sexta-feira, maio 01, 2020

Os livros da vida (5)


Muita gente que conheci “chegou” a marxista passando, quase obrigatoriamente, pelo Zamora ou, em versão um pouco mais sofisticada, pela Marta Harnecker. Outro estádio essencial do acesso à bela teoria absoluta do óbvio sócio-económico era ler os “Princípios Fundamentais de Filosofia”, de Politzer. Os de lágrima fácil estagiavam antes na “Mãe”, do Gorki, ou, para quem fosse dado ao produto local, na “Engrenagem”, de Soeiro Pereira Gomes, mais primário do que os “Esteiros”. Com estas referências, lidos depois o “Manifesto” e uns extratos simplificadores de Marx (“Salário, Preço e Lucro”, “Trabalho assalariado e Capital” e as “Teses sobre Feuerbach”), estava criado o substrato que permitia debitar, com garbo, um mínimo da vulgata marxista. Depois vinha o “resto”: Lenine, Stalin, Trotsky e, para quem fosse dado a coisas mais étnicas, o velho Mao. E tantos e tantos outros, que hoje jazem no meu espólio na Biblioteca Municipal de Vila Real. Se não tivesse passado pelo marxismo, a minha perspetiva da vida tinha sido outra, eu teria sido outro e, “for the record”, gosto de ser como sou. Devo a Juan Clemente Zamora, no seu simplismo às vezes muito maniqueísta, o ter-me ajudado a perceber o mundo. Depois, como dizia Marx, era importante passar à frente e conseguir transformar esse mesmo mundo. Aqui chegados, cada um fez o que pôde ou o que quis.

9 comentários:

Anónimo disse...


Não estou convencido Sr. Embaixador da sua vontade de transformar o Mundo no sentido em que Marx o entendia. A sua postura, que é a que quis, parece-me mais próxima daqueles que entendem que é preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma.
Espero não o ter ofendido, Sr. Embaixador.

João Pedro

Luis Ferro disse...

O meu percurso pré-marxista passou, não por Zamora, mas por Jorge Amado e Os Subterrâneos da Liberdade. À saída da minha fase marxista (que nunca implicou a rejeição total da obra de Karl Marx) foi marcante a leitura de Sidarta, de Hermann Hesse.

Joaquim de Freitas disse...

Uma pequena dose da vida real dum proletário no inicio da sua vida, Senhor Embaixador, como por exemplo, com 10 anos de idade, ir para a “bicha do pão”, porque os pais iam para a fábrica e não tinham tempo para isso, ver chegar, cada dia, no fim do dia, com angustia, o fim dos produtos de alimentação, enquanto a “féria” (o salário) ainda estava longe, e que era necessário pedir crédito ao merceeiro até à “féria”, e tantas coisas assim, sob a chapa de chumbo do medo da PIDE porque o chefe da família era militante do PC, sobretudo quando aqui e ali caia um camarada de vez em quando nas suas garras, tais são os ingrediente, entre outros, que formatam um homem para sempre.

O que não quer dizer que aqueles que viviam mais desafogadamente, porque funcionários com o salário garantido, ou comerciantes, ou artesãos, ou profissões liberais não eram também, por vezes, combatentes da boa causa, ao seu nível.

E se a leitura da “Mãe” de Gorky arrancava a tal lágrima “fácil”, era porque lá em casa havia uma “Mãe” igual, que sofria os mesmos tormentos. Os dois, dormem hoje para a eternidade, à sombra das grandes montanhas dos Alpes Franceses.

E se a leitura do “Manifesto” não impedia a leitura do ‘Do Contrato Social”, de Rousseau, também não me impediu, depois de recuperar a liberdade fora da minha terra, de evoluir e de ser um dia, eu mesmo, chefe duma empresa de 300 colaboradores, na qual apliquei por vezes alguns ensinamentos do que aprendi na sociedade injusta do meu país. Procurando ser mais justo eu mesmo na minha função, sem esquecer o que o sistema económico vigente impõe, para preservar os interesses das três entidades que contam numa empresa; o cliente, o accionista e o trabalhador. Sem as quais, qualquer que ela seja, a empresa não existe. Respeitando sempre as minhas convicções profundas, baseadas na solidariedade humana, sem a qual não haverá mundo.

Permita, Senhor Embaixador, que faça minhas as suas palavras “Depois, como dizia Marx, era importante passar à frente e conseguir transformar esse mesmo mundo. Aqui chegados, cada um fez o que pôde ou o que quis.”

aamgvieira disse...

A revolução de 1956 na Hungria esmagada pelos soviéticos, quando tinha 13 anos, marcou a minha juventude, que com os anos e a Checoslováquia em Agosto de 1968 foi a machadada final nessas líricas ideias dos amanhãs que cantam.....
O PREC foi um tempo negro em Portugal.

Joaquim B disse...

Que seleção tão interessante e tão fora do que é habitual.
Estou ansioso por ver os restantes cinco.
J.Barreiros

Anónimo disse...

Também li o Zamora e outros que tais acessíveis aos jovens de 19/20 anos que éramos na altura e que quase me convenceram.
Até que o li o "Espectador comprometido" em que o Raymond Aron reduziu a zero dois soixant huitard, um o Dominic Walton e outro cujo nome não recordo. Isso mais os boat people, os killing fields, etc, tiraram-me todas as ilusões.

Anónimo disse...


Sempre esclarecedor, Joaquim de Freitas.

Não nos abandone.

João Pedro

Anónimo disse...

A vulgata marxista combinada com o nosso fechamento político, à data, deram nisto: uma sociedade pobre e subdesenvolvida.

dor em baixa disse...

As pessoas que conheço e se fizeram seguidores do capitalismo não leram nem a metade na literatura da sua área. Também é verdade que quando chegaram ao momento de terem problemas de consciência por causa do Vietname ou do Iraque não sentiram o peso dos da Hungria ou da Checoslováquia.

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