sexta-feira, abril 28, 2023

O Roque Laia


Ontem, no Porto, durante a Assembleia Geral de uma empresa, e perante uma questão suscitada por uma interpelação de um acionista à mesa, pensei para comigo: "Faz falta agora o Roque Laia". Se eu repetisse isso a qualquer das colegas da administração que me ladeavam, estou certo que não entenderiam. Ser mais velho é isto mesmo.

O "Guia das Assembleias Gerais", de Mariano Roque Laia, com uma 1ª edição em 1957, foi, por muitos e bons anos, em Portugal, a "bíblia" das Assembleias Gerais. Era uma utilíssima codificação de regras e procedimentos, sem força jurídica vinculativa mas com um peso "moral" que quase ninguém ousava contestar. Usar "o Roque Laia" com mestria era meio caminho andado para gerir bem uma Assembleia.

Há 53 anos, eu era presidente da Assembleia Geral da Associação de Estudantes do ISCSP, então com um U de "Ultramarina" no final. Depois da surpresa de uma derrota nas eleições do ano anterior (julgávamos serem favas contadas e a lista adversária apanhou-nos desprevenidos), tínhamos, entretanto, recuperado a Associação, nas eleições desse ano.

A primeira reunião da Assembleia Geral a que presidi veio a ser muito complicada, com uma imensidão de intervenções adversas e um ambiente bastante tenso. Até "pides", que ali eram estudantes, em horário pós-repressivo, apareceram, para ajudar a alguma confusão. A sala estava cheia de colegas mais velhos, quadros do Ministério do Ultramar, que se haviam conjugado para dificultarem a vida aos "esquerdistas" que tinha retomado a Associação. Displicentes, os nossos apoiantes tinham desmobilizado e eram em número insuficiente.

Eu tinha estudado muito bem "o Roque Laia", coisa que poucos faziam. Por isso, tinha na ponta da língua todo o arsenal de procedimentos e figuras, passíveis de ser usadas, nos momentos de impasse na assembleia. Perante as obstruções, lá fui driblando as dificuldades, sempre dentro das sagradas "regras do Roque Laia".

Tudo aquilo era feito sob o olhar atento do professor Martim de Albuquerque, que a direção da escola tinha destacado para acompanhar e fiscalizar a assembleia. Era assim mesmo a prática desse tempo: as reuniões de estudantes eram frequentemente vigiadas pelo corpo docente.

No final da sessão, com ar pesado, Albuquerque veio ter comigo e disse-me: "Você foi muito hábil na condução da reunião. Parabéns. Mas não apreciei a orientação que imprimiu aos trabalhos e vou ter de informar o diretor da escola". Não sei se lhe disse "olhe que não! olhe que não!", mas deve ter sido uma coisa parecida.

Meses depois, um desaguisado em público com o diretor da escola valeu-me um processo disciplinar e a posterior suspensão, por seis meses. No sufrágio do ano seguinte, a minha reeleição para o cargo de presidente da Assembleia Geral veio a ser rejeitada pelo Ministério da Educação. Não pude tomar posse. Coisas da vida desse tempo.

8 comentários:

Luís Lavoura disse...

De onde se conclui que o Francisco é uma pessoa com uma atividade política de longa data (isso já eu sabia) e que nessa atividade aprendeu cuidadosamente uma série de truques e procedimentos, mais ou menos lisos, com o fim de levar a água ao seu moinho.

Segundo em tempos fui informado, um truque desses, utilizado por compagnons de route do PCP, consiste em entupir a assembleia geral com questões procedimentais, com o fim de chatear os outros participantes e fazer com que eles, pouco a pouco, abandonem a assembleia por simples cansaço, ficando nela ao fim da noite somente os compagnons de route, os quais aproveitam então a desistência dos adversários para fazerem aprovar aquilo que desejam.

manuel campos disse...


Que falta que o "Roque Laia" fez aí num caso recente em que nem uma AG houve.

O dinheirão que eventualmente (e até "eventually") essa falta não irá custar.

Francisco Seixas da Costa disse...

Luis Lavoura. Aquela minha função não era "atividade política", era atividade cívica. O Estado Novo, esse sim!, é que qualificava de política as ações de cidadania. E, por isso, as controlava e reprimia.

Francisco Seixas da Costa disse...

Luis Lavoura. Aquela minha função não era "atividade política", era atividade cívica. O Estado Novo, esse sim!, é que qualificava de política as ações de cidadania. E, por isso, as controlava e reprimia.

manuel campos disse...


Quando falei em "dinheirão" não me referia óbviamente a uma quase certa indemnização à CEO, fora custas do processo e advogados, é muito dinheiro
para o cidadão comum mas mas não chega a 0,1% do que já lá "metemos" agora.

O problema é que não se cometem erros nem se arranjam litígios desta natureza numa altura em que se anda a negociar uma mudança de accionistas, seja sob a forma que fôr, são momentos em que todos os trunfos fazem falta.
Já vi esse filme.
Duas vezes.

António Moreira disse...

Também "bebi" muito no guia do Roque Laia. Regras e procedimentos que me foram úteis em diversas funções que desempenhei. E cheguei a falar pessoalmente com ele quando, fazendo parte da direção da Unicepe, o então Ministério do Interior nos queria impor uma medida administrativa que nos iria obstaculizar a ação. O Dr Roque Laia era um advogado experiente e ajudou-nos bastante nessa altura. As cooperativas, em particular as livreiras estavam sempre na mira do regime desse tempo. Numa certa altura, cheguei a ser chamado à pide para me entregarem uma intimação para não desenvolvermos "atividades de ordem política ". Tudo isto porque a Unicepe promoveu colóquios sobre literatura com gente como António José Saraiva,Óscar Lopes e outros. E já estávamos na "primavera mercelista".

manuel campos disse...


"Medina reconhece “acontecimentos significativos” na TAP, mas não beliscam valor da companhia aérea" - Lusa

Ora o Dr. Medina devia ter acrescentado que era uma resposta ao meu comentário acima das 19.22 de ontem, tinha-lhe ficado bem.

E assim continuo sem saber a que valor ele se refere, ao que vai pedir ou ao que lhe vão dar?
É que qualquer coisa vale exatamente aquilo que alguém está disposto a dar por ela.

Cada vez mais, da compra de uma curiosidade numa feira de rua à compra de um carro em 2ª mão, ao dizer o comprador que acha caro ouve a resposta "Mas olhe que na net estão a pedir muito mais".

Como diz um grande amigo meu e grande advogado da nossa praça, com toda a sua experiência, o papel aceita tudo o que a gente lá queira pôr.


manuel campos disse...


De António José Saraiva e Óscar Lopes tenho a inevitável "História da Literatura Portuguesa", na edição de 1978 (a 10ª, revista e actualizada).

Aliàs tenho 2 exemplares iguais, há um certo conjunto de livros de consulta habitual que procuro ter em Lisboa e aí algures, nada mais inconveniente que estar num sítio, de volta dos nossos escritos, e nos faltar uma "bíblia" qualquer, para coisas sérias o google é por vezes bem suspeito.

Entrevista à revista "Must"

Aque horas se costuma levantar?  Em regra, tarde. Desde que saí da função pública, recusei todos os convites para atividades “from-nine-to-f...