura portuguesa que me iam passando à frente dos olhos. Como essa era uma “praia”, como agora se diz, que eu apenas tocava pela rama, tinha, acerca dele, alguma, mas não excessiva, curiosidade, apenas potenciada pela raridade do facto de se tratar de um “engenheiro”, qualidade que partilhava com o Jorge de Sena – mas isso num tempo em que os engenheiros ainda não assumiam a importância que, entre nós, viriam a ter… 

A circunstância de ter raízes em Moçambique e de, mais tarde, ter andado por França e pela Suécia, situavam Eugénio Lisboa, no meu imaginário, na prateleira prestigiada dos expatriados da nossa cultura, essas figuras com cujas assinaturas eu tropeçava em livros e artigos e que, de quando em quando, entrevia em colóquios ou na televisão, saídos da sua habitual geografia. Mas eu nunca fui fã de José Régio (o Eugénio não me vai perdoar esta!) e esse era o terreno de estimação do nosso crítico, pelo que não atentava, como seguramente deveria, ao que ele escrevia sobre o poeta – no “Colóquio Letras”, no JL e noutras folhas cultas e de culto.

Um dia, no início dos anos 90, ao ser colocado em Londres, tive oportunidade de pôr finalmente uma fotografia no nome do Eugénio Lisboa. E, simultaneamente, no de Rui Knopfli, com quem ele fazia um singular “par” de conselheiros da coisa escrita – o Lisboa, da cultura, o Knopfli, da imprensa – dentro da nossa Embaixada. Durante mais de quatro anos, convivi diariamente com ambos e, no meu saldo pessoal, julgo neles ter feito dois amigos. Era muito interessante observar a sua complementaridade, o sublinhar das comuns raízes moçambicanas, distintos no trabalhar de certas memórias, sobre figuras do passado frequentado e no modo de viver o presente de então. Porém, onde o Eugénio era uma formiga de trabalho, o Rui era uma cigarra, de cigarros seguidos e outros vícios, onde parecia assentar a alegria residual da sua vida e em que preparava, com uma certeza que íamos visualizando, o caminho apressado para a morte. Por mais de uma vez, fui aliado do Eugénio Lisboa – cuja óbvia ternura pelo Rui sempre mascarava – na tentativa de salvar o poeta de si próprio. E ambos sofríamos, cada um a seu modo, a inglória certeza, a prazo, desse esforço. 

Sou testemunha privilegiada de que, em Londres, Eugénio Lisboa desenvolveu um trabalho notável na promoção da nossa cultura. Para além de animar, frequentemente com a sua presença, muitas iniciativas, dedicava-se, com afinco, à edição de traduções de clássicos da nossa literatura, através da “Carcanet Press”. Com o Helder Macedo e com Michael Collins, seus principais cúmplices em iniciativas a que, com pertinácia, se dedicava, o Eugénio procurou “furar” o complexo mundo do tecido cultural britânico, tendo, a seu lado na Embaixada, a ajuda entusiasta e atenta de Mercês Gibson. Olhando para trás, tenho consciência de que procurei ser útil, à medida do que me era possível, a esse labor, onde frequentemente nos deparávamos com boas vontades – como era o caso da Fundação Calouste Gulbenkian – mas, igualmente, com alguns egos de estimação, às vezes de natureza institucional, bem difíceis de contornar.

Foi pela mão do Eugénio Lisboa que vim a conhecer figuras como o jornalista António de Figueiredo, lendário representante de Humberto Delgado em Londres, o advogado Adrião Rodrigues, nome destacado dos “Democratas de Moçambique”, ou Alexandre Pinheiro Torres, um escritor cuja obra justificaria maior reconhecimento público. Em Londres, o Eugénio funcionava como uma espécie de “placa giratória” por onde passava muito do mundo cultural português, mas onde a África lusófona estava sempre presente. 

Esse “carrefour” londrino nem sempre era tão pacífico como se poderia pensar – mas, com o tempo, habituei-me a perceber que o mundo cultural é um espaço onde, com alguma facilidade, as personalidades se chocam e as palavras podem desencadear grandes fogueiras. Recordo-me de uma polémica, que envolveu o Eugénio Lisboa e o José Saramago, a propósito de um almoço que eu havia oferecido ao escritor, com a presença do Hélder Macedo, da Paula Rego, do Bartolomeu Cid dos Santos, do Luís de Sousa Rebelo e do Rui Knopfli. O modo como Saramago relatou uma cena desse repasto, nos seus “Cadernos de Lanzarote”, criou uma fúria no Eugénio, que zurziu o escritor no JL. A diplomacia não exclui a indignação. 

Devo confessar que tenho alguma saudade das conversas que, aos fins de tarde, mantínhamos no meu gabinete, muitas vezes acompanhados pelo fumo e pela ironia do Rui Knopfli. Ouvia-os então cruzar memórias africanas, referências literárias, leituras pessoais de episódios comuns do passado, tudo envolvido na agudeza crítica que, quando inteligente, não faz mal a ninguém.

Homenagear o Eugénio Lisboa, como grande figura da cultura portuguesa – não esquecendo a imprescindível serenidade da Antonieta, a seu lado –, é um ato mínimo de justiça. E, para mim, é também uma oportunidade para lhe enviar um abraço de sólida amizade."

Repito o abraço, agora já saudoso, ao meu amigo Eugénio Lisboa.

12 comentários:

Flor disse...

Os meus sentimentos. Que a sua alma descanse em paz.

João Cabral disse...

Outra das vozes avisadas que foram contra o Acordo Ortográfico. Mas e ouvi-las?

Carlos Antunes disse...

A propósito da morte de Eugénio Lisboa e as referências elogiosas que lhe faz e também a Rui Knopfli e a Hélder Macedo, com quem o Embaixador teve a oportunidade de se relacionar em Londres, é bom recordar que todos eles fazem parte do escol de intelectuais nascidos ou com profundas raízes moçambicanas que, durante o período colonial criaram uma florescente literatura de raiz marcadamente moçambicana, mas capaz de abarcar diferentes caminhos, e cujo inventário não ficará completo se não lhe juntarmos nomes como Reinaldo Ferreira, Noémia de Sousa, Rui Nogar, Sebastião Alba, Nuno Bermudes, Ana Maria Barradas, Fernando Leite Couto, Alberto Lacerda, Glória de Sant’Anna, Fonseca Amaral, Ilídio Rocha, Lourenço de Carvalho e outros que agora não me vêm à mente.

Curiosamente, a despeito da sua intervenção política contra o poder colonial e a favor da independência, todos eles frustrados com o regime político instaurado pela Frelimo pós-independência, decidiram vir para Portugal e daqui partir para outras paragens.

Mas o que pretendo concluir disto: a de que existe na presente historiografia portuguesa – cuja ausência de um conhecimento concreto da sociedade colonial percorre toda a “historiografia actual” – uma leitura distorcida do Moçambique colonial assente na consolidação de imagens desvalorizantes dos moçambicanos (europeus e africanos) e da sua intervenção na sociedade colonial moçambicana.


Unknown disse...

Apreciava a sua vasta cultura literária. Admirava, ainda, a sua clareza na escrita e a sua independência de pensamento. Adorei os seus livros de memórias, em especial os relativos à sua vida em Moçambique.

caramelo disse...

Carlos Antunes, eu não sei a que "leitura distorcida" se refere e também não o esclarece, mas um pequeno nicho intelectual da então Lourenço Marques não é padrão nenhum para se conhecer a realidade de Moçambique do tempo colonial.

Unknown disse...

E já agora fique a saber, que talvez não saiba, que os intelectuais moçambicanos não eram um "nicho". Em número e qualidade pediam meças (para não dizer mais) aqui à "metrópole".

Carlos Antunes disse...

Caramelo
Respondo ao seu repto.
A leitura distorcida a que me referi é a que, por exemplo, Luís Reis Torgal, historiador e professor jubilado da Universidade de Coimbra e insuspeito de ser de direita) acentuava num artigo publicado no PUBLICO (2/03/2023):
«Acima de tudo o que quero destacar é este mau gosto de chamar História a tudo, quando, por exemplo, se fala da presença colonial portuguesa. O que implica que devemos, obviamente, estudar a colonização e o colonialismo com todo o rigor, mas sem preconceitos negativos ou positivos, como por aí se vê nesta febre de opinião ou de ideologia radical anticolonialista ou neo-imperialista, que vai deformando a interpretação da realidade».

Quanto aquilo que chama de “pequeno nicho intelectual da então Lourenço Marques não ser padrão para se conhecer a realidade de Moçambique do tempo colonial”, lamento dizer-lhe que está equivocado. Primeiro, não era nenhum nicho intelectual, existia uma sociedade civil (advogados, jornalistas, empresários moçambicanos, etc.), crítica do regime colonial; segundo, não era circunscrita à então LM, mas também à Beira e a outras cidades do centro/norte de Moçambique.

Sabe por acaso, quais foram os únicos lugares, em todo o então território português, em que nas eleições presidenciais de 1958, Humberto Delgado venceu nas urnas? Apenas, em Moçambique, na cidade da Beira e em Vila Pery (actual Chimoio), na província central de Manica e Sofala.
Talvez, por isso, o general Humberto Delgado “tenha entrado em Moçambique com falsa identidade e falso pas¬saporte pela fronteira da Suazilândia, disposto a lançar um movimento revolucionário com vista à queda do regime, a partir de Moçambique. Contava, para isso, com sólido apoio militar de forças locais, e procurava-nos para obter também o apoio civil dos Democratas de Moçambique” (Almeida Santos, In Quase Memórias, 1º vol. págs. 85 e 86).
Cordiais saudações





Anónimo disse...

É verdade, "um pequeno nicho intelectual da então Lourenço Marques".
Poder-se-ia afirmar "no pequeno nicho intelectual de Stratford-upon-Avon ou da margem Sul do Tamisa, um fulano chamado William Shakespeare". Ou "lá prós lados de Coimbra um gajo chamado Luis Vaz". Um pensamento, uma escrita universal (e em português) vale pelo que vale, não pela geografia em que ocorreu por muito interesse e significado que daí se possa tirar.

Mencionaria também os vários e infindáveis "geograficamente adoptados" António Quadros. (Tinta-da-China)

caramelo disse...

Bem, extraordinário. Lourenço Marques, a Beira, etc, afinal, eram uma permanente tertúlia intelectual e cívica, uma espécie de grande Chiado nos trópicos. Muito bem. Vou tentar esquecer todas as mentiras que ouvi e li sobre o racismo, os clubes apenas para brancos, a violência exercida diariamente sobre os criados e criadas negras, tareias e violência sexual, etc. inclusive do que ouvi de familiares meus que lá estiveram e fugiram para a África do Sul, como milhares de outros, onde se deram lindamente, aliás, vá lá saber-se porquê.

caramelo disse...

A não ser… a não ser que por “sociedade” lhe estejam a dar o sentido que dão os ingleses à palavra “society”, aqueles que interessam. Portanto, julgo que estarão a fazer um “social registry”, um Debrett's, da boa sociedade esclarecida da colónia.

(Já agora, o relativo êxito do Humberto Delgado em Moçambique teve mais a ver com reivindicações de maior autonomia administrativa e financeira da colónia, em relação à metrópole, cargas fiscais, etc. aquilo que Rodésia tinha e Moçambique não tinha. Coloquem corretamente o Humberto Delgado na sua personalidade, no seu tempo e nas suas circunstâncias)

Carlos Antunes disse...

Pela última vez replico à sua visão sobre o Moçambique colonial que julgo ser bastante simplista e redutora. A minha visão não se baseia em relatos dos familiares, mas em experiências vividas. Conheci o Moçambique colonial (onde nasci nos anos 50, vivi a minha infância e juventude, fiz os estudos primários e liceais e apenas conheci a Metrólope aos 18 anos, para frequentar o curso de Direito, findo o qual regressei a Moçambique, vivi a independência e apenas vim para Portugal pela simples razão de me ver impedido de exercer a minha profissão, quando Samora Machel proibiu o exercício privado de todas as profissões liberais (medicina, advocacia, engenharia). Mas vivi também o Moçambique independente, para onde regressei em 1982 e trabalhei por 15 anos até 1997, e a que volto sempre que posso, agora de férias, para conviver com os meus amigos moçambicanos (negros, mulatos, indianos) que por lá mantenho.
Conheço todas as províncias de Moçambique do Rovuma ao Maputo, e julgo conhecer algumas das culturas dos povos de Moçambique (falo razoavelmente três línguas nativas, chissena, chinungue e chimanika). Além disso, por vivências pessoais e profissionais, conheci igualmente a África do Sul do apartheid e de Mandela, a Rodésia colonial britânica, a de Ian Smith e o Zimbabwe de Mugabe, o Malawi de Banda e a Zâmbia de Kaunda.
Diante de tudo o que vivi, quando leio que os colonialismos português e britânico e as sociedades coloniais produzidas eram idênticas, ideia que rejeito, questiono-me se estou errado. Num dia destes, senti-me confortado ao ler “Racisms: from the crusades to the twentieth century” do historiador português Francisco Bethencourt, professor do King’s College de Londres, onde prova que o “racismo” (está lá desde os tempos grego e romano), precedeu a teoria das raças dos séc. XVIII e XIX, e quando retrata os impérios coloniais afirma que «o sistema colonial português, que foi talvez o mais flexível de gestão de populações coloniais, é um sistema baseado em discriminação racial mas não em segregação. Isto é o grande contraste com o sistema britânico».
Mas também ultimamente tenho lido diversas publicações de uma nova geração de académicos moçambicanos que, críticos do regime da Frelimo que governa Moçambique desde a independência, por contraste, analisam a herança da dominação colonial com outros olhos. Ainda recentemente (jornal on line Canal de Moçambique, 23.02.2023), o jornalista moçambicano Edwin Hounnou escrevia: “Moçambique, está a afundar-se cada vez mais na lama do neocolonialismo, muito mais cruel que o colonialismo por que o povo foi submetido durante a dominação portuguesa. É verdadeiro se afirmarmos que, hoje, estamos mais gravemente colonizados que no tempo em que os nossos territórios eram administrados pela potência colonial”.

Anónimo disse...

Ó Carlos Antunes... a vontade que eu tenho de o pôr a conversar, frente a frente, com familiares e conhecidos meus que lá viveram. Note que muitos deles nem sequer terão ouvido falar do Betencourt e do Kings College, pelo teria de ter muita paciência com eles e explicar-lhes devagarinho a suas teses.

caramelo

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